Migalhas de Peso

O que fazer quando a astreinte não resolve?

Qual o próximo passo quando a operadora de plano de saúde persiste em descumprir a tutela de urgência, mesmo depois da fixação e até da elevação do valor da multa cominatória?

15/4/2025

A persistência em descumprir tutelas de urgência, mesmo depois da fixação e até da elevação do valor da multa cominatória, tem sido um problema recorrente em demandas contra operadoras de planos de saúde.

Os fatores são variados para essa litigância abusiva reversa (tomo emprestadas as palavras do ministro Herman Benjamin no julgamento dos repetitivos acerca da litigância abusiva – Tema 1.198).

Em primeiro lugar, descumprir decisões judiciais pode ser bem menos oneroso que cumpri-las.

Além disso, há quem ainda defenda que o que o juiz pode, de ofício, em qualquer tempo, reduzir retroativamente o valor da multa vencida, reforçando a ideia de que é monetariamente vantajoso descumprir.

A própria Corte Especial do STJ, na vigência do CPC de 2015, chegou a reafirmar a sua jurisprudência pacificada na vigência do CPC passado, que permitia a redução, em qualquer tempo, do valor acumulado da multa (EAREsp 650.536/RJ). Depois, reconheceu que o texto expresso do Código em vigor diz o oposto: “(...) segundo o art. 537, § 1°, do CPC/15, a modificação somente é possível em relação à 'multa vincenda'. (...) A alteração legislativa tem a finalidade de combater a recalcitrância do devedor, a quem compete, se for o caso, demonstrar a ocorrência de justa causa para o descumprimento da obrigação.” (EAREsp 1.766.665/RS).

Outro motivo para a reiterada desobediência das operadoras é a dificuldade de iniciar o cumprimento provisório da multa fixada em tutela provisória.

Embora o § 3º do art. 537 do CPC – com a redação que lhe foi dada pela lei 13.256/16 – não impeça o cumprimento provisório da multa antes mesmo de sua confirmação por sentença – apenas condiciona o levantamento do valor depositado em juízo ao trânsito em julgado da sentença favorável à parte –, a Corte Especial do STJ manteve, na vigência do CPC/15, o entendimento firmado na vigência do CPC/73, para dizer que a multa cominatória somente pode ser objeto de cumprimento provisório quando confirmada por sentença e o recurso cabível não seja dotado de efeito suspensivo. (EAREsp 1.883.876/RS).

A astreinte (palavra francesa oriunda do verbo latino astringere – comprimir, apertar ou compelir) é uma técnica executiva de coerção, ou seja, de pressionar quem se nega a cumprir. Quanto mais rápida e certa sua aplicação, maior a eficácia da decisão judicial. Outras ferramentas, porém, podem ser utilizadas pelo juiz, de ofício ou a requerimento, inclusive técnicas sub-rogatórias.

O inciso IV do art. 139 do CPC confere ao juiz um poder geral de efetivação das decisões judiciais (vale conferir o enunciado 48 da ENFAM), incumbindo-lhe de determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias, para assegurar o cumprimento de ordem judicial (inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária).

Por sua vez, o caput do art. 536 do CPC autoriza o juiz a determinar as medidas necessárias à efetivação da tutela específica ou a obtenção de tutela pelo resultado equivalente, enquanto o § 1º do mesmo dispositivo apresenta exemplos de medidas executivas, inclusive de medidas sub-rogatórias, como a busca e apreensão.

Já o caput do art. 297 do Código diz que o juiz poderá determinar as medidas que considerar adequadas para efetivação da tutela provisória.

Assim, quando a multa cominatória ou coercitiva se mostrar ineficaz, uma solução prática e juridicamente válida será a apreensão de valores diretamente da conta da operadora de plano de saúde, com a liberação direta e imediata ao autor, para custear o seu tratamento, condicionando-se a medida à posterior comprovação da correta aplicação dos recursos.

Trata-se de um mecanismo ágil e compatível com os poderes gerais de efetivação do juiz, que evita a perpetuação do descumprimento por estratégias dilatórias.

Sua natureza é de técnica executiva sub-rogatória para assegurar a tutela jurisdicional específica pelo resultado prático equivalente ao que seria obtido caso o obrigado tivesse agido voluntariamente.

Ao adotar essa medida, o juiz não converte a obrigação específica em prestação pecuniária ou em perdas e danos, até porque a apreensão dos valores não tem como fim o pagamento ao autor de qualquer quantia, mas atua como meio para a realização do tratamento pretendido.

Ademais, ao determinar a apreensão e o levantamento dos valores, o juiz não “apaga” a astreinte aplicada, pois, conforme dispõe o § 4º do art. 537 do CPC, a multa é devida desde o dia em que se configura o descumprimento da decisão e incide enquanto não for cumprida a decisão que a tiver cominado.

Embora não tenha natureza punitiva, a multa cominatória, consoante decidiu a Terceira Turma do STJ, tem como fato gerador o descumprimento da decisão judicial, e como finalidade a defesa da autoridade do próprio Estado-juiz (REsp 2.169.203/MG).

Vale ressaltar que a técnica processual aqui defendida passa a quilômetros de distância do chamado ativismo judicial, porque não se confunde com indevida tomada de poder, nem com atuação à margem da ordem jurídica.

Entendo, porém, que a medida pressupõe:

c) subsidiariedade e proporcionalidade (art. 8º do CPC);

b) respeito ao contraditório (caput do art. 9º do CPC), prévio ou diferido (inciso I do parágrafo único do art. 9º do CPC); e

d) decisão adequadamente fundamentada (§ 1º do art. 489 do CPC).

O juiz também pode se valer de outras medidas executivas, típicas ou atípicas, sem prejuízo da aplicação de sanções como a multa punitiva pelo contempt of court, de até 20% sobre o valor da causa - ou, se o valor for irrisório ou inestimável, de até 10 vezes o valor do salário mínimo (inciso IV e §§ 2º ao 6º do art. 77 do CPC).

Portanto, respeitado o devido processo legal, “o Poder Judiciário deve gozar de instrumentos de enforcement e accountability do comportamento esperado das partes, evitando que situações antijurídicas sejam perpetuadas a despeito da existência de ordens judiciais e em razão da violação dos deveres de cooperação e boa-fé das partes – o que não se confunde com a punição a devedores que não detêm meios de adimplir suas obrigações.” (STF – Tribunal Pleno, ADI 5941, rel. min. Luiz Fux, DJe 28/4/23).

O Direito Processual não é um mero sistema abstrato de normas processuais e procedimentais, nem se resume a um instrumento de divagações intelectuais e de especulações teóricas, mas uma disciplina que lida com a prática e exige soluções concretas porque processo é meio de resolver, com imparcialidade, prudência, sensatez e equidade, os problemas das pessoas.

Rodrigo da Cunha Lima Freire
Mestre e Doutor em Direito Processual Civil pela PUC-SP, Professor de Direito Processual Civil da Universidade Presbiteriana Mackenzie, Advogado e Parecerista. youtube e Instagram @ProfRodrigoDaCunha

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