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A Convenção de Singapura e o Brasil: impactos econômicos e perspectivas para o ambiente de negócios

A Convenção de Singapura e o Brasil: impactos econômicos e perspectivas para o ambiente de negócios.

24/9/2021

A comunidade jurídica recebeu com grande entusiasmo a notícia da assinatura da Convenção das Nações Unidas sobre Acordos Comerciais Internacionais resultantes de Mediação, também chamada de "Convenção de Singapura", pelo Brasil no último dia 4 de junho. O festejo se dá não apenas pela importância que o país confere à mediação como forma alternativa de resolução de conflitos, mas também pelas particularidades normativas que prestigiam tanto a vontade individual quanto a primazia do direito interno das partes.1

Além desse marco histórico, é importante sublinhar que a adesão à Convenção implica em expressivos impactos econômicos, seja pelo incremento da segurança jurídica com preenchimento dessa "lacuna normativa", seja pela perspectiva de redução de custos nas relações comerciais internacionais que dizem respeito ao Brasil. O cenário interno, aliás, é um dos mais propícios para que a cultura da busca pela mediação como método autocompositivo crie raízes, particularmente no contexto das reformas que vieram na esteira da Lei de Liberdade Econômica e da Medida Provisória 1.040, de 29 de março de 2021.

Em 2019, quando editada a Medida Provisória 881, a Exposição de Motivos daquela norma identificava um problema bastante objetivo: o baixo grau de liberdade econômica, fator cientificamente necessário ao desenvolvimento de um país, explica a dificuldade do crescimento econômico do Brasil.2 Já naquela época era possível vislumbrar os efeitos positivos da norma sobre as relações negociais internacionais, no sentido de que o investidor estrangeiro poderia enxergar um cenário juridicamente mais seguro, estando menos exposto a decisões arbitrárias e restrições das atividades econômicas.3 Convertida a Medida Provisória 881/2019 na lei 13.874, de 20 de setembro de 2019, ou "Lei de Liberdade Econômica" (LLE), foi estabelecido um dos mais importantes marcos do ordenamento jurídico pátrio em prol da liberdade. Com o rol da Declaração de Direitos de Liberdade Econômica (art. 3º da LLE), há clara sinalização do legislador em retirar o "peso do Estado" de cima do empreendedor, diminuindo os obstáculos à geração de riqueza e fomentando o desenvolvimento daquilo que a professora Deirdre McCloskey chama de "inovismo", isto é, a base dogmática que possibilitou o Grande Enriquecimento a partir do século XIX.4

Com seu propósito macroeconômico, a LLE não modifica diretamente normas típicas do comércio internacional, mas seus efeitos práticos o alcançam no sentido de fundamentar os questionamentos contra imposições desarrazoadas à liberdade comercial, com destaque àquelas relativas à importação e à simplicidade procedimental.5 Igualmente, a lei 13.874/2019 não dá qualquer tratamento específico aos métodos de resolução de conflitos, mas, tal como no caso anterior, o impacto da norma é reflexo em razão dos seus vetores axiológicos.

O artigo 2º da LLE fixa os quatro princípios norteadores da liberdade econômica no ordenamento brasileiro, todos decorrentes da livre iniciativa, que é fundamento da nossa ordem econômica, conforme a Constituição de 1988.6 Assim, é possível depreender das entrelinhas da LLE ser justamente a atuação do Estado o fator de limitação da liberdade econômica7 e, consequentemente, da criação de riqueza, de sorte que, numa leitura a contrario sensu, conclui-se pela necessidade de redução do atual grau de intervenção estatal para possibilitar o desenvolvimento econômico. Esse racional se aproveita, inclusive, para a eleição dos métodos de resolução de conflitos. Isso porque a liberdade como garantia no exercício de atividades econômicas (art. 2º, inciso I) e a intervenção subsidiária e excepcional do Estado sobre o exercício de atividades econômicas (art. 2º, inciso III) presumem o direito de pactuar livremente o método de composição. Liberdade econômica, em termos não científicos, é, também, não depender do Estado para solucionar um conflito.

A ideia parece simples, mas suas implicações são imensas. Diferentes formas de resolver um conflito comercial têm diferentes desdobramentos econômicos nesta relação jurídica; afinal, um método que fomente a cooperação entre as partes promove uma redução significativa de tempo e custos quando comparado a outro que estabeleça uma lógica adversarial e dependa de um terceiro para impor a solução. A mediação, portanto, para além dessas duas implicações econômicas diretas, ainda favorece a continuidade das obrigações que eram alvo do conflito; em outras palavras, a cultura de colaboração tende a garantir a preservação não só do contrato ou acordo firmado originalmente entre as partes, mas a multiplicação dessas relações no tempo. Neste sentido, a conclusão mais relevante sobre a proximidade da Convenção de Singapura com a Lei de Liberdade Econômica é a de remover obstáculos ao fluxo de bens e serviços.

Assim, o desenvolvimento da cultura de mediação se alia à defesa da liberdade econômica nas relações comerciais internacionais das quais o Brasil é parte como meios para o desenvolvimento econômico do país.8 Por exemplo, o setor de produção agropecuária, tendo em vista as inúmeras dificuldades históricas enfrentadas pelo Poder Judiciário brasileiro, notadamente a morosidade, a crise numérica e a insegurança jurídica, vem buscando cada vez mais a arbitragem como alternativa à judicialização.9 Não só o agronegócio, mas setores como mineração, aviação, manufatura e tecnologias diversas serão diretamente beneficiados pela adesão do Brasil à Convenção de Singapura. Sendo o Brasil parte deste regramento, mais uma porta se abre à liberdade econômica, à liberdade de pactuar, de sorte que o setor produtivo, gradualmente, perceberá as vantagens econômicas da mediação para o comércio internacional.

Outro ponto expressivo é a relação da adesão à Convenção Singapura com a avaliação do Brasil no relatório Doing Business do Banco Mundial, o qual avalia a facilidade de fazer negócios em cento e noventa países. O documento em questão é relevantíssimo para a atração de investimentos em um país, pois mede, a partir de doze indicadores, a qualidade regulatória dos mercados e, consequentemente, sinaliza quais as facilidades e dificuldades que um investidor terá se estiver considerando aplicar capital em determinado lugar.10

No indicador de "execução de contratos" (enforcing contracts), são atribuídos três pontos à solução alternativa de conflitos: um ponto e meio relativo à arbitragem e um ponto e meio relativo à mediação. Cada ponto e meio desses é subdividido em três quesitos valendo meio ponto. No último relatório, o Brasil adquiriu a pontuação máxima relativa à resolução alternativa de disputas.11 Logo, por mais que a Convenção de Singapura não tenha o condão de incrementar a presente avaliação do Brasil em mediação, espera-se, por outro lado, que ela ajude a manter o grau de excelência do país neste aspecto do indicador. Com a produção de efeitos da Medida Provisória 1.040/2021, também chamada de "Medida Provisória do Ambiente de Negócios", é possível especular que este concerto normativo assegurará ao país um rendimento consideravelmente superior àquele de 2020.

Atualmente, a Convenção de Singapura ainda está pendente de envio ao Congresso Nacional, onde serão debatidas as condições para a sua ratificação e, quando realizada, a sua promulgação por meio da edição do competente Decreto Legislativo. É neste momento, agora, que a participação social é mais necessária, de modo que os parlamentares brasileiros estejam conscientes da importância que a mediação tem no cenário global contemporâneo e, ainda mais, pelas perspectivas que abre para o nosso futuro.

*Felipe Pessoa Ferro é chefe de Gabinete Substituto na Secretaria de Advocacia da Concorrência e Competitividade do Ministério da Economia, onde também atua na assessoria jurídica.

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1 SOUZA, Mariana Freitas de; BREGA, Silvia Maria Costa. A Convenção de Singapura sobre acordos em mediação. Disponível aqui. Acesso em: 1.8.2021.

2 BRASIL. Exposição de Motivos Interministerial nº 00083/2019 ME/AGU/MJSP. Disponível aqui. Acesso em: 1.8.2021.

3 ROVAI, Armando Luiz. Aplicação dos princípios da liberdade econômica no Brasil. Belo Horizonte: D'Plácido, 2019, pp. 27-39.

4 MCCLOSKEY, Deirdre Nansen. Why liberalism works: how true liberal values produce a freer, more equal, prosperous world for all. New Haven; London: Yale University Press, 2019, pp. 29-33, 103-118, 143-155 e 204-210.

5 RAGE, Paulo Henrique Teixeira. "A Lei de Liberdade Econômica e seus possíveis reflexos no Direito do Comércio Internacional". In: OLIVEIRA, Amanda Flávio de (Org.). Lei de Liberdade Econômica e o ordenamento jurídico brasileiro. Belo Horizonte, São Paulo: D’Plácido, 2020, pp. 289-309.

6 STEINDORFER, Fabriccio. Fundamentos da liberdade econômica. São Paulo: Mizuno, 2021, pp. 25-31.

7 GUIMARÃES, Bernardo Strobel; SOUZA, Caio Augusto Nazario de. "Lei de Liberdade Econômica e os limites para a intervenção do Estado na economia". In: HUMBERT, Georges Louis Hage (Coord.). Lei de Liberdade Econômica e os seus impactos no direito administrativo. Belo Horizonte: Fórum, 2020, pp. 25-40.

8 MACIEL, Vladimir Fernandes; ANTONIO, Allan. "Brasil, China e Hong Kong: o que podemos aprender sobre liberdade econômica?". In: ROVAI, Armando Luiz (Org.). Agronegócio: da Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, com ênfase na atividade negocial e no agronegócio. Belo Horizonte, São Paulo: D’Plácido, 2020, pp. 89-106.

9 WARDE, Walfrido; RODRIGUES, Rafael Molinari. "Breves delineamentos sobre a arbitragem no agronegócio". In: ROVAI, Armando Luiz (Org.). Agronegócio: da Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, com ênfase na atividade negocial e no agronegócio. Belo Horizonte, São Paulo: D’Plácido, 2020, pp. 371-377.

10 WORLD BANK GROUP. Doing Business 2020: comparing business regulation in 190 economies. Disponível aqui. Acesso em: 1.8.2021.

11 WORLD BANK GROUP. Doing Business 2020: economy profile of Brazil. Washington: World Bank, 2020, pp. 90-100. Também disponível aqui. Acesso em: 1.8.2021.

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Colunistas

Mariana Freitas de Souza é advogada e mediadora. Presidente do ICFML Brasil. Diretora do CBMA. Membro da Comissão de Mediação do Conselho Federal da OAB. Membro da Comissão de Arbitragem da OAB/RJ. Membro da Comissão de Conciliação, Mediação e Arbitragem do IAB. Membro do Global Mediation Panel da ONU. JAMS Weinstein International Fellow. Sócia do PVS Advogados.

Samantha Longo é advogada e professora. Membro do FONAREF – Fórum Nacional de Recuperação Empresarial e Falências e membro do Comitê Gestor de Conciliação, ambos do CNJ. Conselheira da OAB/RJ. Mestre em Direito Empresarial e Cidadania pela UniCuritiba. Negotiation and Leadership Program na Harvard University. LLM. em Direito Empresarial pelo IBMEC/RJ. Autora de diversos artigos, coordenadora de obras coletivas, coautora da obra "A Recuperação Empresarial e os Métodos Adequados de Solução de Conflitos" e autora do livro "Direito Empresarial e Cidadania: a responsabilidade da empresa na pacificação dos conflitos".