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Vergonha

Quando a pessoa cai em si e constata que tinha tantas boas razões para não fazer, é natural que saia de circulação e até se esconda em algum recôndito como quem perdido de si busca algum escaninho para se reencontrar.

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Atualizado em 25 de novembro de 2008 12:30


Vergonha

Edson Vidigal*

Quando a pessoa cai em si e constata que tinha tantas boas razões para não fazer, é natural que saia de circulação e até se esconda em algum recôndito como quem perdido de si busca algum escaninho para se reencontrar.

Tudo se resume a uma simples questão de ter ou não ter vergonha.

As pessoas decentes se envergonham dos seus erros e se o erro não resultou em prejuízos aos outros, ainda assim, mesmo que ninguém saiba, se retraem em silêncios e se entregam às suas penitências.

Nos envergonhamos também do mal feito dos parentes, e até mesmo das escorregadelas dos amigos, isso tudo porque não queremos a nossa boa reputação chamuscada.

Mesmo sabendo que cada um responde pelo que faz e nós outros não tendo contribuído em nada para a ação reprovável tudo o que não queremos mesmo é que não nos envolvam nos erros alheios.

Não são poucos os pais que sofrem em silêncio, chorando pelos cantos para ninguém ouvir, não contendo em si a vergonha de saber que o filho é procurado pela polícia e, pior, negando a verdade aos outros lá fora, mas sabendo no fundo, no fundo, que a policia está certa.

Como advogado e depois como Juiz, ouvi de muitas mães histórias comoventes que me contagiaram o coração mas que por suas verdades jamais vergariam a lei.

Mães de filhos larápios, mulheres de homicidas, namoradas de traficantes, todos traziam a vergonha estampada no rosto, na maneira de falar, no jeito de olhar.

Em meio a um desses escândalos de grande repercussão, policia pelo meio apreendendo dinheiro, e dinheiro mal explicado, fui procurado em minha casa por um pai sofredor, um grande pai sofredor, capaz ate de entregar a alma dos outros ao diabo, se isso for para alegrar os seus filhos.

Mal conseguindo conter as lágrimas, a voz seca e embargada, cópia da denúncia contra a filha na mão, um calhamaço enorme, falou que estava à beira de um gesto tresloucado, uma bala na cabeça, me deu a entender.

Eu não sei o que eu fiz de mal ou de errado para, nesta idade e a esta altura da vida, ter que passar por tanta vergonha. É porque a minha mãe ainda está viva, justificou.

Foi aí que eu compreendi e passei a compreender melhor aquele homem. Ele só não estava de todo perdido porque tinha a mãe viva. A mãe era ainda o seu freio, o seu único freio.

Todos nós somos assim, dependentes de freios. Uns, que nem aquele pai sofredor, crescem e só conhecem os limites da afeição materna.

Outros, ainda que festejados por pai e mãe, crescem não como parceiros nos bons exemplos dos pais, mas como competidores.

Gastam a vida querendo provar, a qualquer preço, que são maiores que eles, mais capazes que eles.

De tanto pagar a conta, um dia a humanidade local reclama e Deus adota lá de cima as suas providências. Quando menos se espera, o que aparece? Um raio, um enfarte? Não, a polícia.

A polícia está atrás de saber, ah meu Deus quanta perseguição, isso é retaliação, transfere o policial, prende o delegado, demite o chefe da polícia, ah isso é um absurdo, está claro que estão querendo é me desmoralizar.

Quando não há mais freio, não há mais vergonha.

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*Ex-Presidente do STJ e Professor de Direito na UFMA





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