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A tecnologia blockchain e a garantia de autenticidade das provas nos processos judiciais

Além de plenamente aceito pela legislação brasileira, o uso do blockchain é, portanto, uma atraente alternativa aos meios tradicionais de registro de documentos.

10/4/2023

A evolução do poder computacional, a utilização de algoritmos e as recentes descobertas em criptografia desencadearam o surgimento de uma poderosa tecnologia: o Blockchain. Embora tenha sido originalmente desenvolvido para ser uma base de dados para transações de criptomoedas1, a capacidade do Blockchain de fornecer registros imutáveis, seguros e transparentes tem elevado o seu uso a uma ampla gama de aplicações, inclusive em processos judiciais.

Afinal, o que é o Blockchain?

Em termos simples, o Blockchain nada mais é do que uma forma de guardar informações em bancos de dados2. Ele pode ser entendido como uma espécie de “livro-razão” imutável e compartilhado, que facilita o processo de registro de transações e controle de ativos, incluindo a troca de criptomoedas, a execução de contratos inteligentes, o armazenamento de dados etc3. Praticamente qualquer coisa de valor pode ser rastreada e negociada em uma rede Blockchain, tanto uma casa como direitos autorais, por exemplo.

Como funciona o Blockchain?

Como seu próprio nome sugere, as transações no Blockchain ficam organizadas em “blocos”. Cada bloco está conectado aos anteriores e posteriores, formando uma verdadeira (e irreversível) cadeia de dados. Cada bloco adicional fortalece a verificação do bloco anterior e, portanto, de todo o Blockchain. Isso torna o Blockchain inviolável e imutável em seu conteúdo ou forma, visto que, para alterar uma informação, seria necessário alterar todos os blocos subsequentes, algo computacionalmente caro, quando não impossível4.

A confiabilidade da tecnologia Blockchain é um pré-requisito não jurídico que vem sendo sedimentado à medida que mais usuários o utilizam como solução tecnológica, que vai muito além de seu papel inicial. No contexto jurídico, o seu uso pode ser especialmente útil em processos judiciais, nos quais a autenticidade de documentos é de suma importância.

Instrumentos de prova em processos judiciais: métodos tradicionais vs. uso de Blockchain

Atualmente, a comprovação da autenticidade de documentos – com a finalidade de utilização como um meio de prova inquestionável – nos processos judiciais é feita por meios tradicionais.

É o caso, por exemplo, da ata notarial, que é um instrumento público registrado em cartório, a pedido de uma parte interessada, com o objetivo de comprovar a ocorrência de determinado evento. Na ata notarial, o tabelião documenta um fato, uma situação ou uma circunstância presenciada por ele, de forma que os fatos nela contidos são presumidos como verdadeiros.

No entanto, além de sujeitos a vulnerabilidades – como, falsificações e adulterações –, o registro de documentos pelas vias tradicionais é burocrático, caro e dependente de uma autoridade pública, somente podendo ser feito durante o expediente do cartório.

Blockchain, de outro lado, apresenta-se como uma atraente alternativa aos meios tradicionais de registro de documentos: além de possibilitar o armazenamento de dados sobre a prova, representa um rápido mecanismo de validação de informações, de forma que a sua utilização é capaz de gerar alta confiança na prova registrada, embasando argumentos quanto a integridade, anterioridade, origem, contexto e ausência de adulteração durante e após o processo de coleta do conteúdo disponível na internet.

Como é tudo feito on-line, a prova pode ser preservada a qualquer momento, por qualquer pessoa, de forma segura e com custos acessíveis a qualquer interessado. Além disso, a utilização do Blockchain para produção da prova ainda diminui o risco de falha e interferência de motivações humanas, como, por exemplo, corrupção.

São inúmeros os benefícios trazidos pelo uso do Blockchain para fins de registro de documentos a serem utilizados como instrumentos de prova em processos judiciais:

i. Descentralização e segurança: a arquitetura descentralizada do Blockchain torna extremamente difícil a manipulação de dados registrados, de forma a garantir a segurança e a confiabilidade dos dados utilizados como prova em um processo judicial;

ii. Transparência: o registro de informações no Blockchain é realizado de forma pública e transparente, permitindo a verificação de autenticidade dos documentos a qualquer momento. Ou seja, qualquer pessoa pode acessá-lo, sem a possibilidade de modificar a validade dada a partir do consenso;

iii. Rapidez: o processo de verificação de autenticidade de documentos no Blockchain é realizado de forma rápida e eficiente, já que não é necessário aguardar a confirmação de terceiros ou o resultado de processos burocráticos;

iv. Segurança: a criptografia utilizada no Blockchain garante a segurança das informações registradas, tornando quase impossível a manipulação dos dados; e

v. Maior custo de oportunidade: a desnecessidade de autoridades públicas/envolvimento de terceiros para registros ou realização de verificações reduz custos.

Respaldo legal

Ao adotar o princípio da liberdade quanto à forma de contratação, o ordenamento jurídico brasileiro confirma o valor probatório dos documentos que utilizam a tecnologia Blockchain. Isso, porque, quando a lei não condiciona a validade da declaração de vontade das partes contratantes ao cumprimento de uma formalidade específica –como contratos de compra e venda de imóvel, que devem ser firmados por escritura pública e dependem de registro – o negócio jurídico pode ser realizado por qualquer forma não contrária à legislação5, inclusive mediante utilização de Blockchain.

Além disso, tanto o Código Civil quanto o Código de Processo Civil reconhecem, expressamente, a validade dos documentos eletrônicos como meio de prova em juízo. Ao tratar das provas produzidas por meios eletrônicos, o art. 441 do Código de Processo Civil é expresso ao prever que “serão admitidos documentos eletrônicos produzidos e conservados com a observância da legislação específica”.

Ademais, assegura-se o princípio da atipicidade da prova, em linha com o modelo constitucional do direito processual civil. De acordo com tal princípio, são admitidos todos os meios legais e moralmente legítimos para provar a veracidade dos fatos, ainda que não especificados em lei, conforme art. 369 do Código de Processo Civil6.

A jurisprudência pátria vem reconhecendo, de forma tímida, a legalidade do uso de documentos registrados no Blockchain como meios de prova em processos judiciais. É o que ilustra o julgado abaixo:

“Obrigação de não fazer cumulada com indenização. Violação aos direitos marcários da parte requerente. Produtos contrafeitos se fazem presentes. "Blockchain" e ata notarial demonstram a irregularidade. Réu revel. Pretensão de produção de prova pericial. Inadmissibilidade. Ausência de justificativa ou especificação. Manifestação aleatória, de que não se trata de falsificação, é insuficiente. Caberia ao apelante ao menos colacionar documentação necessária envolvendo a propalada aquisição de produtos originais. A origem se apresenta determinante ante as peculiaridades da demanda, porém, optou pela omissão. Busca de formalismo exacerbado abrangendo produção de prova, e que ocorreu cerceamento de defesa, não pode sobressair. Devido processo legal observado. Documentação existente nos autos proporciona embasamento para a procedência da ação. Indenização por danos materiais, a serem apurados em liquidação por sentença, com base no artigo 210 da lei 9.279/96, em condições de prevalecer. Danos morais configurados, inclusive, "in re ipsa". Verba reparatória, no entanto, que deve ser minorada para R$ 3.000,00, o que se apresenta compatível com as peculiaridades da demanda. Apelo provido em parte.”
(TJ/SP; Apelação Cível 1099634-11.2021.8.26.0100; Relator (a): Natan Zelinschi de Arruda; Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro Central Cível - 2ª VARA EMPRESARIAL E CONFLITOS DE ARBITRAGEM; Data do Julgamento: 20/3/23; Data de Registro: 20/3/23)

Conclusão

Além de plenamente aceito pela legislação brasileira, o uso do Blockchain é, portanto, uma atraente alternativa aos meios tradicionais de registro de documentos: ele garante um registro rápido, seguro, imutável e distribuído, resistente à fraude e à falsificação de documentos.

__________

1 O marco inicial da criação do Blockchain ocorreu no ano de 2008, a partir do surgimento da criptomoeda Bitcoin – https://www.bitcoin.com/ 

2 https://www.ibm.com/br-pt/topics/what-is-blockchain 

3 https://www.ibm.com/br-pt/topics/what-is-blockchain 

4 https://www.ibm.com/br-pt/topics/what-is-blockchain 

5 Artigo 107 do Código Civil: “A validade da declaração de vontade não dependerá de forma especial, senão quando a lei expressamente a exigir”.

6 “Art. 369. As partes têm o direito de empregar todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados neste Código, para provar a verdade dos fatos em que se funda o pedido ou a defesa e influir eficazmente na convicção do juiz.”

__________

*Este artigo foi redigido meramente para fins de informação e debate, não devendo ser considerado uma opinião legal para qualquer operação ou negócio específico.

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André Zonaro Giacchetta
Associado de Pinheiro Neto Advogados.

Barbara Amanda Vilela
Especializada em Direito Digital, com ênfase em internet, proteção de dados e privacidade, Direito Eleitoral e propriedade intelectual no escritório Pinheiro Neto Advogados.

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