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Bem de família - Lei 8.009/90 - aspecto inexplorado?

Há que encontrar-se um ponto de equilíbrio, que faça justiça ao credor e ao devedor. A tarefa é espinhosa, mas necessária, e deve merecer a atenção dos doutos.

quarta-feira, 18 de julho de 2018

Atualizado em 24 de setembro de 2019 18:32

A lei 8.009/90, que cuida da impenhorabilidade do bem de família, vem tendo larga aplicação nos Tribunais, sendo notório que o STJ lhe dá interpretação ampliativa, para abarcar hipóteses que não estão claramente previstas nesse texto legal. O Tribunal da Cidadania, por exemplo, conferiu-lhe eficácia retroativa (Súmula 205) e garante a impenhorabilidade, mesmo quando o único imóvel residencial está alugado a terceiros, se o aluguel for usado para subsistência da família (Súmula 486).

O STJ, porém, proclama que não é invocável a impenhorabilidade do bem de família, quando o devedor maliciosamente aliena todos os seus bens, fazendo restar apenas o imóvel de residência (RESP 1.299.580/RJ, 3ª Turma, Rel. Ministra Andrighi). É uma das poucas hipóteses em que o STJ afasta a aplicação da lei 8.009/90, e o faz por motivo nobre: castigar a má-fé do devedor.

Um dos fundamentos usualmente invocados, para a proteção ao devedor e sua família, cujo imóvel residencial não pode ser penhorado (e, portanto, não pode ser leiloado pela Justiça), é o direito à moradia, previsto no art. 6º da Constituição Federal. Assim - argumenta-se -, para que a pessoa humana desfrute de uma vida digna, é preciso garantir-lhe o acesso a bens essenciais ou indispensáveis, o que a doutrina chama de estatuto do patrimônio mínimo, cujo exemplo mais evidente é o bem de família.

Nessa linha, sendo impenhorável o bem de família, quem for credor dos titulares desse direito à moradia terá escassas chances de receber o que lhe é devido, dando-se ao devedor e sua família - titulares do direito ao "patrimônio mínimo" - o privilégio de embaraçar gravemente a cobrança de dívida que não estiver abrangida nas exceções inscritas no art. 3º da lei 8.009/90. Uma verdadeira blindagem patrimonial.

Do ponto de vista do devedor, cujo imóvel residencial fica protegido pela lei 8.009/90 - e pelos Tribunais, que aplicam à risca a lei protetiva -, tudo ótimo. Mas como fica o credor, que tem a legítima expectativa de receber seu crédito, mas fica de mãos amarradas pela lei protetiva? É certo que ele poderá procurar, no patrimônio remanescente do devedor, algum bem penhorável, mas o ativo usualmente mais valioso - o imóvel residencial - fica blindado pela lei 8.009/90, o que complica em muito o sucesso da cobrança.

Surge a questão: a garantia do "patrimônio mínimo" deverá ser prestada pelo credor ou pelos familiares do devedor, que com ele têm vínculos de sangue e lhe devem alimentos, na forma dos arts. 1.694 e seguintes do Código Civil? Figure-se que o credor penhore o imóvel residencial de seu devedor. Será cogitável que se prossiga com o leilão e a família perca seu imóvel, e depois venha a socorrer-se de seus parentes, pedindo-lhes alimentos, ou deverá em todos os casos ser proclamada em Juízo a impenhorabilidade do bem, impedindo-se a ação do credor? Se a solução for procurada apenas na lei 8.009/90, a resposta será: salvo nos casos excepcionados no art. 3º, ou se houver fraude, não será possível a penhora.

Mas a indagação que se faz é: considerando-se que as demandas devem ser decididas de forma justa, será sempre aceitável que o credor, que de regra não tem vínculo familiar com o devedor, seja privado de penhorar o imóvel do devedor (por respeito ao "patrimônio mínimo" deste), enquanto que os parentes do devedor - que inclusive lhe devem alimentos, abrangendo "hospedagem e sustento" (art. 1.701 do C.Civil), jamais sejam chamados como garantidores desse "patrimônio mínimo" do seu parente? Se os familiares não têm que ser solidários ao devedor, por que o credor terá, compulsoriamente, que sê-lo?

Há um aparente choque entre a lei 8.009/90 e os arts. 1.694 e seguintes do Código Civil, que não foi examinado, em profundidade, pela doutrina ou pela jurisprudência. É necessário que se reconheça o direito a um "patrimônio mínimo". A questão que se propõe é: às custas de quem? Do credor ou dos familiares do devedor?

É preciso que a comunidade jurídica dê atenção à injustiça que muitas vezes sofre o credor, quando não consegue recuperar seu crédito, em razão da inflexibilidade dos ditames da lei 8.009/90. Há muito a jurisprudência do STJ proclama: "A melhor aplicação da lei é a que se preocupa com a solução justa, não podendo o juiz esquecer que por vezes o rigorismo na exegese do texto legal ou na adoção da doutrina prevalecente pode resultar em injustiça conspícua" (Revista do STJ 28, p. 313). Por que pensar-se apenas na proteção intransigente do devedor, mas quase nunca no direito do credor?

Não se pode fazer justiça ao devedor, respeitando-se seu "patrimônio mínimo", às custas de perpetrar-se injustiça ao credor, que fica com reduzidos meios de perseguir o recebimento de seu crédito. A Constituição Federal promete aos brasileiros, em seu preâmbulo, "a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna", mas essa promessa de "justiça" deve valer, também, para o credor, que não pode ser visto apenas como um vilão, possuído do desejo espúrio de levar a leilão o imóvel do devedor e lançá-lo na "rua da amargura". Há que encontrar-se um ponto de equilíbrio, que faça justiça ao credor e ao devedor. A tarefa é espinhosa, mas necessária, e deve merecer a atenção dos doutos.
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*Francisco A. Fabiano Mendes é sócio do escritório Fabiano Mendes Advogados.

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