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O aborto e a tutela constitucional do direito à vida

Quando a Constituição assegura o "direito à vida", garantiria o direito à vida desde a concepção? Ou seja, o direito à vida, tutelaria também o feto intrauterino?

quinta-feira, 23 de agosto de 2018

Atualizado em 24 de setembro de 2019 13:37

Retomo hoje um tema que já foi debatido nesse rotativo, mas cuja magnitude justifica a reiteração. Refiro-me às audiências públicas realizadas pelo STF para discutir a possibilidade de descriminalização do aborto até a 12ª semana de gravidez. As audiências públicas foram convocadas pela ministra Rosa Weber, relatora de uma ADPF em que se alega que os arts. 124 e 126 do Código Penal entram em conflito com princípios fundamentais da Constituição1.

Não me filio àqueles que entendem que a matéria é privativa do Legislativo. O STF, como guardião da Constituição, tem a prerrogativa e o dever de analisar se os dispositivos infraconstitucionais se compatibilizam com a Carta Magna e é isso, precisamente, o que se discute na ação em que convocadas as audiências públicas.

Quanto ao mérito, a decisão a ser tomada pelo tribunal demanda profunda reflexão, a abranger todos os aspectos da questão, não apenas os jurídicos, mas também os éticos e religiosos, o que justifica a convocação das audiências.

Qualquer reflexão que se venha a fazer no tocante ao tema começa com uma indagação sobre a tutela constitucional do Direito à Vida e sobre a extensão dessa tutela, a abranger apenas as pessoas já nascidas ou se abarcaria também o nascituro? Em outras palavras, quando a Constituição assegura o "direito à vida", garantiria o direito à vida desde a concepção? Ou seja, o direito à vida, tutelaria também o feto intrauterino?

A própria ministra Carmen Lúcia já escreveu que "se a proteção constitucional do direito à vida refere-se ao ser humano, ao humanum genus, nem se há duvidar que o embrião está incluído na sua proteção jurídica. O embrião é ser e é humano"2.

Entretanto muitas são as posições em sentido contrário, havendo quem defenda não haver o constituinte se manifestado sobre o termo "a quo" dessa cláusula constitucional pétrea, o que permitiria à legislação infraconstitucional definir quais seriam os termos iniciais do direito fundamental à vida, possibilitando, assim, a título exemplificativo, a edição de normas permissivas ou descriminalizantes do aborto, como, aliás, já o faz o nosso atual Código Penal nos casos de estupro e de risco à vida da gestante.

O art. 5º da CF, na exata dicção constitucional, garante a todos o direito à vida3. A priori o vocábulo todos parece compreender, não apenas as pessoas já nascidas, mas também o embrião e o feto. O que implicaria sustentar a existência de um "direito à vida", ou "direito de nascer", como direito da personalidade, o que também nos levaria à consequência lógica de que o aborto terapêutico "violenta o sentimento filosófico do ordenamento jurídico, é inconstitucional e contradiz o direito civil"4.

Reforçam esse entendimento as normativas do direito internacional. O Pacto de São José de Costa Rica, por exemplo, estabelece que para os efeitos dessa Convenção "pessoa é todo ser humano", e que toda pessoa tem direito a que se respeite sua vida "a partir do momento da concepção" (art. 1º, § 2º, e art. 4º)5.

Não tenho dúvida, inclusive com base no princípio da dignidade da pessoa humana, que o direito à vida é objeto de autônoma e específica tutela constitucional, abarcando sob o seu manto protetor todo aquele que pertencer à espécie humana, donde se conclui, realmente, pela existência de um "direito de nascer", de que é titular todo ser humano como tal concebido, não havendo como se admitir qualquer vulneração ao embrião e ao nascituro.

Por isto, ressalta Lorenzetti, "tem se reconhecido a proibição de procedimentos experimentais que tenham como objeto os embriões, salvo os que tenham por finalidade o benefício do próprio embrião, ou os estudos que não o danem. Uma afirmação correta, é a predominância que tem o direito relativo à vida íntima, e o início da vida é um aspecto dela, dentro do ordenamento"6.

É praticamente consenso na doutrina que a dignidade da pessoa humana é atingida sempre que o ser humano for rebaixado a objeto, tratado como uma coisa. E as coisas têm preço e não dignidade, máxima kantiana já repetida à exaustão em todos os trabalhos que tratam do princípio da dignidade da pessoa humana. Daí falar-se em coisificação do ser humano como antítese da dignidade.

Confrontando o direito do concepto ao nascimento em oposição ao direito ao aborto, em princípio não hesito em sustentar a prevalência do primeiro, salvo quando estiverem em jogo outros interesses maiores.

Todos os princípios, positivados ou não no texto constitucional, podem ser limitados por outros princípios com os quais entrem em colisão, exigindo-se, portanto, que sejam submetidos a regras de ponderação. Esse balanceamento constitui atribuição própria da Corte constitucional que, valendo-se do juízo de razoabilidade, fará a comparação entre a pluralidade de valores envolvidos em uma certa fatispécie com a concreta relação meios-fins que o legislador haja instituído no Código Penal.

Com relação ao aborto, e tomando por empréstimo as lições de Lorenzetti sobre o direito argentino, pode-se afirmar que "em nosso Direito Penal, o aborto está penalizado porque se atenta contra o bem personalíssimo da vida do óvulo fecundado, ou do embrião, ou do feto, segundo seja. Não o é quando seja praticado por um médico diplomado, com o consentimento da mulher grávida, se é feito com a finalidade de evitar um perigo para a vida ou a saúde da mãe, e se este perigo não pode ser evitado por outros meios [...] Também não é punível o aborto, se a gravidez provém do uso de violência ou de um atentado ao pudor cometido sobre a mulher retardada ou demente"7.

Nessas hipóteses excepcionais, tem-se de um lado o direito à vida do concepto e de outro o direito à saúde física ou psíquica da mãe, emanação direta do direito à vida. Realizando uma operação de ponderação e balizamento, para a correta aplicação de cada um desses direitos, o intérprete fará prevalecer o direito (à vida e à saúde) da mãe sobre o direito do concepto. A "primazia do direito à vida do vivente sobre o direito de nascer do nascituro", como bem coloca Franco Modugno. O direito à integridade física, operando a combinação direito à vida - direito à saúde, justifica a interrupção da gravidez, nas situações de risco à saúde da mãe, ainda que apenas à saúde psíquica8.

O mesmo entendimento deve ser aplicado sempre que a continuidade da gravidez comprometer gravemente a saúde física ou psíquica da mãe. Não se podendo, todavia, confundir com a situação do "aborto eugênico"9, que atenda a interesses particulares e egoísticos da gestante e que não pode ser tolerado em hipótese alguma, por infringir, não somente o direito à vida do concepto, mas também o próprio princípio da dignidade da pessoa humana.

Já o aborto por razões econômicas não encontra justificativa na seara ético-jurídica, pois na operação de balanceamento teríamos de um lado uma situação existencial do ser humano concebido e de outro uma situação patrimonial da gestante, sendo certo e indubitável a primazia dada pelo ordenamento às situações existenciais.

Agora se a situação econômica comprometer a saúde psíquica da mãe, aí estaremos diante de outra situação concreta, a merecer adequado e particularizado exame para que se conclua pela possibilidade de interrupção ou não da gravidez.

Todas essas situações devem ser adequadamente consideradas quando da aplicação dos arts. 124 e 126 do Código Penal, de modo a se concluir em que hipóteses concretas a criminalização do aborto, quando provocado pela própria gestante ou com o seu consentimento, entrará em confronto com os valores consagrados no pergaminho constitucional.
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1 Art. 124 - Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque: Pena - detenção, de um a três anos. Art. 126 - Provocar aborto com o consentimento da gestante: Pena - reclusão, de um a quatro anos. Parágrafo único. Aplica-se a pena do artigo anterior, se a gestante não é maior de quatorze anos, ou é alienada ou debil mental, ou se o consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência

2 ROCHA, Cármen Lúcia Antunes (Coord.). O direito à vida digna. Belo Horizonte: Fórum, 2004, p. 47.

3 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes.

4 LORENZETTI, Ricardo Luis. Fundamentos do direito privado.São Paulo: Ed. RT, 1998, p. 470.

5 Nesse sentido destaca, com propriedade, a ministra Cármen Lúcia, na obra já citada: "Em geral, os sistemas jurídicos afirmam que ser considerado pessoa em direito, vale dizer, dotar-se de personalidade para os fins de titularizar direitos, depende do nascimento com vida. Todavia, quanto aos direitos humanos, os direitos que cada ser humano titulariza não se há fazê-los depender da personalidade [.] Há que se distinguir, portanto, ser humano de pessoa humana. E, de pronto, há que se antecipar que o princípio da dignidade, que se expressa de maneira relevante quanto à pessoa humana, não se circunscreve a ela, senão que haverá que ser respeitado para a espécie humana, tomada esta em sua integralidade.[.] O embrião é, parece-me, inegável, ser humano, ser vivo, obviamente, que se dota da humanidade que o dota de essência integral, intangível e digno em sua condição existencial. Não é, ainda, pessoa, vale dizer, sujeito de direitos e deveres, o que caracteriza o estatuto constitucional da pessoa humana".

6 Op. cit.,p.470.

7 Op. cit., p. 471.

8 Cf. MODUGNO, Franco. "I nuovi diritti nela Giurisprudenza Constituzionale". Torino, G. Giapicheli Editore, 1995, p. 9/19 e 87/108.

9 A eugenia trata da reprodução e do aperfeiçoamento da raça. No aborto eugênico a interrupção da gravidez tem como matiz filosófica a preservação da qualidade de vida do ser, cujo nascimento deve ser obstado sempre que forem detectados problemas somáticos que comprometam essa qualidade.
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*Mário Luiz Delgado é doutor em Direito Civil pela USP e mestre em Direito Civil comparado pela PUC-SP. Sócio do escritório MLD - Mário Luiz Delgado Sociedade de Advogados.

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