Observatório da Arbitragem

Arbitragem, Fazenda Pública e a observância ao regime de precatórios

Uma questão que vem sendo abordada pela doutrina é a inclusão ou não dos créditos decorrentes de sentenças arbitrais ao regime constitucional dos precatórios.

7/6/2022

A Emenda Constitucional n. 113, promulgada no fim de 2021, estabeleceu um o novo regime de pagamentos de precatórios. Esse regime1, aliás, presente desde a Constituição de 1934, foi objeto de valioso comentário do professor Pontes de Miranda, segundo o qual essa forma pagamentos de créditos devidos pela Fazenda Pública constitui "medida constitucional moralizadora, contra a advocacia administrativa, diante da necessidade de fazê-los na ordem de apresentação dos precatórios"2.

De acordo com  Ministro Celso de Mello a exigência constitucional relativa à expedição de precatório tem como escopo i) assegurar a igualdade entre os credores e proclamar a inafastabilidade do dever estatal de solver os débitos judicialmente reconhecidos em decisão transitada em julgado, ii) evitar favorecimentos pessoais indevidos e iii) frustrar tratamentos discriminatórios, evitando injustas perseguições ou preterições motivadas por razões destituídas de legitimidade jurídica (ADI 2.356 e ADI 2.362).

Pois bem, uma questão que vem sendo abordada pela doutrina é a inclusão ou não dos créditos decorrentes de sentenças arbitrais ao regime constitucional dos precatórios. Ora, a norma constitucional estabelece que os pagamentos devidos pelas Fazendas Públicas Federal, estaduais, distrital e municipais deverão seguir tal regime de pagamento (art. 100). O termo 'sentença judiciária' adotado pelo constituinte não diz respeito apenas a numerários contidos em sentenças judiciais, mas também aqueles decorrente de títulos executivos judiciais3 e, como não poderia deixar de ser, das sentenças arbitrais condenatórias4.

O modelo de pagamento via precatório é prerrogativa das Fazendas Públicas e se funda na Constituição. O ambiente processual em que as prerrogativas da Fazenda Pública geralmente não tem aplicabilidade imediata é na arbitragem. Encerrada a fase arbitral, todos os atos executivos para reconhecimento do crédito e o seu respectivo pagamento deverão ocorrer no Poder Judiciário e sob o regime do estabelecido na Constituição (art. 100) e no Direito Processual Civil (art. 534, 535 e 910).

De todo modo, deve-se considerar que a existência dos precatórios se fundamenta na real necessidade de um mecanismo jurídico-constitucional que torne possível a previsão orçamentária de despesas públicas decorrentes de provimentos que estabelecem a obrigação de pagar quantia certa, seja de que natureza for. Essa questão, sem dúvida, gera desconforto por parte do vencedor-credor porque há certeza quanto ao valor, mas incerteza quanto ao momento do seu pagamento e mais ainda depois da EC 113/2021.

Concordamos que o Estado brasileiro precisa aperfeiçoar o seu sistema financeiro e, especificamente, o manejo do orçamento público. A verdade é que não há nenhum impedimento para previsão em lei orçamentária de reserva de recursos para pagamento de custas, despesa e possíveis condenações nas arbitragens. Tudo dependente de vontade político-governamental. De todo modo, e apesar de tudo, existem algumas alternativas para aqueles que pretendem evitar o desconforto e a morosidade decorrente da ordem cronológica estabelecida pelo caput do art. 100 da CF.  

A primeira alternativa é a execução da sentença arbitral no exterior, utilizando-se da  Convenção de Nova Iorque de 1958, ratificada pelo Brasil, pelo decreto 4.311/02, a qual estabelece que a sentença arbitral proferida no território brasileiro poderá ser executada em qualquer outro país que tenha aderido a tal convenção internacional. A pactuação da convenção arbitral impede a posterior invocação de imunidade de jurisdição, o Estado brasileiro não poderá fazer uso de tal expediente perante judiciário estrangeiro em que se pretenda executar a decisão arbitral. Com efeito, fazendo uso das regras internacionais e processuais relativas à arbitragem, é possível que se evite regime de precatório sem, contudo, violar qualquer tipo de regra constitucional, no caso de execução contra à Fazenda.

A segunda alternativa encontra-se na própria constituição: a negociação de créditos decorrente de precatórios conforme previsão do §13º do art. 100. Segundo o texto, o credor poderá ceder, total ou parcialmente, seus créditos em precatórios a terceiros, independentemente da concordância do devedor.

A cessão de crédito permite que o cedente adquira boa parte do valor de forma imediata, sem ter que aguardar a ordem cronológica estabelecida no art. 100. O cessionário adquire o crédito originário e só o receberá ao fim do processo. Trata-se de um verdadeiro investimento, já que, até a data do pagamento, incidem correções e juros sob valor do crédito adquirido. Acerca da questão Napoleão Casado explica que "o investidor permaneceria na propriedade dos créditos, mas com condição resolutiva”, com a conclusão dos trâmites, “a propriedade sobre os créditos pactuados se resolveria e recairia sobre o investidor, na qualidade de credor"5.

Existem diversas e respeitáveis empresas e fundos de investimento especializados na captação, gestão e disponibilização de recursos para aquisição de direitos creditórios que são ou serão objeto de litígio em processo arbitral e até aqueles que já estão definidos em sentença arbitral. É possível, então, a antecipação e monetização de recebíveis decorrente de sentença arbitral que condena a Fazenda Pública ao pagamento de quantia em dinheiro. As vantagens constadas nesse tipo de negócio são o recebimento do valor no ato cessão, a segurança jurídica e financeira do procedimento, o deságio compatível e a aquisição de capital para fluxo de caixa, investimento e quitação de despesas6.

Há aqui uma oportunidade interessante para construção de parcerias com financiadores, com os quais seriam compartilhados alguns riscos do litígio. Cria-se, conforme apontou Arnoldo Wald, "uma oportunidade para fazerem uma parceria com financiadores, aos quais são repassados determinados riscos do valor e do momento dos eventuais recebimentos, e dividindo-se o resultado que vier a ser obtido entre a parte e quem o financiou, na forma convencionada"7.

O legislador constitucional atento a esse movimento e, sobretudo à conjuntura econômico-financeira da Fazenda Pública, estabeleceu que o credor poderá ceder, total ou parcialmente, seus créditos em precatórios a terceiros, independentemente da concordância do devedor. Essa cessão de precatórios, contudo, apenas produzirá efeitos após comunicação, por meio de petição protocolizada, ao tribunal de origem e à entidade devedora (CF, art. 100, §14). 

Como se nota, apesar do regime constituir um desconforto para aqueles que possuem valores a receber da Fazenda Pública existem soluções jurídica e economicamente viáveis. O que não se mostra adequado é uma interpretação literal ou restritiva do art. 100, caput da CF, a justificar o desvio de uma regra constitucionalmente estabelecida.

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1 Recomenda-se excelente obra sobre o assunto: MOREIRA, Egon Bockmann et al. Precatórios: o seu novo regime jurídico: a visão do direito financeiro, integrada ao direito tributário e ao direito econômico. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, Thomson Reuters Brasil, 2021.

2 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários à Constituição de 1967 com a Emenda n. 1 de 1969. São Paulo: Ed. RT, 1970. v. 3. p. 646-647.

3 Vide súmula 279 do Superior Tribunal de Justiça

4 CUNHA, Leonardo Carneiro da. A fazenda pública em juízo. 19. ed Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 698.

5 CASADO, Napoleão. Arbitragem e acesso à justiça: o novo paradigma do thirty party founding. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 220.

6 BADARÓ, Gilberto. 5 motivos para você vender precatórios. Migalhas. Disponível aqui, acesso em 25 de maio de 2022.

7 WALD, Arnoldo. Alguns aspectos positivos e negativos do financiamento da arbitragem. Revista de Mediação e Arbitragem. n. 49, São Paulo: Revista dos Tribunais. 2016, p. 34 e ss.

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Colunistas

Marcelo Bonizzi é professor doutor de Direito Processual Civil da Faculdade de Direito da USP/Largo São Francisco. Autor de livros e artigos. Pós-doutor pela Faculdade de Direito de Lisboa. Procurador do Estado de São Paulo. Atua como árbitro (FIESP/CAMES E CAMESC).

Olavo Augusto Vianna Alves Ferreira é procurador do Estado de São Paulo. Doutor e Mestre em Direito do Estado pela PUC/SP. Professor do Programa de doutorado e mestrado em Direito da UNAERP. Professor convidado de cursos de pós-graduação. Membro de listas de árbitros de diversas Instituições Arbitrais. Foi membro da Comissão Especial de Arbitragem do Conselho Federal da OAB. Autor de livros jurídicos. Coordenador Acadêmico do site Canal Arbitragem.