Migalhas de Responsabilidade Civil

O direito de dizer adeus na perspectiva da responsabilidade civil

O direito de dizer adeus na perspectiva da responsabilidade civil.

27/8/2020

1 A morte e os rituais de despedida

Despedidas e rituais fúnebres são um direito? Ao levantar essa questão, não podemos deixar de mencionar Antígona,1 obra clássica de Sófocles, que traz o embate entre direito natural e direito positivo. Antígona, filha incestuosa de Édipo e Jocasta, enfrenta a tirania, opondo-se às razões do Estado, ao cuidar dos despojos do irmão, apesar da determinação do rei Creonte, que proibiu que lhe fosse dado sepultura. Segundo Antígona, as leis humanas (direito positivo) deveriam se submeter às leis divinas (direito natural).

Na contemporaneidade, não é necessário invocar normas prescritas por imortais aos mortais para justificar direitos tão ligados ao fim da existência humana. Nos últimos séculos, a função do direito natural se esvaiu com as declarações dos direitos humanos, a positivação e a constitucionalização desses direitos e, por fim, a construção da categoria dos direitos da personalidade.

Os rituais de sepultamento nos ajudam a “domesticar a morte”. Mas, como viver o luto em tempos de pandemia, quando não se pode preparar os corpos ou velar os mortos como a cultura determina?

Quantas tradições apareceram na tentativa de superar o luto, mas também no intuito de manter a memória. No Brasil, no Alto do Xingu, quando alguém do povo indígena Kuikuro morre, seu corpo é preparado para entrar no mundo dos mortos. No ritual, há que se abraçar o morto, adorná-lo e pintar seu corpo com desenhos ancestrais. A solenidade da despedida é necessária para que quem partiu continue sendo respeitado na outra vida. A não realização do ato tem, como consequência, uma vida de vergonha no outro mundo.2

Em País continental, são muitas as maneiras de dizer adeus aos mortos: sentinelas, o choro das carpideiras, missas, cultos, cerimônias de cremação ou enterro. Sem os rituais da despedida, resta-nos trazer aqui uma expressão muito trabalhada pelos estoicos: Memento mori. Lembremos de que somos mortais, lembremos de que vamos morrer, lembremo-nos da morte. Nesse novo tempo tão exigente, o desafio é ressignificar a morte, repensá-la e elaborá-la.

2. O direito de dizer adeus: um novo direito da personalidade

O Código Civil de 2002 foi a primeira norma legal brasileira a disciplinar explicitamente os direitos da personalidade, dedicando-lhes os arts. de 11 a 21. Isso não significou a introdução dessa categoria de direitos subjetivos na ordem jurídica nacional, porquanto já era reconhecida a partir da principiologia civilística e constitucional e, ainda, mediante leis esparsas. A construção doutrinária dos direitos da personalidade se antecipou à sua positivação no Código Civil de 2002. No entanto, não há uniformidade entre os juristas na tarefa de classificá-los.

Analisando as classificações de Adriano De Cupis, Orlando Gomes, Antônio Chaves, Pontes de Miranda e Francisco Amaral, o direito de dizer adeus encontra eco3.

Adriano De Cupis, Orlando Gomes e Francisco Amaral expressamente incluem, nas suas classificações, o direito ao cadáver; Antônio Chaves menciona o direito à liberdade de consciência e de religião e Pontes de Miranda afirma o direito à integridade psíquica como direito da personalidade. Quando frustrado o direito de dizer adeus, é desrespeitado o direito ao cadáver, que não foi velado, segundo cultura e religião familiar; o exercício do direito à liberdade de consciência e de religião é mitigado e, por fim, o não viver o luto pode trazer sérias consequências para a integridade psíquica dos que ficaram.

Mas, como compatibilizar o direito da personalidade de dizer adeus com a necessidade de observar as prescrições de proteção à saúde pública? Durante a pandemia e no período pós-pandemia, pode tornar-se comum a judicialização de conflitos, nos quais concorrem o direito social à saúde e o direito da personalidade de dizer adeus.

Recentemente a mídia veiculou a notícia4 de que, em Belo Horizonte, os familiares de um idoso que faleceu em razão de problemas respiratórios (pneumonia, com suspeita da Covid-19), pretendem propor ação judicial em face do hospital e do Município, por não terem velado o morto. Segundo relato da família, a pneumonia decorreu de aspiração por sonda nasal, sem qualquer ligação com a contaminação pelo coronavírus. Ainda assim, a instituição hospitalar aplicou ao paciente o mesmo protocolo para as pessoas infectadas. Dois exames foram feitos, cujo resultado negativo somente se tornou conhecido após o sepultamento.

A possibilidade de judicialização remete à análise do tema na perspectiva da responsabilidade civil, o que exige o enfretamento da concorrência de dois direitos voltados à proteção da dignidade da pessoa humana.

3.  A reparação civil e a concorrência entre o direito da personalidade de dizer adeus e o direito social à saúde

Durante muito tempo o sepultamento era visto como questão religiosa, familiar e cultural. Hoje é, sobretudo, uma questão sanitária, que justifica a edição de normas pelo Estado.

Diante do elevado número de funerais, o Ministério da Saúde elaborou Protocolo denominado Manejo de Corpos no Contexto do Novo Coronavírus – COVID-19, contendo as recomendações de como devem ser realizados os funerais, o manuseio do cadáver nos hospitais, em domicílio e em espaço público, com o objetivo específico de orientar as equipes de saúde de medicina legal e funerárias.

As pessoas que falecem em decorrência da covid-19, ou por suspeita dela, podem ser enterradas ou cremadas, mas há restrições relativas aos velórios e funerais de pacientes. São elas: durante todo o velório o caixão deverá permanecer lacrado para evitar qualquer contato com o corpo; a cerimônia de sepultamento deverá ocorrer em lugares ventilados e, preferencialmente, abertos; somente poderão permanecer na cerimônia fúnebre no máximo dez pessoas, respeitando a distância mínima de, pelo menos, dois metros entre elas, assim como outras medidas de isolamento social e de etiqueta respiratória; deverá ser evitada a permanência de pessoas que pertençam ao grupo de risco, quais sejam: idade igual ou superior a sessenta anos, gestantes, lactantes, portadores de doenças crônicas e imunodeprimidos. Ademais, outra restrição dolorosa para os familiares é não poder sequer aproximar-se do corpo morto para fazer o reconhecimento que, a depender da estrutura existente, deve ocorrer por meio de fotografias, evitando contato ou exposição.

Em tempo de pandemia, a saúde pública tem prioridade e limitações são legítimas. O direito de dizer adeus, enquanto direito voltado para a proteção da dignidade da pessoa humana, é um direito da personalidade. Mas como direito, o dizer adeus deve conformar-se com a ordem jurídica, concorrendo com outros, sobretudo aqueles que, como ele, visam a dignificar o ser humano. Não há, no entanto, a priori, prevalência do direito social à saúde sobre o direito da personalidade de dizer adeus.

Partindo do caso relatado, investigamos a possibilidade de reparação civil pela vulneração do direito da despedida, diante da morte.

No direito brasileiro, a responsabilidade do médico é sempre subjetiva (art. 14, § 4º, do Código de Defesa do Consumidor), de modo que se exige a conduta culposa do profissional da saúde. Outra é a solução quando se analisa a responsabilidade das instituições hospitalares: o hospital é prestador de serviço, e, não, profissional liberal, de modo que se configura a hipótese do caput do art. 14 do CDC, em vez do seu § 4º.

A distinção entre obrigação de meio e obrigação de resultado é igualmente relevante: na primeira, o devedor se obriga a atingir ou alcançar determinado fim, ao passo que na segunda, o devedor se vincula ao emprego de determinado meio, sem prometer certo resultado. Na obrigação de meio basta que a parte contratada seja o mais diligente possível para tentar alcançar o resultado almejado pelo contratante. Na obrigação de resultado o contratado assume o dever de atingir um resultado certo e determinado.

Para além da atuação técnica voltada para o enfrentamento da covid-19, a atuação do médico envolve os deveres anexos, fundamentados na boa-fé objetiva, dentre os quais o dever de respeitar o direito – tanto do paciente como das pessoas de seu convívio familiar e íntimo – do último momento juntos: o direito de dizer adeus.

Feitas essas considerações, pode-se delinear os contornos da reparação civil pela violação de direito de dizer adeus: trata-se de responsabilidade contratual, de natureza subjetiva, imputada ao profissional liberal (médico), pelo descumprimento de obrigação de meio e pela violação de dever anexo fundado na boa fé objetiva. Ocorre, portanto, violação positiva do contrato.

Cumpre destacar que o médico somente será compelido a reparar os danos diante da comprovação de sua conduta ilícita e culposa, além do nexo causal entre o ato e o dano. O dano, no caso, é de natureza extrapatrimonial (gênero), na espécie dano moral, por violação a direito da personalidade5.

Focando no caso concreto – que aqui não se pretende solucionar, mas, a partir dele, problematizar – importa investigar a hipótese de erro de diagnóstico e, consequente aplicação de procedimentos inadequados ao caso, assim como a própria relação médico-paciente (ou familiares do paciente), pois é dever de conduta do médico ouvir, antes de decidir sobre diagnósticos, fazer prognósticos e implementar medidas.

Pela notícia, aparentemente havia espaço para o diálogo: a filha do idoso chegou a apresentar um laudo do geriatra que apontava a “aspiração por sonda” como a causa da pneumonia. No entanto, a decisão final – que não veio do médico que atendia o idoso, mas da Comissão de Controle de Infecção Hospitalar – foi contrária à expectativa da família, o que não significa, necessariamente, que houve antijuridicidade no ato decisório. A responsabilização civil, como já enfatizado, vai depender de estarem presentes todos os seus elementos.

Essa reflexão lançada, em meio a pandemia da covid-19, busca pontuar as consequências jurídicas que podem advir dos óbices aos rituais de sepultamento e despedida dos mortos. Nem sempre a faticidade vai se acomodar à juridicidade, o que pode ser suficiente para ensejar conflitos merecedores da intervenção do Estado-juiz, ora para reconhecer a necessidade de prevalência do direito social à saúde, ora para atribuir responsabilidade civil, quando, na concorrência de direitos, há motivos para abrigar a legítima expectativa de compatibilização entre duas categorias de direitos tendentes a dignificar o ser humano.

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*Maria de Fátima Freire de Sá é Doutora (UFMG) e Mestre (PUCMinas) em Direito. Professora da PUCMinas. Membro do IBERC. Pesquisadora do CEBID.




*Taisa Maria Macena de Lima é Doutora e Mestre em Direito pela UFMG. Professora da PUCMinas. Desembargadora do Trabalho.





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1 - SÓFOCLES, A trilogia tebana: Édipo Rei, Édipo em Colono, Antígona. Trad. Mario da Gama Kury. Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar, 2011.

2 - JUCÁ, Beatriz. O coronavírus está quebrando a nossa crença, o luto imposto aos povos indígenas na pandemia. EL PAÍS. São Paulo. 11 jul. de 2020. Disponível aqui.. Acesso em: 11 jul. 2020.

3Sobre todas as classificações: NAVES, Bruno Torquato de Oliveira; SÁ, Maria de Fátima Freire de. Direitos da personalidade. Belo Horizonte: Arraes, 2017.

4 - RONAN, Gabriel. Família não vela idoso por suspeita de COVID-19, exames dão negativo, e caso pode parar na Justiça. Disponível aqui. Acesso em 29/07/2020

5 - ROSENVALD, Nelson. Por uma tipologia aberta dos danos extrapatrimoniais. Migalhas, publicado em: 23 abr. 2020. Disponível aqui. Acesso em: 15 jun. 2020.

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JUCÁ, Beatriz. O coronavírus está quebrando a nossa crença, o luto imposto aos povos indígenas na pandemia. EL PAÍS. São Paulo. 11 jul. de 2020. Disponível aqui. Acesso em: 11 jul. 2020.

NAVES, Bruno Torquato de Oliveira; SÁ, Maria de Fátima Freire de. Direitos da personalidade. Belo Horizonte: Arraes, 2017.

ROSENVALD, Nelson. Por uma tipologia aberta dos danos extrapatrimoniais. Migalhas, publicado em: 23 abr. 2020. Disponível aqui. Acesso em: 15 jun. 2020.

SÓFOCLES, A trilogia tebana: Édipo Rei, Édipo em Colono, Antígona. Trad. Mario da Gama Kury. Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar, 2011.

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Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil). @iberc.brasil

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Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho é professor titular e ex-coordenador do programa de pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ (mestrado e doutorado). Doutor em Direito Civil e mestre em Direito da Cidade pela UERJ. Presidente do Fórum Permanente de Direito Civil da Escola Superior de Advocacia Pública da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro (ESAP/PGE). Vice-presidente do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos da Responsabilidade Civil). Autor de livros e artigos científicos. Advogado, parecerista e consultor em temas de Direito Privado.

Fernanda Schaefer é pós-doutora pelo Programa de pós-graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC-PR. Doutora em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha). Professora do UniCuritiba. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC-PR. Assessora Jurídica do CAOP Saúde MPPR.

Igor de Lucena Mascarenhas é advogado e professor universitário nos cursos de Direito e Medicina (UFPB / UNIFIP). Doutorando em Direito pela UFBA e doutorando em Direito pela UFPR. Mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB. Especialista em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico vinculado à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Paulo Roque Khouri é doutorando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público — IDP. Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UNICEUB (1992) e em Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) (1987); mestrado em Direito Privado pela Universidade de Lisboa (2006). Atualmente é professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), sócio do escritório de advocacia Roque Khouri & Pinheiro Advogados Associados S/C.