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Casamento religioso com efeitos civis

O casamento religioso antecedeu ao casamento civil e era a única forma para oficializar a união estável entre homem e mulher, mesmo sem a existência de qualquer documento sobre o fato; posteriormente, apareceram os registros, as certidões paroquiais, etc. O poder moral da religião, através do sacerdote, impunha segurança à união do homem e da mulher.

quarta-feira, 9 de agosto de 2006

Atualizado em 19 de junho de 2006 07:55

 

Casamento religioso com efeitos civis

 

Antonio Pessoa Cardoso*

 

O casamento religioso antecedeu ao casamento civil e era a única forma para oficializar a união estável entre homem e mulher, mesmo sem a existência de qualquer documento sobre o fato; posteriormente, apareceram os registros, as certidões paroquiais, etc. O poder moral da religião, através do sacerdote, impunha segurança à união do homem e da mulher.

 

Apesar dos ensinamentos sobre o relacionamento entre Igreja e Estado, oferecidos por John Locke, na Inglaterra, em 1689, o Brasil só passou a adotá-los quase duzentos anos depois. Dizia Locke:

"O Estado nada pode em matéria puramente espiritual, e a Igreja nada pode em matéria temporal".

A Constituição Imperial de 1824 manteve o poder da Igreja sobre o casamento, mas a primeira Constituição Republicana, 1891, reconheceu validade apenas ao casamento civil e assegurou gratuidade de sua celebração.

 

Somente a partir do ano de 1861, marco da separação entre a Igreja e o Estado, houve regulamentação para o casamento dos não católicos; é que antes disto, o ato nupcial era praticado somente por sacerdotes da Igreja Católica. O Decreto nº 521/1890 proibia a celebração de casamento religioso antes do civil e punia os infratores com multa e prisão de seis meses.

 

Mesmo assim, o casamento religioso continuou sendo o preferido pelo povo, porque menos burocrático, menos dispendioso e porque a autoridade religiosa deslocava-se à residência dos nubentes, diversamente do ato civil, que reclamava burocracia, viagens e despesas. Em função da vontade popular, a Constituição de 1934, artigo 146, assegurou validade para o casamento celebrado "perante ministro de qualquer confissão religiosa, cujo rito não contrarie a ordem pública ou os bons costumes...". A regulamentação surgiu através da Lei 379/37, alterada pelo Dec. -lei nº 3.200/41 e posteriormente toda essa legislação foi revogada pela Lei nº 1.110/50 (clique aqui) que regulou minuciosamente os efeitos civis do casamento religioso.

 

A Constituição de 1937 limitou-se em considerar indissolúvel o casamento, daí porque se travou acirrados debates sobre a vigência da Lei nº 379/37. 

 

A Constituição de 1946, artigo 163, assim como a Constituição de 1967 e a Emenda de 1969, não inovou sobre o assunto. Atualmente, o legislador constitucional reconhece efeitos civis ao casamento religioso, parágrafo 2º, artigo 226.

 

A lei civil de 1916 não regulamentava o casamento religioso com efeitos civis, matéria tratada pela Lei 6.015/73 (clique aqui), Lei de Registros Públicos. O Código Civil em vigor dispensa relevância ao assunto através dos artigos 1.512, 1.515 e 1.516. A alteração introduzida foi somente quanto ao prazo para o registro do casamento religioso; antes, sob o império da Lei 6.015/73, era de trinta dias; agora, sob o regime do Código, passou para noventa dias. O casamento religioso além da solenidade embute ato litúrgico e sacramental.

 

A interpretação teleológica dos dispositivos acima é de que o casamento religioso poderá alcançar sua finalidade, a união do casal, se houver posterior reconhecimento e proteção do Estado, ainda que originalmente celebrado sem as devidas formalidades legais. Veja que o horizonte maior situa-se na união do casal, porquanto a desobediência à formalidade é passível de conserto.

 

A análise do caput do artigo 208 do Código Civil anterior, que dizia ser nulo o casamento contraído perante autoridade incompetente, foi modificado pelo disposto no artigo 1.516 e pelo inciso VI, artigo 1.550, que consideram anulável o casamento celebrado por autoridade incompetente. A lei nova, portanto, deixou de ter o ato por inexistente e passou a considerá-lo passível de nulidade, facilitando, desta forma, a legalização do casamento religioso. Desta forma, evita para as partes eventual dano irreparável, no caso de descuido a preceitos legais; para tanto, suficiente à revisão dos erros cometidos.

 

Não se enumerou as religiões ou cultos com a prerrogativa de celebrarem casamento religioso com efeito civil. Em 1950, e já se vão mais de 50 anos, a Lei n. 1.110 foi criticada exatamente por omitir o rol das religiões idôneas para a formalização do casamento. Bulhões de Carvalho foi um dos juristas que pugnou pela especificação, no Código atual, das religiões merecedoras de crédito; a lei, entretanto, omitiu-se, deixando em aberto e, portanto, tornando mais abrangente o espaço das religiões com poderes para a formalização do casamento com efeitos civis. Todavia, nem sempre foi assim, porque a Lei n. 379/37 arrolava os ritos confessionais: as religiões católica, protestante, muçulmana e israelita.

 

A evolução da sociedade criou o registro público, os direitos e deveres do homem, da mulher, dos filhos, e o casamento civil substituiu o religioso na estabilidade da união matrimonial. A despeito da preocupação do legislador, registre-se que o casamento religioso transformou-se num ato social, sem maiores implicações com a fé dos noivos. Com efeito, tornou-se comum sua celebração em religiões que nada têm a ver com a fé praticada pelos nubentes. Um padre ou pastor desta ou daquela Igreja formaliza o casamento de pessoas que têm prática religiosa diversas; a despeito disto, o credo escolhido insere sempre o casamento no ritual de suas práticas.

 

Nosso ordenamento jurídico não possui dispositivo algum que obrigue qualquer Igreja a realizar a cerimônia do casamento; concede aos nubentes a faculdade de buscar um templo para formalizar o ato, de acordo com os regramentos internos, para posterior reconhecimento de efeito civil; pode, entretanto optar somente pelo casamento civil.

 

Tem sido raro o chamamento dos tribunais para definir os efeitos civis do casamento religioso. Entretanto, recentemente, o Tribunal de Justiça da Bahia, em decisão polêmica e por maioria de um voto, determinou registro de casamento celebrado por dirigente de Centro Espírita, alicerçado no argumento de que a seita espírita é religião. Há registro de que o Tribunal de Alçada do antigo Estado da Guanabara procedeu de forma diversa, não admitindo registro de casamento realizado em Centro Espírita.

 

São fortes as motivações para não se admitir efeito civil à casamento celebrado por associação espírita; falta à doutrina a condição religiosa e a própria seita consigna este fato. Nas reuniões de suas atividades não há sacerdote, ministro, pastor, nem rabino, mas existe um dirigente, o Presidente, que possui competência para o exercício de atos elencados no estatuto da entidade. Entre estes não se consigna a celebração de

 

casamento e muito menos há anúncio da prática de qualquer ritual. Os freqüentadores das atividades desenvolvidas pelos

 

Centros Espíritas são sócios que assumem a obrigação de contribuir, mensalmente, para a manutenção da entidade; enquadram-se como membros de sociedades civis sem fins lucrativos e dedicados ao estudo da doutrina espírita sem outras preocupações como as das Igrejas.

 

 

Diferentemente daquela, estas não classificam seus fiéis como sócios; muito menos estabelecem em estatutos a obrigação de pagar valores mensais para sua manutenção. Os católicos, por exemplo, voluntariamente, contribuem com o dízimo, e as outras religiões colhem o óbolo, sem estipulação de valor. Enfim, não são sócios, mas freqüentadores dos rituais de seus templos. Pode uma pessoa comparecer, assistir e participar de suas práticas, sem assumir compromisso algum, inerente às associações que destinam suas práticas aos seus membros.   

 

Enfim, inexiste a figura do celebrante instituído por autoridade hierárquica para formalização do casamento e muito menos possui templo propriamente dito para os rituais. Além disto, descabe-lhe o rótulo de "religião", ou o exercício de qualquer ministério, sacerdócio, ou autoridade religiosa pelos seus membros ou adictos.   

 

A religião escolhida pelos nubentes deve apontar o rito interno para a celebração do casamento, como, fez a Igreja Católica, desde 1545, Concílio de Trento, que regulamentou a cerimônia entre os católicos, tornando-o contrato indissolúvel e traçando a solenidade adequada para a bênção nupcial; aliás, até junho de 1977 o casamento no direito brasileiro seguia o preceito canônico, alterado pela Emenda n. 9. A falta de especificação do rito dificulta, inclusive, eventual questionamento sobre fuga do procedimento traçado. A norma interna da Igreja tem de definir quem é o celebrante, local da cerimônia, horário, etc.

 

O casamento religioso pressupõe autoridade eclesiástica apta a celebrá-lo e esta tem a obrigação de observar as formalidades exigidas pela lei civil, porque de ordem pública. Aliás, a denominação casamento religioso prende-se ao fato de a cerimônia ser presidida por autoridade eclesiástica. A inidoneidade do rito confessional pode provocar impugnação do casamento.

 

A Bíblia Sagrada revela os princípios da religião cristã; a autoridade do Islã é assegurada pelo Alcorão; os Textos Budistas revelam os princípios do budismo, como "O Livro dos Espíritos" anunciam as características da seita espírita.

 

O Espiritismo Kardecista, (Amor, Tolerância e Perdão), que não tem ritual de casamento, apareceu depois do casamento civil; "O Livro dos Espíritos", de Allan Kardec, lançado em Paris, no ano de 1857, marca o início desta doutrina. O Espiritismo é, ao mesmo tempo, "uma ciência de observação e uma doutrina filosófica" e ele não se preocupa com as crenças dogmáticas, segundo Allan Kardec. A seita não possui ritual, não dispõe de vestes especiais, altares, imagens, hinos ou cantos, muito menos administração de sacramentos como o batismo, o casamento, etc.; não há concessões de indulgências ou distribuição de títulos nobiliárquicos. Aliás, faz parte da seita acreditar que Deus ajuda a todos independentemente de se submeter ao rito religioso; o casamento para o Espiritismo é uma instituição, não um rito. Os espíritas procuram a autoridade civil para formalizar a união matrimonial.

 

Tem-se então, em conta, ser pressuposto essencial que uma religião deve seguir seus mandamentos e dogmas fundamentais; neste raciocínio, não há como reconhecer ao Espiritismo a condição de religião; é certo que apenas um ou dois Centros Espíritas, entre os cerca de 2,3 milhões de adeptos no Brasil, admitem tal derivação religiosa. A omissão enunciada compromete o sentido da responsabilidade a ser assumida perante as autoridades públicas, porque o celebrante é fiador da estabilidade matrimonial.

 

Os estatutos e os ensinamentos mostram que a seita espírita não possui o requisito de organização religiosa no relacionamento com o Estado, mesmo porque não pratica ações, semelhante à celebração do casamento religioso.

 

Não se há de invocar quaisquer dos incisos do artigo 5º da Constituição para definição da matéria, pois, não se veda direito aos espíritas de se casarem, mas a lei impede-lhe a opção de formalizar o ato religioso com efeitos civis na sua associação, através de seu presidente, que não é investido da missão de autoridade religiosa. O chamamento do inciso VI, artigo 5º da Constituição não ocorre nem mesmo quando um padre recusar na celebração do casamento religioso de um ateu. É que o cidadão que não crer em Deus tem liberdade de crença e não terá prejuízo com a resistência do pároco, porque recorre ao casamento civil.

 

A celebração de casamento por dirigentes de Centros Espíritas implica em liberar o casamento religioso com efeitos civis para grupos sociais similares. Sem violar direito algum, o espírita, como qualquer cidadão, independentemente de crença ou de convicção filosófica, pode realizar o casamento junto à autoridade civil, sem passar pela autoridade religiosa. Afinal, o Centro Espírita é uma associação com estatutos que definem direitos e obrigações para os sócios e para os dirigentes. Entre os poderes conferidos à diretoria, como já se disse, não consta ritual para celebração de casamento.

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*Juiz em Salvador 

 

 

 

 

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