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O CPC que pegou e o que não pegou

Alguns artigos do CPC se tornaram realidade, outros não. Há também os "reescritos" e os que são aplicados pela metade. Quais são eles?

29/4/2025

Não sei se é uma invenção brasileira, mas por aqui tem lei que pega, lei que não pega e lei que pega de forma mitigada.

Mas e o CPC?

Comentamos esse assunto num grupo de amigos (lado B do processo). Tratarei aqui de alguns dos dispositivos mencionados e de outros.

Inicio por dois excelentes artigos. Aparentavam ter um futuro promissor, mas com o tempo ganharam interpretações mais restritivas. Me refiro aos arts. 10 e 933 do CPC.

O Código deu outro status ao contraditório - elevou o contraditório a “oto patamá,” como diria o “filósofo” Bruno Henrique -, pois abraçou a ideia de um contraditório substancial, para que as partes tivessem o poder de influenciar os resultados das decisões judiciais - e do próprio processo -, e não fossem surpreendidas por qualquer fundamento de decisão sem o prévio debate, ainda que se tratasse de matéria cognoscível de ofício.

Em razão desse contraditório dinâmico, o Código, por exemplo, não permite que: se profira decisão contra alguém sem que essa pessoa seja ouvida previamente; o juiz conheça de fato superveniente sem ouvir previamente as partes; haja desconsideração de personalidade jurídica antes de ser ouvida pessoa cujo patrimônio se deseja alcançar; o juiz se valha de precedente judicial vinculante sem antes ouvir as partes; a coisa julgada prejudique terceiros.

Inspirado por essa visão de contraditório, o STJ decidiu que não pode participar do julgamento o ministro que não assistiu a sustentação oral - motivo para a mudança subsequente do seu regimento interno.

Outras boas decisões também foram proferidas. Há, por exemplo, uma decisão da relatoria do ministro Gurgel de Faria, que anula um acórdão porque o julgamento foi retomado na mesma sessão, depois da comunicação oral da retirada de pauta.

Mas não tardaram a surgir decisões para relativizar os comandos dos arts. 10 e 933 do CPC, afastando o dever de consulta, por exemplo, antes de decisões declaratórias de incompetência, de falta de legitimidade para a causa ou de interesse de agir, de falta de pressuposto processual e de falta de pressuposto recursal.

Isso não quer dizer, entretanto, que esses dispositivos são ineficazes. Como disse um amigo, mudanças dessa natureza são como navios se movendo a bombordo ou a estibordo: acontecem lentamente.

Um bom exemplo de prestígio ao contraditório substancial pode ser constatado na tese repetitiva 1198, cujo teor é o seguinte:

"Constatados indícios de litigância abusiva, o juiz pode exigir, de modo fundamentado e com observância à razoabilidade do caso concreto, a emenda da petição inicial a fim de demonstrar o interesse de agir e a autenticidade da postulação, respeitadas as regras de distribuição do ônus da prova."

Outro dispositivo que eu gosto muito, mas não logrou o resultado esperado, é o § 1° do art. 489 do CPC, especialmente o inciso IV desse mesmo parágrafo.

Segundo o inciso, o julgador tem o dever de analisar, de maneira pormenorizada, todo e qualquer argumento, de fato ou de direito, objetivamente capaz de alterar o resultado do julgamento para infirmar a conclusão nele adotada.

Ocorre que, não é incomum a prolação de decisões com a seguinte frase ou com frase similar à seguinte:

"O magistrado não está obrigado a responder a todas as alegações das partes, nem a rebater todos os seus argumentos, desde que tenha encontrado motivos suficientes para embasar a decisão."

Em razão do grande número de processos, muitas vezes com causas de pedir ou com contestações confusas, é compreensível e até desejável que as decisões judiciais sejam sucintamente ou objetivamente fundamentadas, mas meros motivos suficientes são insuficientes para fundamentar, porque este verbo indica, sobretudo, dizer a quem perdeu porque perdeu.

Negar vigência ao inciso IV do § 1° do art. 489 do CPC significa igualmente negar vigência ao contraditório substancial ou dinâmico dos arts. 9°, 10 e 933 do CPC, entre outros: do que adianta dizer que o juiz tem o dever de ouvir a parte antes de decidir contra ela, se o juiz não tem o dever de apreciar todos os seus argumentos (capazes de infirmar a conclusão adotada)?

Um dispositivo de grande eficácia prática é o art. 5° do CPC, que abriga o princípio da boa-fé objetiva no processo.

É verdade que algumas de suas concretizações já eram reconhecidas pelo STJ antes mesmo do CPC de 2015 existir, como a vedação da conduta incoerente (venire contra factum proprium) e a proibição da alegação de nulidade de algibeira (como manifestação da supressio), mas o dispositivo reforçou essas interpretações e abriu portas para outras.

Cito um bom exemplo, entre tantos, de aplicação concreta da boa-fé processual: a Corte Especial do STJ entende que o recorrente não pode ser prejudicado por ter sido induzido a interpor o recurso no prazo indicado pelo site do Tribunal.

O Código também buscou enfrentar a chamada jurisprudência defensiva, por meio de dispositivos que consagraram a primazia do julgamento do mérito no âmbito recursal, como o parágrafo único do art. 932 e os §§ 2° ao 7° do art. 1.007 do CPC.

A partir desses dispositivos, o STJ passou a considerar sanáveis, por exemplo, os vícios da falta de procuração ou de substabelecimento na instância especial, da falta de assinatura do advogado na instância especial, do erro no preenchimento da guia do preparo e da própria ausência do preparo.

Houve um inegável avanço, mas a jurisprudência defensiva não desapareceu. Um exemplo disso: o STJ passou a considerar insanável a falta da comprovação do feriado local no ato da interposição do recurso. Foi necessária uma alteração do Código para que esse entendimento fosse superado.

Por sua vez, o art. 1.015 do CPC prometeu limitar o cabimento do agravo de instrumento, mas o STJ, em sede de repetitivos, fixou a controvertida tese repetitiva 988, para admitir o cabimento do agravo quando houver urgência decorrente da inutilidade do julgamento da questão no recurso de apelação.

Não se pode negar, entretanto, que diversas decisões rejeitam o cabimento do agravo de instrumento com fundamento no art. 1.015 do CPC (v.g., o STJ já decidiu que não cabe agravo de instrumento contra a decisão que rejeita a alegação de ilegitimidade para a causa ou contra a decisão que aplica multa pelo não comparecimento à audiência de conciliação ou de mediação).

Já a respeito do art. 190 do CPC, que possibilita a realização de negócios jurídicos processuais atípicos, costumo ouvir duas versões bem distintas: a) colou na teoria e na prática, mas as discussões sobre ele raramente chegam aos tribunais, especialmente ao STJ; e b) colou na teoria, pois a doutrina muito debate sobre ele, mas realmente não colou na prática.

Minha percepção é a de que os negócios jurídicos processuais atípicos poderiam ser um interessante instrumento para uma advocacia mais estratégica se fossem mais utilizados nos contratos redigidos pelos próprios advogados.

Por sua vez, o art. 191 do CPC, que trata da calendarização dos atos processuais, lamentavelmente não saiu do papel. Poderia ser uma boa ferramenta para evitar o desperdício de tempo com a burocracia processual.

Também virou letra morta ou quase-morta, o art. 12 do CPC, que versa sobre a observância da ordem cronológica das conclusões para a prolação de sentenças e de acórdãos. Ao ingressar na gestão processual de forma abstrata, utilizando a palavra “preferencialmente”, o dispositivo selou o seu destino.

Por seu turno, um dispositivo que pegou foi o inciso IV do art. 139 do CPC, que concede ao juiz um poder geral de efetivação, permitindo-lhe a aplicação de medidas executivas atípicas (coercitivas, indutivas, mandamentais ou sub-rogatórias), inclusive para o cumprimento de decisão a respeito de prestação pecuniária.

De uma forma geral, o STF admite que essas medidas executivas atípicas (v.g., suspensão do direito de dirigir, apreensão de passaporte ou proibição de participar de concursos públicos ou de licitações) não ofendem, abstrata e aprioristicamente, a dignidade da pessoa humana e a Constituição; e o STJ estabelece balizas para aplicação dessas medidas (possibilidade de adimplemento, subsidiariedade, proporcionalidade, respeito ao contraditório, fundamentação analítica etc.), mas não as proíbe.

Outro dispositivo bastante aplicado é o art. 927 do CPC, que versa sobre a observância dos precedentes judiciais vinculantes, embora nem todos os seus incisos tratem de precedentes judiciais vinculantes e nem todos os precedentes judiciais vinculantes encontrem-se nos seus incisos.

Infelizmente, alguns ainda se recusam a observar precedentes judiciais vinculantes, pondo em risco a isonomia e a segurança jurídica.

Além disso, no cenário caótico provocado pelo grande volume de recursos julgados pelo STF e pelo STJ, o precedente judicial vinculante muitas vezes é visto como mera tese impeditiva da subida de recursos especiais e de recursos extraordinários, e a reclamação, que deveria ser um instrumento destinado à preservação da autoridade dos precedentes firmados em repetitivos, é descartada.

A propósito dos precedentes judiciais vinculantes, embora o Código, nos arts. 1.036 ao 1.041, se refira aos recursos especiais e aos extraordinários repetitivos, estes jamais saíram do papel para a prática, porque o STF preferiu produzir precedentes judiciais vinculantes por meio do regime da repercussão geral nos recursos extraordinários, que não se confunde com a repercussão geral como filtro de admissibilidade dos recursos extraordinários.

Quanto aos incidentes, alguns são muito aplicados, como o incidente de desconsideração de personalidade jurídica do art. 133 do CPC, outros têm uma boa aplicação, como o incidente de resolução de demandas repetitivas do art. 976 do CPC, enquanto alguns outros são pouco utilizados, como o incidente de assunção de competência do art. 947 do CPC.

Um dispositivo mitigado pela jurisprudência é o § 2° do art. 833 do CPC, que permite a penhora de conta-salário apenas para pagamento de prestação alimentícia ou das importâncias excedentes a 50 salários-mínimos mensais.

Segundo o entendimento que prevalece no STJ, é possível penhorar conta-salário (“os vencimentos, os subsídios, os soldos, os salários, as remunerações, os proventos de aposentadoria, as pensões, os pecúlios e os montepios, bem como as quantias recebidas por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e de sua família, os ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de profissional liberal”), desde que não se ofenda a dignidade do devedor ou de sua família.

Outro dispositivo relativizado pelo STJ é o art. 1.022 do CPC, pois a Corte manteve entendimento de que são manifestamente incabíveis os embargos de declaração contra a decisão do presidente ou do vice-presidente do tribunal de origem, que obsta o prosseguimento do recurso especial ou do recurso extraordinário, a despeito da redação da lei, que admite o cabimento dos embargos contra qualquer decisão judicial.

Quanto à disciplina da tutela de urgência, o art. 300 do CPC unificou e simplificou os seus requisitos.

O Código também tratou de eliminar o processo cautelar autônomo e os procedimentos cautelares específicos, facilitando o requerimento da tutela cautelar.

No entanto, claramente faltou disciplinar melhor a tutela de urgência antecedente, dos arts. 303 e 305 a 320 do CPC. Por consequência, o número de casos de estabilização da tutela antecipada antecedente, do art. 304 do CPC, é bem menor que o esperado.

Ainda no campo da tutela provisória, o art. 311 do CPC, que criou hipóteses de concessão de tutela da evidência (existem outras hipóteses típicas, como a liminar das possessórias de força nova e o decreto injuntivo das ações monitórias), foi esquecido até mesmo pela advocacia.

A tutela da evidência poderia cumprir o papel de antecipar efeitos práticos da sentença de mérito, independentemente da presença do periculum in mora. Além disso, confirmada por sentença, a tutela de evidência poderia impedir que a apelação tivesse o efeito suspensivo legal.

Um artigo que também não surtiu o efeito desejado é o art. 334 do CPC, que disciplina a audiência de conciliação ou de mediação. Esperava-se um aumento considerável de autocomposições nessas audiências, mas não foi exatamente o que aconteceu, como se pode verificar numa leitura rápida do relatório Justiça em números, do CNJ.

Mas não se pode desprezar a quantidade de leis posteriores ao CPC, que, influenciadas por ele, abraçaram o sistema multiportas de justiça. Cito alguns exemplos: lei 14.133/21 (lei de licitações), que prevê a utilização de “meios alternativos de prevenção e resolução de controvérsias, notadamente a conciliação, a mediação, o comitê de resolução de disputas e a arbitragem;” lei 13.988/20, que “estabelece os requisitos e as condições para que a União, as suas autarquias e fundações, e os devedores ou as partes adversas realizem transação resolutiva de litígio relativo à cobrança de créditos da Fazenda Pública, de natureza tributária ou não tributária;” lei 14.740/23, que “dispõe sobre a autorregularização incentivada de tributos administrados pela Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil do Ministério da Fazenda;” e lei 14.112, de 2020 (lei da recuperação judicial e da falência), que alterou a lei 11.101/2005, criando a Seção II-A, que dispõe sobre as “conciliações e das mediações antecedentes ou incidentais aos processos de recuperação judicial.”

Alguns dispositivos do CPC se tornaram realidade, outros não. Há também os "reescritos" e os que são aplicados pela metade.

Leis processuais são como roupas: somente depois de prová-las é que descobrimos se realmente cabem ou caem bem.

Mas o CPC pode ser ajustado à prática, quando a roupagem normativa não lhe couber ou não lhe cair bem?

O CPC pode ser aperfeiçoado por opção legislativa e, como lida com a prática, pode e deve ser interpretado com a devida atenção às circunstâncias concretas e aos fins normativos, desde que limitados ao próprio Direito; mas é preciso lembrar que a eficácia de qualquer diploma legal exige tempo de assimilação e compromisso de implementá-lo plenamente.

Rodrigo da Cunha Lima Freire
Mestre e Doutor em Direito Processual Civil pela PUC-SP, Professor de Direito Processual Civil da Universidade Presbiteriana Mackenzie, Advogado e Parecerista. youtube e Instagram @ProfRodrigoDaCunha

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