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O CNJ e a redescoberta da vontade: Por que o provimento 206/25 inaugura uma nova era para o Direito Notarial e Judicial

A coluna aborda como o provimento 206/25 do CNJ reconhece a autocuratela, fortalece a vontade do indivíduo e transforma o notariado em guardião da autonomia e da dignidade.

10/11/2025

1. O marco invisível de uma revolução silenciosa

Nem toda transformação jurídica nasce com estardalhaço.

Algumas entram em vigor em silêncio - e é justamente por isso que são revolucionárias.

O provimento 206, de 6 de outubro de 2025, da Corregedoria Nacional de Justiça, é uma dessas normas discretas que mudam muito mais do que parecem. Sob o verniz técnico de uma alteração no Código Nacional de Normas do Foro Extrajudicial, o CNJ acaba de inaugurar uma nova lógica na relação entre autonomia privada, proteção estatal e função notarial.

Aparentemente simples, o provimento obriga os juízes, ao processar uma interdição, a consultar a CENSEC - Central Eletrônica Notarial de Serviços Compartilhados para verificar a existência de escritura de autocuratela - ou de diretivas equivalentes.

Na prática, é uma virada de paradigma: o Estado, pela via judicial, passa a reconhecer a precedência da vontade declarada sobre a decisão substitutiva.

O resultado é uma transformação profunda, embora não dita em voz alta: o notariado deixa de ser mero agente de formalização e passa a ser depositário da vontade existencial da pessoa humana.

2. O pano de fundo: da curatela à autocuratela

A curatela sempre foi o espaço mais tenso do direito civil.

Ali convivem, em permanente atrito, dois valores igualmente legítimos: a proteção da pessoa vulnerável e a autonomia da vontade.

Durante séculos, prevaleceu a lógica paternalista: o incapaz era tutelado, e sua vontade, presumidamente inválida, cedia ao juízo do Estado. Com a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (ONU, 2006) - internalizada pelo decreto 6.949/09 - e com o Estatuto da Pessoa com Deficiência (lei 13.146/15), essa premissa começou a ruir.

O novo paradigma é outro: a pessoa não perde sua dignidade jurídica quando sua lucidez vacila. O foco desloca-se da substituição para o apoio à tomada de decisão.

É nesse contexto que surge a autocuratela - o instrumento pelo qual alguém, plenamente capaz, manifesta de forma antecipada quem deverá representá-lo ou assisti-lo caso venha a ser acometido por incapacidade futura.

Trata-se de uma declaração de vontade feita enquanto há consciência, para valer quando não houver mais. É, em suma, uma autotutela da dignidade.

E o CNJ, ao editar o Provimento 206/2025, foi o primeiro órgão estatal a reconhecer oficialmente o alcance jurídico dessa manifestação.

3. O alcance normativo e o salto sistêmico

Tecnicamente, o provimento 206 altera o provimento 149/23, que instituiu o CNN/CN/CNJ-Extra - Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça - Foro Extrajudicial.

Foram inseridos dois comandos cruciais:

Em termos sistêmicos, isso tem três efeitos devastadores - no bom sentido.

Integra o notariado à jurisdição - o juiz, para decidir, passa a depender de uma informação registrada em ambiente notarial. Reforça a força normativa da vontade - a escolha prévia do curador, feita pelo interessado, ganha prioridade procedimental e força de orientação judicial. Consolida o notariado digital como arquivo da autonomia - a CENSEC passa a ser, simbolicamente, o “repositório da lucidez” nacional.

O impacto é imenso. O CNJ transformou a autocuratela em ato de eficácia processual, e o notário em agente de proteção jurídica da vontade antecipada.

4. A autocuratela como expressão da dignidade

A autocuratela não é mero documento. É uma declaração ética, lavrada no auge da razão, sobre como se deseja ser protegido quando ela faltar.

Ela é o ponto máximo da autonomia privada aplicada à vulnerabilidade. Por isso, não é exagero dizer que a autocuratela é a forma mais sofisticada de manifestação da dignidade humana — porque é a dignidade projetada no tempo.

O Estado, quando reconhece essa escritura, deixa de tratar o cidadão como objeto de proteção e passa a reconhecê-lo como sujeito de decisão.

É um movimento sutil, mas civilizatório. E é também um reconhecimento implícito de que a vontade livre, quando manifestada de forma autêntica e formalizada com fé pública, deve sobreviver à incapacidade.

Essa é a essência do que o CNJ fez: deu à vontade prévia um status de continuidade jurídica, preservando-a do esquecimento judicial.

5. Sigilo, fé pública e proteção de dados sensíveis

Um dos pontos mais inteligentes - e menos comentados - do provimento 206 é o sigilo da autocuratela. O art. 110-A estabelece que a certidão do inteiro teor da escritura só pode ser fornecida ao declarante ou mediante ordem judicial.

Essa limitação não é mero formalismo. É o reconhecimento de que a autonomia é também privacidade.

A autocuratela pode conter informações íntimas, médicas, familiares, emocionais. Torná-la pública seria o mesmo que expor a alma de quem, paradoxalmente, buscou o notário para se proteger.

O CNJ, ao impor esse filtro, reconhece algo que poucos tribunais ainda compreendem: o notariado é a primeira linha de defesa da intimidade na era digital.

Enquanto o Judiciário informatiza tudo - inclusive a dor -, o notariado mantém uma reserva moral: a fé pública que protege o sigilo. É um paradoxo fascinante - e necessário.

6. CENSEC e a transformação do notariado em infraestrutura jurídica nacional

A CENSEC, criada originalmente para integrar informações notariais e evitar fraudes, agora assume um novo papel: o de infraestrutura da confiança existencial.

Com o Provimento 206, ela deixa de ser um banco de dados estático e passa a operar como mecanismo de interoperabilidade entre autonomia privada e jurisdição.

O juiz consulta, o sistema responde, e a decisão se ancora em uma vontade previamente autenticada.

Estamos diante de uma nova forma de diálogo entre Poderes: o CNJ constrói, no plano infralegal, uma arquitetura de cooperação entre vontade, fé pública e decisão judicial.

E isso tem implicações profundas. A médio prazo, é provável que a CENSEC se torne fonte de prova e de validade para outras diretivas existenciais — como testamentos vitais, diretivas médicas e disposições patrimoniais complexas.

O Brasil, sem alarde, está criando um modelo híbrido de governança da vontade humana, combinando blockchain notarial, interoperabilidade judicial e ética da autenticidade.

7. O notário como curador da vontade

O notário sempre foi visto como técnico da forma.

O Provimento 206 o eleva à condição de curador da vontade.

Sua função, agora, não é apenas lavrar, mas garantir que a manifestação seja livre, consciente e juridicamente sustentável. Isso o coloca na fronteira mais nobre do Direito: a intersecção entre liberdade e proteção.

Enquanto o juiz decide sobre fatos, o notário atua sobre valores. Enquanto o processo lida com o que já aconteceu, o notário trabalha com o que ainda vai acontecer. É o profissional do futuro da vontade.

Essa mudança é gigantesca - e talvez ainda subestimada. Ela redefine a função notarial não como mero serviço público delegado, mas como instituição de garantia de direitos fundamentais.

8. A tensão inevitável: autonomia versus paternalismo judicial

Toda inovação que fortalece a vontade individual esbarra na resistência do paternalismo judicial.

Não será diferente aqui.

Haverá juízes que insistirão em “verificar” se a autocuratela é “adequada”. Haverá decisões anulando escrituras sob o pretexto de “proteger o interditando de si mesmo”.

Mas o debate já mudou de lugar. A partir do Provimento 206, o ônus argumentativo se inverte: quem quiser afastar a vontade prévia terá de justificar por que o Estado sabe melhor do que a própria pessoa o que é bom para ela.

Esse é o ponto filosófico que o CNJ introduz sem dizer: a presunção de validade da vontade autônoma. E isso - ainda que discreto - é revolucionário.

9. Conclusão - o CNJ e a vontade como tecnologia social

O provimento 206/25 é, talvez, o ato mais sofisticado do CNJ desde o provimento 100/20, que inaugurou o e-Notariado. Mas aqui, o tema não é tecnologia: é humanidade.

O CNJ compreendeu que o verdadeiro avanço digital não está em processar mais rápido, mas em resguardar melhor a vontade.

A autocuratela é a expressão contemporânea da liberdade. E o notariado é o espaço institucional em que a liberdade ganha forma, validade e abrigo.

Ao editar o Provimento 206, o CNJ deu ao Direito brasileiro uma mensagem clara:

“A dignidade humana começa quando o Estado aprende a ouvir o que o cidadão já disse, antes de não poder mais dizer.”

Em tempos de automação e despersonalização das decisões, é reconfortante ver o órgão máximo da Justiça afirmando, ainda que em tom técnico, que a vontade humana continua sendo o centro do sistema jurídico.

O resto - todo o resto - é apenas administração.

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Referências

Conselho Nacional de Justiça. Provimento nº 206, de 6 de outubro de 2025.

Conselho Nacional de Justiça. Provimento nº 149, de 30 de agosto de 2023.

Constituição Federal de 1988.

Lei nº 8.935/1994 (Lei dos Notários e Registradores).

Lei nº 13.146/2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência).

Decreto nº 6.949/2009 (Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência).

Código Civil, arts. 1.767 a 1.783.

Códigos de Normas das CGJ/RJ e CGJ/ES.

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Coordenação

Carlos E. Elias de Oliveira é Membro da Comissão de Reforma do Código Civil (Senado Federal, 2023/2024). Pós-Doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP). Doutor, mestre e bacharel em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). 1º lugar em Direito no vestibular 1º/2002 da UnB. Advogado, parecerista e árbitro. Professor de Direito Civil e de Direito Notarial e Registral. Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil, Processo Civil e Direito Agrário (único aprovado no concurso de 2012). Ex-assessor de ministro STJ. Membro do Conselho Editorial da Revista de Direito Civil Contemporâneo (RDCC). Fundador do IBDCont (Instituto Brasileiro de Direito Contratual). Membro da ABDC (Academia Brasileira de Direito Civil), IBDfam (Instituto Brasileiro de Direito de Família),do IBRADIM (Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário) e do IBERC.

Flauzilino Araújo dos Santos, 1º Oficial de Registro de Imóveis da Comarca de SP e presidente do Operador do Sistema de Registro de Imóveis Eletrônico (ONR). Diretor de Tecnologia do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil - IRIB. Licenciado em Estudos Sociais, bacharelado em Direito e em Teologia e mestrado em Direito Civil. Autor de livros e de artigos de Direito publicados em revistas especializadas. Integra, atualmente, a Comissão de Concurso Público para outorga de Delegações de Notas e de Registro do Estado de Alagoas, realizado pelo CNJ.

Hercules Alexandre da Costa Benício, doutor e mestre em Direito pela Universidade de Brasília. É tabelião titular do Cartório do 1º Ofício do Núcleo Bandeirante/DF; presidente do Colégio Notarial do Brasil - Seção do Distrito Federal e acadêmico ocupante da Cadeira nº 12 da Academia Notarial Brasileira. Foi Procurador da Fazenda Nacional com atuação no Distrito Federal.

Ivan Jacopetti do Lago, diretor de Relações Internacionais e Coordenador Editorial do IRIB. Bacharel, mestre e doutor em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP. Pós-graduado pelo CeNOR - Centro de Estudos Notariais e Registrais da Universidade de Coimbra e pela Universidade Autónoma de Madri (Cadri 2015). 4º Oficial de Registro de Imóveis de SP.

Izaías G. Ferro Júnior é oficial de Registro de Imóveis, Civil das Pessoas Naturais e Jurídicas e de Títulos e Documentos da Comarca de Pirapozinho/SP. Mestre em Direito pela EPD - Escola Paulista de Direito. Doutorando em Direito pela Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo - FADISP. Professor de graduação e pós-graduação em Direito Civil e Registral em diversas universidades e cursos preparatórios.

Sérgio Jacomino é presidente do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil (IRIB) nos anos 2002/2004, 2005/2006, 2017/2018 e 2019/2020. Doutor em Direito Civil pela UNESP (2005) e especialista em Direito Registral Imobiliário pela Universidade de Córdoba, Espanha. Membro honorário do CeNoR - Centro de Estudos Notariais e Registais da Universidade de Coimbra e Quinto Oficial de Registro de Imóveis da cidade de SP.