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Comparecimento espontâneo do réu e o termo inicial para contestar: A função integradora da citação na fase postulatória

Comparecimento espontâneo do réu e o início do prazo para contestação: Análise da função integradora da citação na fase postulatória do CPC/15 e da boa-fé objetiva.

23/4/2025

O comparecimento espontâneo do réu não deflagra, por si só, o prazo para contestar. O ato deve ser interpretado a partir de uma abordagem sistemática do processo, que observe os aspectos lógico-metodológicos do procedimento e garanta a proteção da justa expectativa das partes, em cumprimento ao princípio da boa-fé objetiva.

A definição do momento a partir do qual se deflagra o prazo para o oferecimento da contestação – em hipóteses de comparecimento espontâneo do réu antes da citação formal – parece, à primeira vista, uma questão de ordem meramente procedimental. Contudo, sob uma leitura sistemática do CPC/15, esta definição assume uma densidade que ultrapassa a mera literalidade dos dispositivos legais e exige a compreensão sobre os próprios fundamentos de justificação da dogmática processual civil. 

O CPC/15 deslocou o eixo funcional do processo civil de uma lógica adversarial para uma racionalidade cooperativa. Nesse modelo, o desenvolvimento da fase postulatória não tem por finalidade única a delimitação da pretensão e da resistência, senão a criação de um ambiente de solução consensual do conflito. O processo se inicia com a provocação do juiz pela petição inicial (art. 319 do CPC), mas não se consolida, de imediato, como arena de conflito. Há antes disso uma etapa preliminar, de avaliação de viabilidade para a autocomposição, tal como prevê o art. 334 do CPC.

A citação – que no CPC/1973 parecia encerrar um sentido unívoco de convocação para defesa – passa, no CPC/15, a ser redefinida como um ato de convocação à participação do processo, que se dá, inicialmente, sob a forma de um estímulo à autocomposição. Lembre-se que no art. 213 do CPC/1973, a “citação é o ato pelo qual se chama a juízo o réu ou o interessado a fim de se defender. Já o art. 238 do CPC/15, ao tratar a citação como “ato pelo qual são convocados o réu, o executado ou o interessado para integrar a relação processual”, rompe com o pressuposto de que a citação impõe imediatamente o ônus da contestação.

Ora, a leitura isolada do §1º do art. 239 do CPC/15 faz intuir que o mero ingresso no réu no processo, em qualquer fase, inaugura automaticamente a contagem do prazo para sua defesa. No entanto, na fase postulatória do procedimento comum, o comparecimento espontâneo ou a citação do réu, salvo requerimento em sentido diverso por parte do autor (art. 319, inciso VII, do CPC/15), ocorre para que o réu se manifeste (querendo) sobre a composição (conciliação ou mediação). A interpretação sistemática destas regras procedimentais impõe concluir que somente após a realização da audiência ou sua dispensa expressa é que se inicia o prazo para a defesa (art. 335 do CPC/15).

Daí que o comparecimento espontâneo tem como consequência a abertura para o prazo de defesa na hipótese de saneamento de vícios citatórios, quando já ultrapassada a fase inicial do processo, verificada a ausência de citação válida. Significa dizer que, nos casos em que o réu se apresenta antes mesmo de qualquer pronunciamento judicial sobre o processamento da petição inicial, inexiste citação viciada, posto que sequer fora determinada (neste sentido, o REsp 1.909.271/PR). Não há, portanto, o que sanar. E não havendo vício, a aplicação da excepcionalidade do comparecimento espontâneo torna-se imprópria, sob pena de se inverter a ordem lógica do procedimento.

Esta disposição de regras está justificada no princípio da boa-fé objetiva, enquanto expressão de uma racionalidade jurídica que tem como fim a proteção da confiança legítima das partes no modo pelo qual o processo se desenvolverá. A boa-fé impõe, no plano processual, uma vinculação dos sujeitos às expectativas razoáveis criadas pela própria dinâmica do procedimento (Marinoni, 2021).

Portanto, ao se apresentar espontaneamente no processo, antes mesmo do juízo admitir a petição inicial e de se manifestar sobre a audiência de conciliação, o réu atua sob a expectativa legítima de que sua defesa somente será exigida no momento próprio, qual seja, após a verificação da autocomposição ou da dispensa justificada desta. Antecipar-lhe o ônus da contestação significaria subverter a estrutura do contraditório, impondo-lhe ônus não previsto e violando o devido processo legal, que não pode ser reduzido a formalidades desprovidas de sentido. O processo civil constitucional deve garantir efetiva paridade de armas e previsibilidade procedimental.

Enquanto o art. 239 do CPC/15 prevê a contagem do prazo a partir do comparecimento espontâneo, o art. 335 do CPC/15 estabelece que o prazo para contestar será contado da audiência de conciliação (se não houver autocomposição) ou da data da audiência dispensada. Desta forma, o art. 239, §1º, não prevalece, por especialidade, sobre o art. 335 e não faz presumir a abertura para o prazo de defesa do réu. Trata-se, portanto, de regra excepcional aplicável especificamente à hipótese de saneamento de vício na citação, com a consequente regularização da relação processual.

Assim, o “comparecimento espontâneo” que deflagra o prazo para contestar é aquele que ocorre em substituição à citação inválida ou inexistente, e não a mera manifestação voluntária em momento incipiente do processo. A estrutura sistemática das regras impõe observar o momento em que ocorre o comparecimento espontâneo do réu. Sua relevância se dá porque as consequências do comparecimento espontâneo serão determinadas pelo momento processual em que ocorre, notadamente diante da possibilidade do art. 242, parte final, do CPC/15.

A interpretação sistemática do ato reivindica o sentido normativo do instituto sem o reduzir a uma leitura formalista e ineficiente. A prevalência da expectativa legítima do réu e da boa-fé objetiva, revela-se não apenas uma interpretação jurídica correta, mas também uma afirmação do caráter ético-político do processo civil como instrumento de equidade.

Daniel Fioreze
Sócio do escritório Silva e Silva Advogados Associados e diretor do núcleo de recuperação judicial de empresas e falências. Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Maria - RS (UFSM). Possui pós-graduação em Direito Tributário e Aduaneiro pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas) e em Direito Processual Civil pelo Complexo Educacional Damásio de Jesus (CEDJ). Graduado em Direito pela Faculdade de Direito de Santa Maria - RS (FADISMA). Contato: daniel@silvaesilva.com.br

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