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Rainbow-washing”: são as cores de junho que vem e vão

O apoio à causa LGBTQIA+ em junho e o seu esvaziamento nos demais meses do ano podem prejudicar empresas e marcas.

13/10/2022

Durante o último mês de junho foi impossível não notar a ampla comemoração do mês do orgulho LGBTQIA+. O uso de símbolos associados ao movimento LGBTQIA+ – com o destaque para o arco-íris – busca dar visibilidade para a causa e para os diversos desafios enfrentados diariamente pela comunidade. Nos últimos anos, essa simbologia tem sido usada por empresas em logotipos, uniformes e propagandas como forma de mostrar seu suporte às pessoas LGBTQIA+. Apesar disso, é difícil não estranhar o rápido desaparecimento desses símbolos na virada do mês.

É evidente que o uso corporativo da simbologia associada ao movimento LGBTQIA+ tem aspectos positivos, como exibir um ambiente publicamente acolhedor a funcionários e clientes. No entanto, há críticas crescentes àqueles que usam o apoio à comunidade LGBTQIA+ como uma mera iniciativa de marketing, sem verdadeiramente buscar impactos positivos e apoio à comunidade LGBTQIA+.1 O conflito entre a necessária visibilidade da comunidade LGBTQIA+ e o possível de abuso de sua simbologia levanta um importante questionamento sobre como usar estes símbolos no ambiente corporativo.

A bandeira arco-íris foi criada por Gilbert Baker em 1979 e usada pela primeira vez na Parada do Orgulho LGBT em São Francisco. Adotada pelo movimento desde então, a bandeira foi adaptada ao longo do tempo sem perder sua essência. Símbolos como este são elementos importantes inclusive na criação de sentimento de grupo. Se de início o uso da bandeira do movimento LGBTQIA+ marcava uma guetização da comunidade, hoje ela é frequentemente utilizada para sinalizar o acolhimento nos mais diversos ambientes. Para além de efeitos na esfera coletiva, a sensação de pertencimento criada pelos símbolos se manifesta na esfera individual como reforços à aceitação e à autoafirmação de identidade.

No início do uso do arco-íris como símbolo de apoio à causa LGBTQIA+, poucas empresas arriscavam se associar com a sigla, visto que a medida poderia contrariar as posições pessoais de consumidores, funcionários e dirigentes. A falta de conexão com a pauta também pode ser associada à ausência de políticas afirmativas e medidas concretas para a proibição de discriminação por orientação sexual e identidade de gênero, tanto por parte das corporações quanto por parte do governo. Hoje, com o ganho de relevância social da causa LGBTQIA+, espera-se que a maioria das grandes empresas adote as cores do arco-íris, ao menos durante o mês do orgulho. Contudo, há que se observar a criação de incentivos para que alguns passem a apoiar a causa LGBTQIA+ de forma esvaziada e sem efeitos práticos positivos.

A força do apoio à causa LGBTQIA+ como impulsionador de negócios é fator relevante ao se considerar estes questionamentos, com pesquisas demonstrando que um quarto dos usuários de internet nos Estados Unidos é mais propenso a comprar de empresas que abertamente apoiam a causa LGBTQIA+.2 Esse fator econômico cria incentivos perversos para que o apoio à causa LGBTQIA+ seja pro forma, sem que se reflita em um engajamento verdadeiro com as demandas da comunidade.

Este tipo de conduta é pejorativamente conhecido como “rainbow washing” (“lavar-se de arco-íris”, em tradução aproximada). A nomenclatura remete ao conceito de “white washing”, uma pintura utilizada em paredes no Reino Unido no século XVI para disfarçar imperfeições em superfícies e que passou, com o tempo, a significar o ato de encobrir alguma conduta questionável ou característica negativa.3 O termo foi adaptado para se referir a práticas de ocultação maliciosa (como o “pink washing” relativo à prevenção e tratamento do câncer de mama e o “green washing” relativo à preservação ambiental), até a adoção da expressão  “rainbow washing” para a apropriação da simbologia LGBTQIA+.

A “lavagem” pode tomar diversas formas, indo desde uma apropriação simbólica vazia até empresas que propositalmente usam o arco-íris para disfarçar ataques aos direitos da população LGBTQIA+. Num exemplo clássico, uma famosa marca de massas foi acusada de “rainbow washing” ao tentar recuperar sua imagem pública estampando as cores do arco-íris em seus pacotes de macarrão após declarações de seu CEO de que nunca exibiria um casal homossexual em suas propagandas.4 Em um caso mais recente, empresas consideradas aliadas da comunidade (e que inclusive contribuíram financeiramente para causas pró-LGBTQIA+) foram identificadas como doadoras de candidaturas políticas favoráveis à terapia de conversão, o que evidenciou a superficialidade de seu apoio.5 Contudo, críticas são igualmente válidas para aqueles que usam a simbologia LGBTQIA+ como mero impulso de mercado, o que inclusive dificulta às pessoas identificar empresas que possuem um comprometimento real com a causa.

É inegável que a crítica àqueles que se apropriam do discurso LGBTQIA+, muitas vezes simbolizado pelas cores do arco-íris, é válida. Entretanto, estas críticas não significam defender que empresas devem remover o arco-íris de sua imagem pública, mas, sim, buscar que ele seja a expressão de um real comprometimento com a causa e com medidas concretas. O problema do rainbow washing reside em tornar o apoio à causa LGBTQIA+ um mero instrumento de marketing em períodos estratégicos, em um descompasso entre discurso e prática; corporações podem usar de sua mobilização simbólica como gatilho para o início de ações concretas em favor da diversidade.

Em meio às celebrações públicas no mês do orgulho LGBTQIA+, pode ser fácil esquecer-se que não se passaram mais de duas gerações desde os protestos de Stonewall. As conquistas na proteção dos direitos de pessoas LGBTQIA+ não podem tirar a atenção do fato de que ainda são necessárias muitas ações para avançá-los e para estabilizá-los.

Assim, políticas empresariais devem começar pelo essencial, com a eliminação de práticas e expressões discriminatórias – mas não devem se encerrar por aí. O verdadeiro progresso passa por medidas de conscientização dos funcionários e do público, estudos direcionados a identificar demandas concretas do contexto particular de cada corporação, implementação destas mudanças de forma permanente e aprofundada e integração dos valores dos direitos humanos e da diversidade à cultura corporativa. Isso não significa que empresas precisem esperar se tornar um “lugar perfeito” para participar das comemorações do orgulho LGBTQIA+ (até porque este é um objetivo utópico), mas deve haver comprometimento genuíno solidificado em políticas e regulamentos internos.

O mês de junho passou, os arco-íris sumiram, mas as pessoas LGBTQIA+ permanecem.

____________

1 Champlin, S., & Li, M., (2020). Communicating Support in Pride Collection Advertising: The Impact of Gender Expression and Contribution Amount. International Journal of Strategic Communication, 14(3), 160-178. DOI: 10.1080/1553118X.2020.1750017

2 He, A. (2019). LGBTQ+ Advertising Can Be Effective, but Customers Know When Brands Use Pride Month as Marketing Ploy. Insider Intelligence. https://www.insiderintelligence.com/content/lgbtq-advertising-can-be-effective-but-customers-know-when-brands-use-pride-month-as-marketing-ploy

3 Whitewash. Merryam Webster. https://www.merriam-webster.com/dictionary/whitewash

Chayer, R. (2018). The Pinkwashing of Barilla. Gay Globe. https://gayglobe.net/the-pinkwashing-of-barilla/

5 Ennis, D. (2019). Dont Let That Rainbow Logo Fool You: These 9 Corporations Donated Millions To Anti-Gay Politicians. Forbes. https://www.forbes.com/sites/dawnstaceyennis/2019/06/24/dont-let-that-rainbow-logo-fool-you-these-corporations-donated-millions-to-anti-gay-politicians/?sh=25c68d8a14a6; Wedell, K. (2022). Hiding behind rainbow flags: These companies' political donations don't match their support of LGBTQ issues. USA Today. https://www.usatoday.com/story/money/2022/06/07/brands-rainbow-donations-politicians/9643841002/?gnt-cfr=1; Helmore, E. (2021). 25 corporations marking Pride donated over $10m to anti-LGBTQ+ politicians study. The Guardian. https://www.theguardian.com/us-news/2021/jun/14/corporations-anti-lgbtq-politicians-donations-study

Letícia Haertel
Advogada, graduada em Direito pela Universidade de São Paulo e mestre em Direito pela Ludwig Maximillians Universität (Munique, Alemanha). É assessora do Dr. Rodrigo Mudrovitsch, que atualmente exerce o cargo de Juiz da Corte Interamericana de Direitos Humanos, e mestranda em História pela Fundação Getúlio Vargas (Rio de Janeiro, Brasil). Foi coordenadora do Núcleo de Estudos Internacionais da USP e fundadora da Clínica de Direito Internacional de Direitos.

Bernardo Fico
Advogado, graduado em Direito pela Universidade de São Paulo, pós graduado em Direito Digital pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro, e mestre em Direito pela Northwestern Pritzker School of Law (Chicago, EUA)

Victoria Moura Vormittag
Advogada, graduada em Direito pela Universidade de São Paulo. É pesquisadora em direito internacional e foi coordenadora do Núcleo de Estudos Internacionais da USP, da Clínica de Direito Internacional de Direitos Humanos e do Grupo de Estudos em Direito e Sexualidade da mesma instituição.

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