Os números são alarmantes. Dados obtidos perante o Tribunal Superior do Trabalho apontam que, somente em 2021, foram ajuizadas mais de 52 mil ações por assédio moral no Brasil e mais de 3 mil relativas a assédio sexual1. Uma pesquisa realizada em dezembro de 2022 pela Organização Internacional do Trabalho, em conjunto com a Loyd's Register Foundation e Gallup, aponta que mais de uma a cada cinco pessoas empregadas sofreram violência e assédio no trabalho, seja físico, psicológico ou sexual2.
Nos últimos quatro anos (2018-2022), o Ministério Público do Trabalho verificou um aumento de mais de 1500% nas denúncias pela prática de assédio sexual no ambiente de trabalho no Estado de São Paulo, indicando um caso a cada dois dias. Só no ano de 2022, o órgão recebeu 182 relatos dessa natureza3.
O gênero não é determinante para a caracterização do ilícito, sendo ele definido pelo Tribunal Superior do Trabalho como “o constrangimento com conotação sexual no ambiente do Trabalho, em que, como regra, o agente utiliza sua posição hierárquica superior ou sua influência para obter o que deseja”.
Contudo, são as mulheres aquelas que mais sofrem com a prática abusiva, constituindo o assédio sexual um dos grandes entraves para o seu ingresso e seu desenvolvimento no mercado de trabalho. Segundo um levantamento feito pela Mindsight, as mulheres sofrem três vezes mais assédio sexual que os homens, sendo que cerca de 97% deixam de denunciar o crime4.
Uma pesquisa realizada em 2020 pela ThinkEva em parceria com o Linkedin revela o perfil dessas vítimas e indica que, dentre as mulheres que já sofreram assédio sexual, 47,12% foram vítimas dessa prática no ambiente de trabalho. Nesse universo, 52% são negras e 49% recebem entre 2 e 3 salários-mínimos por mês. As regiões Norte e Centro-Oeste lideram o ranking de ocorrências com 63% e 55%, respectivamente.
Neste ano, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública apresentou a quarta edição da pesquisa Vísivel e Invisível: a vitimização de mulheres no Brasil, com dados inéditos sobre diversas formas de violência contra a mulher. Dela se extrai que, no último ano, 46,7% das mulheres brasileiras de 16 anos ou mais já sofreram alguma forma de assédio sexual. Em números, são 30 milhões de mulheres assediadas apenas no ano de 2022. A segunda forma de assédio mais frequente aparece como aquela praticada no ambiente de trabalho, representando 18,6% da população feminina (11,9 milhões), perdendo apenas para as cantadas e comentários desrespeitosos que ocorrem na rua (41%, o que equivale a 21,3 milhões)5.
No último ano, o Ministério Público do Trabalho e da Previdência contabilizou 784 denúncias de assédio sexual, número que pode refletir não só um incremento na prática de condutas desse tipo, mas também um maior incentivo à realização de denúncias dessa espécie de crime, considerando os últimos escândalos de grandes proporções revelados na mídia, como o da Caixa Econômica Federal e o da Petrobrás.
Se de um lado os números chocam, de outro eles devem funcionar como propulsor para a adoção de políticas de combate a essa prática. E aqui não se está a falar apenas sobre a repressão penal desse tipo de conduta, que já consta no Código Penal como crime desde o ano de 2001, sendo punível com detenção de 1 (um) a 2 (dois) anos de detenção aquele que “constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função.”
Uma gama de políticas públicas e normativas se faz necessária para inibir e reprimir o assédio, permitindo a estimulando a denúncia dessa prática ilícita, de modo a evitar que se repita no futuro e responsabilizar os assediadores em todas as esferas. São, igualmente, bem-vindas regras que conscientizem a sociedade civil do que é permitido fazer dentro de um ambiente de trabalho e daquilo que é absolutamente inaceitável ou proibido.
Não menos importantes são as normas internas das empresas que visem prevenir e extirpar a conduta do assédio, garantindo aos empregados e, sobretudo às empregadas, as melhores condições de trabalho possíveis. Uma verdadeira reconstrução das culturas existentes hoje nos locais de trabalho.
Essa preocupação não é de hoje, mas vem, em tempos recentes, se intensificando. Em 2018, o Ministério Público do Trabalho e Previdência, juntamente com a Organização Internacional do Trabalho, lançou intensa campanha em vídeos contra o assédio sexual6, tendo como base cartilha elaborada em 2017 sobre o tema com perguntas e respostas frequentes7.
No ano passado, o Tribunal Superior do Trabalho e o Conselho Superior da Justiça do Trabalho elaboraram, também, a “Cartilha de Prevenção ao Assédio Moral e Sexual”, um material didático para orientar e esclarecer dúvidas a respeito de situações do cotidiano que podem configurar assédio moral e sexual8.
Nessa linha evolutiva, em consonância com a legislação de vários países e as boas práticas já adotadas por empresas internacionais, foi sancionada, no ano passado, a Lei nº 14.457, que, ao alterar a Consolidação das Leis do Trabalho, obriga os empregadores a implementarem medidas internas de combate ao assédio sexual e outras formas de violência no âmbito do trabalho.
As mudanças não foram só formais, como por exemplo a alteração do nome da Comissão Interna de Prevenção de Acidentes, agregando a palavra assédio ao final (Comissão Interna de Prevenção de Acidentes e de Assédio - CIPA). Elas trouxeram obrigações significativas no dia a dia das companhias, a exemplo da criação de campanhas de conscientização sobre o assédio sexual.
Ao introduzir o Programa Emprega +Mulheres, com uma série de medidas em benefício das mulheres no ambiente de trabalho – tais como flexibilidade na jornada, apoio à parentalidade na primeira infância, implementação do reembolso-creche e incentivo à qualificação –, a nova lei inovou ao determinar às companhias com CIPA a adoção de práticas voltadas à prevenção e combate ao assédio sexual e outras formas de violência sexual.
As medidas previstas no artigo 23 do diploma legal incluem regras internas de conduta, com ampla divulgação de seu conteúdo, a fixação de procedimentos para recebimento e acompanhamento de denúncias para apuração dos fatos e aplicação de sanções aos responsáveis por atos de assédio, a inclusão de temas referentes à prevenção e combate ao assédio nas atividades e práticas da CIPA e a realização de ações de capacitação dos empregados sobre o tema.
A novel lei também instituiu o Selo Emprega +Mulher, justamente visando melhorar as condições de trabalho das mulheres, prestigiando as empresas que adotem medidas de estímulo à contratação de mulheres em postos de liderança, à divisão igualitária de responsabilidades parentais, à promoção da cultura de igualdade entre mulheres e homens, à oferta de acordos flexíveis de trabalho e, no que tange ao combate ao assédio, o efetivo apoio às empregadas de seu quadro pessoal e às prestadoras de serviços vítimas dessa prática ou de qualquer forma de violência no local de trabalho (art. 24).
Na esteira dessa nova lei, que passou a valer no último dia 21 de março deste ano, entrou em vigor no mesmo mês a Portaria do Ministério do Trabalho e Previdência nº 4.219 que regulamentou o assunto, obrigando as organizações que devem constituir CIPA a adotar determinadas medidas com vistas à prevenção e ao combate ao assédio sexual e às demais formas de violência no âmbito do trabalho. A própria nomenclatura e atribuições da antiga CIPA, para vários setores, foram alteradas nas respectivas normas regulamentadoras, agora contendo a prevenção ao assédio.
Dentre elas, refletindo as alterações legais, tem-se a inclusão de regras de conduta a respeito do assédio sexual e de outras formas de violência nas normas da empresa, a criação de canal de denúncias para apuração dos fatos e a aplicação de sanções
Ainda em abril foi sancionada pelo presidente Lula a lei 14.540, que institui o Programa de Prevenção e Enfrentamento ao Assédio Sexual e demais Crimes contra a Dignidade Sexual e à Violência Sexual no âmbito da administração Pública, direta e indireta, federal, estadual, distrital e municipal.
Com origem na MP 1.140/22, a lei estabelece como objetivos do programa a prevenção e o enfrentamento da prática do assédio sexual e de outros crimes sexuais a capacitação de agentes públicos para o desenvolvimento e implementação de ações destinada à discussão, prevenção, orientação e à solução desse tipo de problema; a implementação e disseminação de campanhas educativas sobre as condutas e os comportamentos que caracterizam esses delitos e a criação de canais de denúncia com procedimentos de encaminhamento de reclamações e denúncias.
Chama atenção a previsão expressa no sentido de impor como dever legal a todo aquele que tome conhecimento da prática de assédio ou outros crimes sexuais de denunciá-los e colaborar com eventuais procedimentos administrativos internos e externos, impedindo, assim, o aumento de cifras negras a respeito dessas condutas.
Fica a cargo do Poder Executivo monitorar a aplicação do programa instituído pela lei, ressaltando-se que as diretrizes do novo diploma devem ser seguidas pelas instituições privadas em que haja a prestação de serviços públicos por meio de concessão, permissão, autorização ou qualquer outra forma de delegação. Isso, no entanto, somente ocorrerá após a regulamentação do mesmo pelo ente federativo responsável.
Em suma, tem-se um contexto de um amplo movimento de conscientização da sociedade, seja de empregadores, seja de empregados ou, mesmo, de prestadores de serviços a respeito do assédio como um todo no âmbito das relações de trabalho. São louváveis as modificações trazidas pelas novas normativas que certamente estimularão não só as boas práticas ali prescritas, mas toda uma nova cultura de combate a condutas dessa natureza.
A frequência escandalosa de casos de assédio sexual, notadamente contra as mulheres, somada ao fato de um crescente número na prática de crimes sexuais tendo como vítima também as mulheres, criou um terreno ainda mais fértil para a proliferação de normas que visam combater esse tipo de violência.
Igualmente, a conscientização paulatina, mas constante, da sociedade, em especial de sua parcela feminina, a respeito dos direitos dos empregados, das condutas aceitáveis e daquelas, ainda que costumeiras, proibidas no ambiente de trabalho, contribuiu em muito para o novo cenário.
Mesmo que com um certo atraso, as mudanças vieram em boa hora, transformando as raízes da cultura das relações de trabalho, fortalecendo os direitos do empregado, os direitos da mulher e somando esforços para combater a tão odiosa prática do assédio sexual.
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1 Disponível em https://www.trt13.jus.br/informe-se/noticias/em-2021-justica-do-trabalho-registrou-mais-de-52-mil-casos-de-assedio-moral-no-brasil. Acesso em 15 de maio de 2023.
2 Disponível em https://brasil.un.org/pt-br/210241-oit-viol%C3%AAncia-e-ass%C3%A9dio-no-trabalho-afetam-uma-em-cada-cinco-pessoas. Acesso em 16 de maio de 2023.
3 Disponível em https://www.prt2.mpt.mp.br/1059-denuncias-por-assedio-sexual-ao-mpt-aumentam-1-500-nos-ultimos-4-anos-em-sp. Acesso em 15 de maio de 2023.
4 Disponível em: Mulheres sofrem três vezes mais assédio sexual nas empresas do que os homens (cnnbrasil.com.br). Acesso em 16 de maio de 2022.
5 Disponível em file:///C:/Users/Ma%C3%ADra/Downloads/visiveleinvisivel-2023-relatorio.pdf. Acesso em 16 de maio de 2022.
6 Disponível em https://www.cnpl.org.br/ministerio-publico-do-trabalho-e-organizacao-internacional-do-trabalho-lancam-campanha-em-video-para-combater-o-assedio-sexual-no-trabalho/. Acesso em 15 de maio de 2023.
7 Disponível em Cartilha_AssdioSexual.pdf (sintietfal.org.br). Acesso em 15 de maio de 2023.
8 Disponível em https://www.tst.jus.br/assedio-sexual. Acesso em 15 de maio de 2022.