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Quanto custa o Código Comercial?

Estudo econômico, que estima em quase duas centenas de bilhões de reais o impacto da aprovação do projeto, está desatualizado.

quinta-feira, 4 de agosto de 2016

Atualizado em 3 de agosto de 2016 16:48

1. O Estudo econômico está ultrapassado

À medida que se aproxima a votação do substitutivo do deputado Paes Landim, relator do Projeto de Código Comercial (PL 1.572/11), de autoria do deputado Vicente Cândido, no âmbito da Comissão Especial de deputados, presidida pelo deputado Laércio de Oliveira, mobilizam-se os setores contrários à iniciativa. Entre os argumentos que têm sido repetidos encontra-se o baseado num estudo econômico, que estima em quase duas centenas de bilhões de reais o impacto da aprovação do projeto (Medindo os impactos do PL 1.572 da Câmara dos Deputados ou do PL 487 do Senado Federal, que propõem o Novo Código Comercial Brasileiro).

Este Estudo possui problemas metodológicos sérios, que o desacreditam por completo (desconsideração dos benefícios, mensuração de impacto legislativo a partir do número de artigos de uma lei, etc). Mas não vou tratar deles aqui. O ponto que quero ressaltar é outro: o Estudo está completamente desatualizado; e, a rigor, não tem nenhuma serventia a esta altura da tramitação legislativa.

Explico. O Estudo foi elaborado partindo exclusivamente do projeto de lei, apresentado em 2011. Mas, de lá para cá, o amplo debate nacional e a tramitação legislativa importaram na supressão de diversos pontos da proposta original, entre os quais exatamente os que tinham sido considerados geradores de custos por aquele Estudo.

Vale dizer, o que está em vias de votação na Câmara dos Deputados é o Substitutivo do Relator Geral. Este é, claro, diferente do projeto original em muitos aspectos. Como foi o impacto do projeto original, e não o do Substitutivo, que se pretendeu mensurar naquele Estudo, é evidente que suas conclusões estão hoje totalmente prejudicadas, ultrapassadas.

Em suma, o número apresentado pelo Estudo, se algum dia representou algo, hoje certamente não representa absolutamente nada. Afinal, todos (isto mesmo, todos) os pontos apresentados pelo Estudo como geradores de custo foram superados, ao longo da tramitação legislativa. Nada do que preocupou a responsável pelo Estudo no passado continua em pauta.

Quais foram os pontos considerados geradores de custo pelo Estudo em questão?

Eram nove pontos: (1) Tratamento da sociedade estrangeira; (2) Função Social da Empresa e do Contrato; (3) Concorrência Desleal; (4) Abuso de Sócios ou Acionistas; (5) Dever de Estrita Boa-fé e Indenização Punitiva; (6) Proteção do contratante economicamente mais fraco; (7) Produção de Provas nos Processos; (8) Fiscal Judicial Temporário; (9) Facilitador.

Vamos conferir o que aconteceu com cada um deles. Os dispositivos mencionados são os do Voto Complementar divulgado no dia 13 de julho de 2016, no site da Câmara dos Deputados.

1.1. Tratamento da sociedade estrangeira

No projeto original, era prevista a obrigatoriedade de identificação do controlador das sociedades estrangeiras até o nível da pessoa física, sempre que pretendessem investir em empresas nacionais. O objetivo era impedir que as offshore companies continuassem a servir a propósitos ilícitos, em prejuízo a herdeiros, credores ou o fisco. Embora esta exigência seja corrente no âmbito da CVM, BACEN e CADE, várias críticas surgiram no sentido de que, malgrado a importância do objetivo pretendido, o meio era por demais gravoso para a economia nacional e de difícil implementação.

Também preocupou ao Estudo a exigência de autorização do Poder Executivo para a sociedade estrangeira poder explorar sua atividade no Brasil. Trata-se de norma que vigora no direito brasileiro sem qualquer impacto negativo desde, pelo menos, a lei das sociedades anônimas de 1940, mas isto não foi levado em consideração.

De qualquer modo, o substitutivo não contempla mais nenhuma exigência de identificação do controlador estrangeiro e, além disso, prevê expressamente a dispensa da autorização prévia do Poder Executivo (art. 128, § 2º). Portanto, as regras sobre o tratamento da empresa estrangeira, que o Estudo havia considerado geradoras de custo, não existem mais.

1.2. Função Social da Empresa e do Contrato

O projeto original elencava, entre os princípios comuns do direito comercial o da função social da empresa. Ao enunciar o princípio, o projeto, a rigor, não estava inovando em absolutamente nada, porque ele está enraizado na própria Constituição Federal, sendo, como demonstrado há tempos pelo ilustre Fábio Konder Comparato (A função social da propriedade dos bens de produção. Em "Tratado de Direito Comercial". São Paulo: Saraiva, 2015, pgs. 125/135) desdobramento da função social da empresa. A inovação consistia na delimitação do princípio, para evitar sua distorção.

Também previa o projeto original a função social do contrato, com o mesmo objetivo. Não era uma inovação, porque esta cláusula geral já é prevista no Código Civil. O tratamento da matéria visava unicamente definir quando um contrato empresarial cumpre esta função, e limitar ao Ministério Público a legitimidade ativa para a discussão deste cumprimento. Sempre com vistas a conferir maior segurança jurídica à disciplina do tema.

Pois bem. O Substitutivo simplesmente não trata da função social da empresa como princípio do direito comercial (art. 4º); nem menciona a função social do contrato, ao dispor sobre as cláusulas gerais (arts. 279 e 280). Nesta matéria, os contratos empresariais continuarão sujeitos à mesma regra aberta constante do Código Civil (art.272, § 2º).

Assim sendo, também estas regras deixaram de existir e, portanto, o Substitutivo não irá gerar o custo mensurado pelo Estudo relativamente a este ponto.

1.3. Concorrência Desleal

O projeto originário definia concorrência desleal e apresentava, num rol evidentemente exemplificativo, algumas práticas que a caracterizam.

Aqui, também não havia absolutamente nenhuma inovação em relação ao direito positivo. O objetivo era conferir sistematicidade ao direito comercial, trazendo normas hoje constantes de uma lei esparsa (a lei da propriedade industrial) para o texto codificado.

O Substitutivo simplesmente não incorporou o Capítulo II do Título III do Livro I do projeto original, de sorte que o texto em discussão em votação não dispõe sobre a concorrência desleal. Os custos que podiam ser gerados pela previsão originária, deste modo, deixaram de existir.

1.4. Abuso de Sócios ou Acionistas

Entre os princípios do direito societário, o projeto inicial previa o de proteção do sócio ou acionista minoritário contra abusos do controlador. Previa também a responsabilidade do acionista por exercício abusivo do direito de voto. E estas regras, apesar de já existirem, com outra redação, no direito positivo há décadas, foram consideradas geradoras de custos.

O Substitutivo não reproduziu nenhuma destas regras.

Entre os princípios do direito societário, não consta mais o da proteção ao minoritário (art. 5º) e todas as regras sobre sociedade anônima foram eliminadas, limitando-se o Substitutivo a reproduzir exatamente as que hoje vigoram acerca deste tipo societário (art. 213).

Este custo, portanto, também não existe mais.

1.5. Dever de Estrita Boa-fé e Indenização Punitiva

O dever de estrita boa-fé é expressamente previsto, na lei, há muito tempo, na definição das obrigações dos contratantes de seguro. O projeto identificava a existência deste dever em outras relações empresariais e estabelecia que o seu descumprimento geraria indenização punitiva.

Esta inovação não foi reproduzida pelo Substitutivo, de modo que o custo correspondente, que o Estudo calculou, não existe mais.

1.6. Proteção do contratante economicamente mais fraco

O Projeto originário prescrevia, entre os princípios do direito contratual empresarial, o de proteção ao contratante economicamente mais fraco. Reproduzia, então, o entendimento assente na jurisprudência brasileira, sobre os contratos assimétricos. O Estudo, porém, considerou que seria uma inovação geradora de custos para a economia.

Este custo, hoje, não existe mais. O Substitutivo não acompanhou o projeto originário neste aspecto e não enunciou a proteção do contratante mais fraco entre os princípios do direito contratual (art. 6º).

1.7. Produção de Provas nos Processos

O projeto originário apresentava normas de processo empresarial que procuravam transpor, para as ações judiciais entre empresários, algumas das medidas adotadas no âmbito das arbitragens, entre as quais uma forma específica de produção antecipada de prova (disclosure). Ao longo da tramitação legislativa, estas normas foram aperfeiçoadas, com a colaboração direta de processualistas de renome, a ponto de o Relatório Geral de fevereiro de 2016 prever até mesmo um Livro sobre o Processo Empresarial.

O Substitutivo em discussão e votação, porém, descartou este livro. O futuro Código não trará nenhuma norma de processo, limitando-se apenas a harmonizar as disposições do CPC sobre a ação de dissolução de sociedades com as novas disposições de direito societário.

Estes custos, portanto, deixaram igualmente de existir.

1.8. Fiscal Judicial Temporário

O projeto originário tornava de direito positivo o que é assente na jurisprudência, relativamente à intervenção na administração das empresas, por meio da figura do "fiscal judicial temporário".

O Estudo considerou que esta figura iria gerar custos para a generalidade das empresas. Nota-se, porém, que ela deixou de existir ao longo da tramitação legislativa e não consta do Substitutivo. Desaparece, portanto, também esta fonte de geração de custos.

1.9. Facilitador

Entre as inovações do projeto originário relativamente ao processo empresarial constava a criação da figura do facilitador, inspirada nos "secretários" que têm sido chamados a auxiliarem os trabalhos de tribunais arbitrais. Mal compreendida, a proposta foi objeto de severas críticas e acabou, na tramitação legislativa, sendo suprimida.

Deste modo, não há mais custo nenhum a computar em razão desta proposta.

2. Conclusão

Como se vê, absolutamente nenhum dos pontos que originariamente foram considerados geradores de custo pelo Estudo continua a ser objeto de discussão no âmbito da proposta de um novo Código Comercial. Evidentemente, em razão disso, o impressionante número apresentado à última página do referido Estudo não tem, hoje em dia, mais nenhuma consistência (se é que teve algum dia).

Deste modo, os críticos que se batem pela inoportunidade do Código, em razão das quase duas centenas de bilhões de reais que ele custaria, estão, na verdade, criticando algo que simplesmente não existe mais.

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*Fábio Ulhoa Coelho é professor titular de Direito Comercial da PUC/SP e integrante das Comissões de Juristas do Código Comercial na Câmara e no Senado.

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