Migalhas de Responsabilidade Civil

Taxa legal de juros no Brasil: a saga continua

Taxa legal de juros no Brasil: a saga continua.

22/6/2021

Juros são frutos civis do capital e a ele se aderem de forma acessória. Sua natureza acessória, entretanto, não os faz meros coadjuvantes na construção do quantum indenizatório. Vai sem dizer que a incidência de juros – aqui se tem em conta aqueles de natureza moratória - pode alterar de forma significativa o montante indenizatório. Esse impacto pode se dar tanto em razão do tempo de duração do estado de mora, desde sua constituição até a sua purgação, como também em razão da taxa de juros de juros aplicada. É sobre ela que se desenvolvem as linhas que seguem.

O ponto de partida para essa reflexão é o texto legal, mais precisamente o artigo 406 do Código Civil, que tem a seguinte redação:

Art. 406. Quando os juros moratórios não forem convencionados, ou o forem sem taxa estipulada, ou quando provierem de determinação da lei, serão fixados segundo a taxa que estiver em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional.

A regra substituiu o art. 1.062 do Código Civil de 1916, o qual adotava um índice fixo de seis por cento ao ano, aplicável na ausência de convenção entre as partes. Na vigência do revogado art. 192, § 3º da Constituição Federal (EC 40/2003), e de acordo com o disposto no art. 1º da Lei de Usura (decreto 22.626/1933), o limite máximo de juros pactuado poderia ser de 12% ao ano, que se obtinha como o dobro da taxa legal então vigente.  

Na redação do art. 406 CC, entretanto, optou-se por fazer remissão a uma taxa não nominada que suscita divergências jurisprudenciais e doutrinárias.

Afinal, como o STJ lê a controvérsia?

A resposta à pergunta nos leva a três recursos que colocaram na ordem do dia a discussão do tema: um REsp já julgado, um REsp em julgamento e um EResp em vias de ser julgado.

No primeiro deles, REsp 1.846.819 (DJe 15.10.2020), de relatoria do Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, a Terceira Turma deu provimento unânime ao recurso especial para alterar a taxa de juros incidente sobre a dívida, antes fixada em 1% ao mês: “Nos termos dos Temas 99 e 112/STJ, a taxa de juros moratórios a que se refere o art. 406 do Código Civil é a taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e Custódia - SELIC, vedada a acumulação com correção monetária.”

Apesar do entendimento unânime em favor da SELIC, que tem sido a marca da jurisprudência daquela corte, a discussão havida entre os Ministros apontou para uma possível mudança de entendimento. O teor do julgamento foi noticiado no Migalhas e pode ser acessado aqui.

O efeito prático de uma possível alteração de entendimento é enorme. Em junho de 2021, data em que esse texto foi escrito, a taxa SELIC é de 4,25% ao ano, conforme decisão do Comitê de Política Monetária (COPOM) datada 16 de junho de 2021. No período ânuo, a aplicação do percentual previsto no CTN levaria à incidência de juros na base de 12%. E foi, aliás, com base na variação (negativa) da SELIC nos últimos tempos que a discussão entre os Ministros se pautou.

O segundo julgamento, ainda não finalizado, refere-se ao REsp n. 1.081.149, que teve início em novembro de 2020, com o voto do Ministro Relator Luis Felipe Salomão no sentido de distinguir a taxa de juros moratórios aplicável à responsabilidade civil contratual e àquela extracontratual. Nas suas palavras, a “proposta de atualização por um outro ângulo da visão que hoje prevalece sobre o tema” tem como pano de fundo a distinção dos termos a quo de incidência de juros de mora e de correção monetária (Súmula 54 e 362).

A compreensão exata do argumento remete ao entendimento do STJ no sentido de ser incabível a cumulação da SELIC e da correção monetária, ao entendimento de que a taxa SELIC abrange juros e correção monetária (vide, por todos, REsp 1136733/PR, Rel. Ministro Luiz Fux). Nos casos em que os termos a quo não sejam coincidentes, haveria um empecilho prático à aplicação da SELIC. Na proposta do relator, a taxa de juros moratórios na responsabilidade extracontratual deveria ser a taxa de 1% (um por cento) prevista no artigo 161 do Código Tributário Nacional (CTN).

O terceiro julgamento, do EREsp n. 1.731.193, recentemente admitido (DJe 29.03.2021), funda-se exatamente na mesma controvérsia em torno do art. 406 CC.

Esse breve resumo é o que basta para confirmar o panorama geral do entendimento do STJ: até o presente momento, o entendimento que vigora no STJ é no sentido de que a taxa legal de juros referida no artigo 406 CC é a SELIC.

É verdade, porém, que a realidade é diversa no âmbito dos Tribunais Estaduais. Apenas a título exemplificativo, da Tabela Prática publicada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo e da planilha de cálculos criada a partir dela, consta expressa menção de que "competem juros nos termos do Código Civil de 2002, art. 406, a 12% a.a. a partir da entrada em vigor da lei"1.

Qual a razão de ser dessas duas correntes interpretativas?

O embate entre o entendimento atual do STJ, em favor da SELIC, e dos Tribunais Estaduais, em favor da taxa de 1% (um por cento), reflete duas correntes sobre como interpretar a remissão feita no artigo 406 à "taxa que estiver em vigor para a mora de impostos devidos à Fazenda Nacional".

A primeira delas defende que a remissão é à taxa de 1% (um por cento), ex vi artigo 161, § 1º do Código Tributário Nacional (CTN) – "§ 1º se a lei não dispuser de modo diverso, os juros de mora são calculados à taxa de um por cento ao mês". Ele encontra abrigo na doutrina, como se vê pelo Enunciado n. 20 das I Jornadas de Direito Civil: "A taxa de juros moratórios a que se refere o art. 406 é a do art. 161, § 1º, do Código Tributário Nacional, ou seja, um por cento ao mês".2

Os principais argumentos a favor da aplicação da taxa de 1% ao mês, entende-se, são de ordem prática: a taxa SELIC, definida pelo Conselho Monetário Nacional (COPOM) com o objetivo de tratar de aspectos macroeconômicos, é naturalmente variável, o que impede a previsibilidade desejada nas relações civis3; a volatilidade da taxa torna inviável o controle do limite da pactuação de juros previsto na Lei de Usura (afinal, se taxa legal é variável, como controlar o limite imposto pelo legislador?); o fato de a SELIC embutir correção monetária torna impraticável a aplicação de juros e de correção monetária apartados e, por fim, a SELIC não seria uma taxa de juros (na lição sempre lúcida do Professor Simão: "simples assim: não pode ser taxa de juros o que não tem natureza jurídica de juros, uma taxa de remuneração que cuida de política macroeconômica".4)

A segunda, que corresponde ao entendimento até então adotado pelo STJ, compreende que a remissão leva à aplicação da taxa SELIC, instituída como juros de mora para tributos federais a partir de 1º de abril de 1995 pela lei 9.065 de 1995, também referida nos decretos 7.212/2010 (IPI) e n. 9.580/2018 (IR).

O primeiro argumento para essa conclusão repousa na intepretação literal do dispositivo. O art. 406 CC remete à taxa que estiver em vigor para a mora de impostos devidos à Fazenda Nacional. Essa taxa é, hoje, a SELIC. Aliás, anota-se que, recentemente, o Supremo Tribunal Federal decidiu que as legislações estaduais podem fixar juros moratórios sobre seus impostos, desde que observem o limite dos juros fixados pela Fazenda Nacional. Do inteiro teor da decisão, foi feita referência à SELIC, e não ao art. 161, § 1º do CTN. (STF, ARE 1216078 RG).

O segundo, remete ao histórico legislativo do art. 406 CC. Desse histórico, sobressaem duas emendas propostas no Câmara dos Deputados de n. 41 e 332. Da leitura das razões para suas rejeições, conclui-se que o legislador optou por uma taxa variável de juros, em substituição àquela fixa antes aplicável.

A Emenda 41 sugeria um percentual fixo, de 18%, em substituição àquele previsto na redação proposta do dispositivo. A emenda foi rejeitada: "numa economia, como a nossa, marcada pela instabilidade, é ousado prefixar os juros moratórios nos antigos 6% ao ano, ou nos 18% propostos. O art. 406 do Projeto prudentemente se reporta a uma taxa variável, fácil e objetivamente apurável". Já a Emenda 362 também propôs a adoção de um percentual fixo, "inteligível para o cidadão comum do povo". Ela foi rejeitada, constando do parecer parcial: "taxa fixa, em tempos de economia oscilante, é proposição perigosa".

Mas, afinal, qual entendimento deve prevalecer?

A pergunta de um milhão de dólares – em alguns casos, literalmente – ainda não foi respondida e a ausência de resposta a tema tão sensível não é desejável. Com o intuito de contribuir ao debate, lanço algumas provocações, por entender que a discussão será mais produtiva na medida em que os argumentos de cada um dos lados sejam analisados em conjunto, e não de forma apartada:

O primeiro ponto que considero relevante é aquele que diz respeito à previsibilidade da taxa: a noção de previsibilidade diz respeito ao conhecimento prévio do percentual aplicável ou da forma de obtenção desse percentual? Qual a importância da intenção do legislador, que expressamente se afastou de um percentual fixo, nesse particular?

O segundo ponto que considero relevante diz respeito à cumulação de correção monetária e de remuneração do capital: será que a SELIC tem uma natureza diversa e diferenciada das demais taxas de juros? Do ponto de vista da ciência econômica, as taxas de juros não compreendem também correção monetária?

O terceiro ponto se refere à natureza da taxa SELIC como taxa de juros: qual o impacto de a Receita Federal e o Banco Central considerarem a SELIC como taxa de juros? E, ademais, qual o alcance da menção do legislador à "taxa que estiver em vigor para mora"?

O quarto ponto diz respeito à intepretação do art. 406: qual o fundamento legal para aplicação do art. 161, § 1º do CTN? Se é certo que a regra não foi revogada – afinal, ela permanece vigente e aplicável se inexistir lei em sentido contrário – como aplicá-la em situação diversa daquela prevista em seu suporte fático?

O quinto ponto endereça problemas práticos de aplicação da SELIC, que são evidentes e não podem ser negados: a existência de dificuldades de ordem prática é suficiente para negar a aplicação da SELIC? Essa provocação lança luzes também sobre dois pontos frequentemente referidos na discussão, mas pouco verticalizados: o alcance da Lei de Usura e o termo a quo da contagem de correção monetária. Mas esses são tema para outra coluna…

Finalizo lembrando a célebre lição do Professor Clóvis do Couto e Silva de que, sem que se estabeleça o conceito de dano, não há como se ter a exata compreensão da responsabilidade civil de determinado país.5 Essa tarefa tampouco é possível sem a compreensão exata de seus encargos moratórios, acessórios que também compõem a noção de dano.

*Renata Carlos Steiner Reisdorfer é doutora em Direito Civil pela Universidade de São Paulo, aprovada com distinção e menção honrosa pelo Departamento de Direito Civil. Mestre em Direito das Relações Sociais e graduada em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Foi pesquisadora visitante nas Universidades de Munique (LMU) e Augsburg (Alemanha). Professora de Direito Civil na Escola de Direito de SP. Atua como árbitra em São Paulo.

__________

1 Disponível aqui.

2 O Enunciado, aprovado ainda na vigência do revogado artigo 193 da Constituição Federal,  ainda dispõe que: "A utilização da taxa SELIC como índice de apuração dos juros legais não é juridicamente segura, porque impede o prévio conhecimento dos juros; não é operacional, porque seu uso será inviável sempre que se calcularem somente juros ou somente correção monetária; é incompatível com a regra do art. 591 do novo Código Civil, que permite apenas a capitalização anual dos juros, e pode ser incompatível com o art. 192, § 3º, da Constituição Federal, se resultarem juros reais superiores a doze por cento ao ano."

3 Na síntese de Giovanni Nanni: "Em suma, o uso da taxa SELIC para o propósito em análise é de todo inconveniente, pois imprecisa e flutuante para atuar em relações civis, subtraindo qualquer sorte de previsibilidade." (NANNI, Giovanni Ettore; GUERRA, Alexandre. Comentários ao Código Civil: direito privado contemporâneo. São Paulo: Editora Saraiva, 2019. 9788553612369. Disponível aqui).

4 SIMÃO, José Fernando. In: SCHREIBER, Anderson e outros. Código Civil Comentado - Doutrina e Jurisprudência. Rio de Janeiro: Grupo GEN, 2021. 9786559640720. Disponível aqui. Acesso em: 21 Jun 2021.

5 COUTO E SILVA, Clovis. O conceito de dano no Direito brasileiro e comparado. In: FRADERA, Vera Maria Jacob de (org.). O Direito Privado brasileiro na visão de Clóvis do Couto e Silva. Porto Alegrre: Livraria do Advogado, 1997.

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Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho é professor titular e ex-coordenador do programa de pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ (mestrado e doutorado). Doutor em Direito Civil e mestre em Direito da Cidade pela UERJ. Presidente do Fórum Permanente de Direito Civil da Escola Superior de Advocacia Pública da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro (ESAP/PGE). Vice-presidente do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos da Responsabilidade Civil). Autor de livros e artigos científicos. Advogado, parecerista e consultor em temas de Direito Privado.

Fernanda Schaefer é pós-doutora pelo Programa de pós-graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC-PR. Doutora em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha). Professora do UniCuritiba. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC-PR. Assessora Jurídica do CAOP Saúde MPPR.

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Paulo Roque Khouri é doutorando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público — IDP. Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UNICEUB (1992) e em Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) (1987); mestrado em Direito Privado pela Universidade de Lisboa (2006). Atualmente é professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), sócio do escritório de advocacia Roque Khouri & Pinheiro Advogados Associados S/C.