Migalhas de Peso

Avaliação psicológica em abuso sexual

Não se pode agir com radicalismos: tanto a postura de acreditar que todas as acusações são verdadeiras, como a de acreditar que todas as acusações são falsas tendem ao extremismo anticientífico que não permite analisar detidamente cada caso, levando os profissionais ao “fanatismo” antiético.

28/2/2023

Olá colega Migalheiro!

Hoje o assunto é tão sério, que nem conseguiria esgotá-lo em um único artigo. Isso mesmo, a acusação de abuso sexual, e sua avaliação em contexto clínico como jurídico. O pesadelo da Psicologia Jurídica.

Como assistente técnica, recebo muitas demandas referentes a acusações de abuso sexual. Algumas são verídicas, constatadas pelos próprios comportamentos e sintomas da criança envolvida, outras são tão ridículas, que eu não sei como alguém consegue “brincar” com a autoridade policial. Faz todo mundo perder tempo, ficam hipervalorizando sintomas inespecíficos, e depois nem a própria criança sustenta ou, em casos mais sórdidos, a própria mãe acusadora abandona os processos, não porque tenha se conscientizado ou se arrependido, mas porque acaba o dinheiro de honorários de advogados antiéticos que incentivam esse tipo de litígio inidôneo (SILVA, 2021).

O fato é que, tanto peritos quanto assistentes técnicos podem fazer a sua própria avaliação psicológica e identificar sinais e sintomas de abuso sexual ou, em casos extremos, simulação ou dissimulação de sintomas. Já expliquei em outro artigo1 que os assistentes técnicos são fundamentais para esclarecimento de demandas como essa, porque frequentemente são os primeiros a suscitar a ocorrência de alienação parental, ou que o afastamento é necessário (SILVA, 2021, cit.).

E, para que seja realizado um serviço de qualidade, há a necessidade de se qualificar os psicólogos jurídicos (peritos e assistentes técnicos), assim como os clínicos, para lidar com os sintomas da criança e de toda a família envolvida no abuso. Como nos ensina DUARTE (2012):

A criança que interessa ao psicanalista é antes de tudo, um sujeito de desejo, e seu sofrimento é uma busca da verdade. Nesse sentido, o trabalho empreendido em análise consiste em fazê-la passar de infans2, para aquele que fala e que pode ser escutado como sujeito do discurso. Na família, a criança está inserida num laço social que necessariamente implica na inter-relação de vários sujeitos quando cada um a olha e a escuta a partir de sua realidade psíquica (DUARTE, 2012, p. 176).

E mais: se o abuso for verdadeiro, essa família toda se encontra em risco, pelas sequelas emocionais e físicas da violência sexual, e seu agente deve ser afastado. Mas, se o abuso for falso, essa criança também se encontra em risco, dessa vez pelos atos levianos do(a) alienador(a) interessado(a) em manipular o emocional da criança para afastar o(a) outro(a) genitor(a), por ato de violência psicológica. Conforme salienta DOLTO (2003, p.143):

A criança precisa, principalmente, de um interlocutor que não a leve imediatamente a sério e que compreenda o clima afetivo do qual emanam suas afirmações e sua “ação”. [...]. Cabe decodificar o desejo por trás de seus ditos [...] Existe uma lógica dos discursos da criança na qual é preciso iniciar-se para compreender o que ela quer dizer no curso daquilo a que chamamos ‘perícias’.

Importante ressaltar que abuso sexual e violência sexual não são sinônimos, embora ambos os termos sejam recursivos: o abuso sexual é um ato de violência sexual, física e psicológica contra a criança e o adolescente, e a violência sexual infantil, por sua vez, é constituída de uma dinâmica abusiva do adulto frente à criança (RIBEIRO e COSTA, 2007). PERRONE e NANNINI (1997, apud RIBEIRO e COSTA, 2007, cit.) apontam que os abusos sexuais são mais frequentes nas famílias monoparentais ou reconstituídas, pois muitas vezes ocorre o relaxamento dos laços filiais e conflitos relacionais mãe/filha, com relação ao novo companheiro da mãe. Nessas famílias, o abuso sexual perpetrado pelo padrasto é bastante comum, como também o perpetrado pelo pai, durante as visitas de fim de semana da filha.

Segundo DEL BIANCO e TOSTA (2021), o abuso sexual infantil apresenta uma elevada incidência epidemiológica, provoca severos comprometimentos ligados ao desenvolvimento das vítimas e é considerado um problema de saúde pública. Para RIBEIRO e COSTA (2007, cit.), a questão do abuso sexual infantil é extremamente complexa, uma vez que é um fenômeno de expressão em diferentes níveis da vida social, entrelaçado com questões individuais, familiares, transgeracionais e culturais. Dentre as sequelas, a depressão e o sentimento de culpa têm sido extensivamente referidos pela literatura especializada.

RIBEIRO e COSTA (2007, cit.) mencionam pesquisas que estudam as emoções dos profissionais de psicologia e serviço social que atuam, tanto em âmbito clínico como jurídico, com a questão do abuso sexual de crianças ou adolescentes. Nessas pesquisas, destaca-se a influência da subjetividade do profissional – crenças, valores, estereótipos acerca do abuso, estupro, sexualidade e relacionamentos familiares – na condução da avaliação, chegando a interferir no aspecto jurídico e/ou legal do processo judicial.

Ocorre, porém, que o psicólogo que atende casos de abuso sexual infantil, tanto em âmbito clínico quanto jurídico, também acaba, em maior ou menor grau, se envolvendo emocionalmente com o caso, a criança e a família. Na realidade, é até plausível que isso aconteça, uma vez que a imparcialidade não pode se confundir com a insensibilidade. É importante que o psicólogo reconheça que existe uma mobilização subjetiva do caso, perceba se está atingindo o limite de sua atuação, se está (ou não) preparado para desafios posteriores. MATURANA (1997 apud RIBEIRO e COSTA, 2007, cit.) aponta que nós só nos emocionamos ou nos mobilizamos se aquilo faz parte de nossa experiência, ou seja, você só se preocupa com o outro se esse outro faz parte de seu domínio de experiência. E o abuso sexual com frequência nos mobiliza, tanto no sentido de negar e manter o silêncio e a invisibilidade social do abuso, como no sentido de interromper o ciclo abusivo, promovendo a proteção da criança e a garantia dos direitos de todos os envolvidos (RIBEIRO e COSTA, 2007, cit.).

Essa análise é importante, exatamente para que o psicólogo, clínico ou jurídico, tenha a noção se não está sendo influenciado pela contratransferência, que é a reação emocional do profissional para o cliente, seja de tentar superproteger, ou de exercer o poder, minimizando os fatos.

Porém, é justamente a ineficácia das medidas aplicadas pelas instituições da rede social, e mesmo a impotência e despreparo dos profissionais para intervir de maneira mais contundente nos casos de violência doméstica, que causam a subnotificação dos casos de violação à integridade física e psíquica das crianças. Para GONÇALVES e FERREIRA (2002), isso acontece pelos seguintes motivos:

É importante considerar que existem os abusos sexuais reais, que devem ser reprimidos e punidos na forma da lei, para que mais crianças possam ser preservadas desse grave prejuízo ao seu desenvolvimento psíquico, social e de identificação sexual. Mas ao lado das acusações reais, existem situações nas quais a acusação de abuso serve como um recurso infalível para suspender e até interromper as visitas do pai acusado aos filhos, prejudicá-lo moralmente, perder a guarda e até o poder familiar, e ainda imputar-lhe conduta criminal, com pena de reclusão. Os profissionais da Psicologia devem estar atentos à possibilidade de que uma acusação possa ser falsa.

Da mesma forma como se vem se consolidando o termo “abuso sexual infantil”, vem surgindo a consolidação dos conceitos de “alienação parental, falsas acusações de abuso sexual, falsas memórias”, como um movimento de oposição no cenário judicial, em que o guardião, geralmente a mãe, utiliza esse “método infalível” para afastar o pai dos filhos. Na análise de OLIVEIRA e RUSSO (2017), quando se invoca a “alienação parental” como argumento de contestação à acusação de abuso, alegando-se que a criança fez a acusação de abuso porque foi influenciada pelos atos de alienação parental praticados pela mãe, a criança – e, por extensão, a mãe –, consideradas inicialmente “vítimas” do abuso, passam a ser as responsáveis pelo ilícito (as falsas acusações), sendo que, dependendo da idade da criança, ela passa a fazer isso de forma voluntária, assume deliberadamente o discurso da mãe e se associa a ela para formular a acusação; enquanto isso, o pai antes “abusador” passa a ser considerado “vítima”.

Na pesquisa de OLIVEIRA e RUSSO (2017, cit.) acerca do posicionamento de psicólogas em laudos sobre abuso sexual infantil em Varas de Família e varas Criminais, as autoras observaram que:

De qualquer forma, tornam-se posicionamentos radicalmente opostos dos profissionais das Varas Criminais e Varas de Família, mesmo quando se referem à mesma família (o que OLIVEIRA e RUSSO, 2017, chamam de “duas psicologias”). Observa-se que, quando o psicólogo da Vara de Família entrevista o pai/homem acusado, ocorre uma relativização do contexto, amplia-se o leque de hipóteses; o que não acontece nas Varas Criminais, em que muitas vezes, inclusive por pressão do Ministério Público criminal e do Juiz, existe a busca desenfreada pela “confissão do crime”, mesmo às custas de pressionar o psicólogo a violar normas éticas de avaliação psicológica, além de eventuais crenças pré-concebidas do profissional (“viés de confirmação”) na ocorrência do abuso, e ele desconsidera deliberadamente quaisquer indícios ou evidências que desafiam essa “convicção” – inclusive como forma de “mostrar serviço” para a autoridade judiciária, porque sabe que é a forma de seu laudo ser acolhido (concordando com o MP inquisidor e acusador, que irá subsidiar/influenciar a decisão judicial no mesmo sentido ...

Outro aspecto apontado por OLIVEIRA e RUSSO (2017) nos laudos é a necessidade dos psicólogos em propor “salvação” (sic, p. 595) de encaminhamentos para tratamentos psicológicos ou psiquiátricos para crianças/adolescentes e/ou seus pais, seja pela conclusão de abuso, seja pela de alienação parental. “(...) Crença fundamentada, possivelmente, na afirmação de que esta seria a função da psicologia, a de “psicologizar” (2017, p. 595). Esses encaminhamentos em geral vêm acompanhados de sugestões de visitas monitoradas, supervisão e providências de cautela nas visitas; mais raramente, sugestões de atividades esportivas ou mudanças na vida escolar da criança.

Não se pode agir com radicalismos: tanto a postura de acreditar que todas as acusações são verdadeiras, como a de acreditar que todas as acusações são falsas tendem ao extremismo anticientífico que não permite analisar detidamente cada caso, levando os profissionais ao “fanatismo” antiético. Porque o fanático não analisa, não cogita e não aceita nada que lhe seja diferente, só enxerga o que quer enxergar, não raciocina, não pondera (SILVA, 2021, cit.).

Do mesmo modo, é importante que haja multiplicidade de fontes, incluindo aquele(a) acusado(a), a fim de ampliar e aprofundar a compreensão da dinâmica familiar onde ocorre a acusação de abuso, se existem interesses ocultos em formular a acusação, se ocorrem pactos de lealdade entre a criança e o(a) acusador(a), se existem vínculos aliciantes da criança com o(a) acusado(a), etc.

Enfim, conforme mencionei anteriormente, o assunto é extenso e complexo, e nem pretendo esgotar em um único artigo. Nos próximos vou abordar outras facetas psicojurídicas do tema.

Fico à disposição para o debate saudável.

Até o próximo artigo!

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1 SILVA, D.M.P. O psicólogo assistente técnico também faz avaliação? MIGALHAS, Ribeirão Preto, 23/01/2023. Disponível em: .

2 Infans, do latim in-fare = não-falante. Designativo próprio da criança que ainda não fala (HURSTELL, F. As novas fronteiras da paternidade. Campinas: Papirus, p.16, 1999).

3 Já comentei em outro artigo sobre a postura temerária dos psicólogos chamados a realizar o Depoimento Especial, que fazem uma entrevista prévia que, na realidade, não é uma avaliação psicológica séria avaliar aspectos de personalidade, memória, atenção, vínculos afetivos com o(a) acusador(a) e com o(a) acusado(a) como deveria ser, e sim um questionamento prévio da história do abuso (inclusive, muitas vezes, se apropriando de quesitos do MP), sem gravação nem acompanhamento de terceiros (Juiz, MP, partes e advogados/assessores), só para saber se a criança “sabe contar direitinho” a história. Resultado: quando ocorre o Depoimento Especial propriamente dito, a criança já “saberá” o que será perguntado, porque já terá “ensaiado” com o psicólogo entrevistador. Nem preciso mencionar a irresponsabilidade desses profissionais ineptos e as consequências trágicas dessa conduta antiética... 

4 SILVA, D.M.P. Lei da alienação parental: o que mudou? MIGALHAS, 01/02/2023. Disponível em: .

Denise Maria Perissini da Silva
Psicóloga clínica e jurídica. Coordenadora PG Psicologia Jurídica UNISA. Prof.SEWELL/SECRIM. Colaboradora Comissões OAB/SP. Autora livros Psicologia Jurídica. Perissini Cursos e Treinamentos S/C.

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