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Decisões do STF na Justiça do Trabalho: Impactos e desafios

Análise dos impactos das decisões vinculantes do STF no Direito do Trabalho e os desafios para conciliar uniformização jurisprudencial com os princípios protetivos laborais.

30/4/2025

O sistema processual trabalhista brasileiro, tradicionalmente caracterizado por sua autonomia científica e por princípios próprios que o diferenciam do processo comum, tem experimentado nas últimas décadas uma crescente influência das decisões vinculantes do STF. O mecanismo da repercussão geral, as súmulas vinculantes e as decisões em controle concentrado de constitucionalidade têm redesenhado a forma como os juízes e tribunais do trabalho interpretam e aplicam não apenas a Constituição, mas também a própria legislação trabalhista infraconstitucional.

Esse movimento, parte de uma tendência mais ampla de aproximação do sistema jurídico brasileiro à lógica dos precedentes vinculantes, adquire contornos particulares quando analisado sob a ótica do Direito do Trabalho e seu caráter protetivo. Surge, então, uma questão fundamental: Como conciliar a força normativa das decisões do STF, voltadas à uniformização interpretativa e à segurança jurídica, com os princípios peculiares que informam o Direito Material e Processual do Trabalho, notadamente o princípio da proteção ao trabalhador hipossuficiente?

A resposta a essa indagação demanda uma análise aprofundada dos impactos da vinculação decisória na seara trabalhista, identificando potencialidades, riscos e desafios desse fenômeno que tem transformado significativamente a dinâmica processual nas varas do trabalho e nos TRTs.

A estruturação do sistema de precedentes na Justiça do Trabalho

A Justiça do Trabalho sempre demonstrou especial vocação para a uniformização jurisprudencial. Muito antes da valorização normativa dos precedentes trazida pelo CPC/15, o TST já desenvolvia robusto sistema de súmulas e orientações jurisprudenciais que, mesmo sem caráter formalmente vinculante, exerciam influência determinante na aplicação do Direito do Trabalho.

Essa característica peculiar pode ser atribuída a diversos fatores, entre os quais se destacam a natureza das relações trabalhistas, marcadas pela repetição de situações fáticas semelhantes em escala massificada; a necessidade de proporcionar tratamento isonômico a trabalhadores em condições similares; e a própria estrutura da Justiça do Trabalho, organizada de forma a permitir a rápida ascensão de questões controvertidas aos tribunais superiores.

Com o advento da EC 45/04 e, posteriormente, do CPC/15, esse cenário sofreu profundas transformações. Ao lado do sistema próprio de uniformização jurisprudencial do TST, emergiram mecanismos vinculantes emanados do STF, como as súmulas vinculantes e as decisões em sede de repercussão geral, que passaram a exercer força normativa determinante também no âmbito trabalhista.

Essa sobreposição de sistemas de precedentes não raro gera tensões interpretativas. Quando o STF firma tese jurídica sobre questão constitucional com impacto no Direito do Trabalho, essa interpretação prevalece sobre eventuais entendimentos divergentes do TST, ainda que este último tenha desenvolvido jurisprudência específica e detalhada sobre o tema, informada pelos princípios peculiares do Direito Laboral.

É o que ocorreu, por exemplo, em temas como a responsabilidade subsidiária da administração pública em contratos de terceirização (Tema 246 da Repercussão Geral); a necessidade de motivação para dispensa por estatais (Tema 131); e a própria constitucionalidade de diversos dispositivos da reforma trabalhista (Tema 1.046, sobre honorários de sucumbência, e ADI 5.766, sobre acesso à justiça), entre outros.

Repercussão geral e questões trabalhistas: tensões entre uniformização constitucional e especificidade laboral

O mecanismo da repercussão geral, concebido como pressuposto de admissibilidade do recurso extraordinário e como instrumento de racionalização da jurisdição constitucional, tem sido aplicado a diversas questões constitucionais com impacto direto no Direito do Trabalho.

Entre os temas trabalhistas que tiveram repercussão geral reconhecida pelo STF, figuraram questões centrais para a configuração das relações laborais, como a possibilidade de dispensas coletivas sem prévia negociação sindical (Tema 638); a constitucionalidade da terceirização em atividades-fim (Tema 725); os limites do controle jurisdicional de normas coletivas (Tema 1.046); e a validade de cláusulas de não concorrência (Tema 1.224), entre muitos outros.

Nesse contexto, emergem tensões significativas entre a perspectiva constitucional e a perspectiva trabalhista. Enquanto o STF tende a privilegiar uma interpretação que valoriza princípios como a livre iniciativa, a autonomia da vontade e a segurança jurídica em sentido amplo, a tradição jurisprudencial trabalhista frequentemente enfatiza o caráter protetivo do Direito do Trabalho, a função social da empresa e a efetivação dos direitos sociais.

Essas diferentes perspectivas hermenêuticas podem resultar em decisões com impactos substantivos nas relações laborais. Um exemplo emblemático foi o julgamento do Tema 725 (ADPF 324 e RE 958.252), em que o STF, contrariando jurisprudência consolidada do TST, reconheceu a licitude da terceirização em qualquer etapa do processo produtivo, inclusive nas atividades-fim das empresas. Essa decisão, fundamentada principalmente em princípios constitucionais econômicos, reconfigurou dramaticamente o cenário das relações trabalhistas no Brasil, com consequências ainda em curso de assimilação pelos tribunais trabalhistas.

O desafio que se coloca, portanto, é o de encontrar caminhos hermenêuticos que permitam conciliar a autoridade das decisões do STF em sede de repercussão geral com a preservação dos princípios fundamentais que informam o Direito do Trabalho, especialmente seu caráter protetivo em relação ao trabalhador hipossuficiente.

Súmulas vinculantes e seu impacto na jurisprudência trabalhista

Ao lado da repercussão geral, as súmulas vinculantes representam outro importante mecanismo de vinculação decisória com impacto significativo na Justiça do Trabalho. Embora em número relativamente reduzido, algumas súmulas vinculantes têm produzido efeitos determinantes na interpretação e aplicação do Direito do Trabalho.

A súmula vinculante 22, por exemplo, ao estabelecer que "a Justiça do Trabalho é competente para processar e julgar as ações de indenização por danos morais e patrimoniais decorrentes de acidente de trabalho propostas por empregado contra empregador, inclusive aquelas que ainda não possuíam sentença de mérito em primeiro grau quando da promulgação da Emenda Constitucional 45/04", definiu importante aspecto da competência material trabalhista.

Já a súmula vinculante 23, ao prever que "a Justiça do Trabalho é competente para processar e julgar ação possessória ajuizada em decorrência do exercício do direito de greve pelos trabalhadores da iniciativa privada", delimitou a atuação da Justiça do Trabalho em matéria possessória, tema tradicionalmente afeto à jurisdição comum.

De particular relevância para as relações trabalhistas foi a súmula vinculante 10, segundo a qual "viola a cláusula de reserva de plenário (CF, art. 97) a decisão de órgão fracionário de tribunal que, embora não declare expressamente a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público, afasta sua incidência, no todo ou em parte". Essa súmula tem sido invocada para questionar decisões de Turmas e Seções do TST que, sem observância da cláusula de reserva de plenário, afastam a aplicação de dispositivos da CLT considerados incompatíveis com a Constituição.

O sistema de súmulas vinculantes, assim como a repercussão geral, suscita questões sobre a articulação entre a jurisdição constitucional exercida pelo STF e a jurisdição especializada trabalhista. Como harmonizar a força vinculante dessas súmulas, emanadas de uma corte não especializada em matéria trabalhista, com a expertise técnica e a sensibilidade social que caracterizam a Justiça do Trabalho?

Técnicas de distinção e superação de precedentes na seara trabalhista

Diante dos desafios impostos pela vinculação às decisões do STF, os tribunais trabalhistas têm desenvolvido técnicas específicas para aplicação, distinção e, eventualmente, superação de precedentes vinculantes.

A técnica do distinguishing assume particular relevância nesse contexto. Através dela, o julgador identifica diferenças relevantes entre o caso paradigma e o caso concreto, justificando o afastamento do precedente vinculante. Na seara trabalhista, essa técnica tem sido utilizada para preservar a aplicação de princípios protetivos em situações que, embora aparentemente semelhantes àquelas decididas pelo STF, apresentam particularidades que justificam tratamento diferenciado.

Um exemplo dessa aplicação pode ser observado na forma como os tribunais trabalhistas têm lidado com o Tema 725 da Repercussão Geral (terceirização). Embora vinculados à tese de licitude da terceirização em atividades-fim, diversos julgados trabalhistas têm identificado situações específicas em que, apesar da licitude formal da terceirização, configuram-se fraudes trabalhistas que justificam o reconhecimento do vínculo empregatício direto, como nos casos de subordinação direta ao tomador de serviços ou ausência de especialização da empresa prestadora.

Também merece destaque a forma como a Justiça do Trabalho tem aplicado o Tema 1.046 da Repercussão Geral, relativo à validade de normas coletivas que limitam ou restringem direitos trabalhistas não assegurados constitucionalmente. Apesar da tese firmada pelo STF, favorável à autonomia negocial coletiva, diversos julgados trabalhistas têm estabelecido distinções em casos específicos, especialmente quando identificam vícios na negociação coletiva ou quando as restrições de direitos não são compensadas por vantagens efetivas.

Essas técnicas de distinção, embora necessárias para preservar a justiça do caso concreto, suscitam debates sobre seus limites. Até que ponto a distinção legítima não se converte em resistência indevida à autoridade do precedente vinculante? Como equilibrar a vinculação formal com a necessária adaptação do precedente às particularidades das relações trabalhistas?

Reforma Trabalhista e o diálogo entre STF e TST: Novos parâmetros interpretativos

A lei 13.467/17, conhecida como reforma trabalhista, introduziu profundas alterações na CLT e tem sido objeto de intensos debates sobre sua constitucionalidade. Nesse contexto, estabeleceu-se um complexo diálogo institucional entre o TST e o STF, mediado pelos mecanismos de vinculação decisória.

Diversas disposições da reforma trabalhista foram questionadas perante o STF, seja em controle concentrado de constitucionalidade (como na ADI 5.766, que discutiu aspectos relacionados ao acesso à justiça), seja em recursos extraordinários com repercussão geral reconhecida (como no Tema 1.046, sobre a validade de normas coletivas restritivas de direitos).

As decisões do STF nesses casos têm estabelecido parâmetros interpretativos que orientam – ou determinam – a forma como a Justiça do Trabalho deve aplicar as inovações legislativas introduzidas pela reforma. Em alguns casos, como na ADI 5.766, o STF adotou posição intermediária, declarando a inconstitucionalidade de algumas restrições ao acesso à justiça, mas mantendo a validade de outras disposições questionadas.

Esse cenário evidencia a crescente importância da jurisdição constitucional na definição dos contornos do Direito do Trabalho contemporâneo. As decisões vinculantes do STF não apenas resolvem controvérsias pontuais, mas estabelecem verdadeiros marcos interpretativos que redefinem a compreensão de princípios e institutos tradicionais do Direito Laboral.

No entanto, esse processo de constitucionalização do Direito do Trabalho via decisões vinculantes do STF não é isento de tensões e contradições. Se por um lado promove a uniformização interpretativa e a segurança jurídica, por outro pode resultar no enfraquecimento de princípios protetivos historicamente associados à legislação trabalhista, como o in dubio pro operario e a primazia da realidade sobre a forma.

Propostas para harmonização entre vinculação decisória e princípios trabalhistas

Diante dos desafios identificados, algumas propostas merecem reflexão para a harmonização entre a vinculação às decisões do STF e a preservação dos princípios fundamentais do Direito do Trabalho:

  1. Desenvolvimento de uma teoria de precedentes própria para o Direito do Trabalho: A aplicação de precedentes vinculantes na seara trabalhista demanda a elaboração de critérios específicos que considerem as particularidades das relações laborais e o caráter protetivo do Direito do Trabalho. Essa teoria própria deveria estabelecer parâmetros claros para a identificação da ratio decidendi, para a realização de distinções e para a eventual superação dos precedentes vinculantes.
  2. Fortalecimento do diálogo institucional entre STF e TST: A criação de mecanismos formais de diálogo entre essas cortes poderia contribuir para uma maior compreensão, por parte do STF, das especificidades do Direito do Trabalho, e para uma aplicação mais adequada, por parte do TST, das teses constitucionais firmadas pelo Supremo.
  3. Ampliação da participação de entidades representativas dos trabalhadores nos processos de formação de precedentes vinculantes: A legitimidade das decisões vinculantes do STF com impacto no Direito do Trabalho seria fortalecida com a ampliação dos mecanismos de participação social no processo decisório, como audiências públicas e amici curiae, assegurando que as perspectivas dos trabalhadores sejam adequadamente consideradas.
  4. Desenvolvimento de mecanismos de avaliação de impacto das decisões vinculantes na realidade social: A previsão de procedimentos periódicos para avaliação dos efeitos concretos das decisões vinculantes nas relações trabalhistas poderia fornecer importantes subsídios para eventuais revisões de entendimentos, quando estes se mostrem inadequados à luz de seus resultados práticos.
  5. Adoção de modulação temporal específica para decisões com impacto trabalhista: Considerando as peculiaridades das relações de trabalho e a vulnerabilidade dos trabalhadores, as decisões vinculantes do STF que impliquem alterações significativas na interpretação de direitos trabalhistas deveriam adotar critérios específicos de modulação temporal, preservando situações consolidadas e expectativas legítimas.

Conclusão: Por uma vinculação decisória sensível às especificidades do Direito do Trabalho

O sistema brasileiro de vinculação decisória, centrado nas manifestações do STF em sede de repercussão geral, súmulas vinculantes e controle concentrado de constitucionalidade, representa uma transformação profunda na forma como o Direito do Trabalho é interpretado e aplicado no Brasil. Essa transformação, embora traga benefícios em termos de uniformização, previsibilidade e racionalização, também suscita desafios consideráveis para a preservação dos princípios fundamentais que historicamente informam o Direito Laboral.

O equilíbrio entre a autoridade dos precedentes vinculantes e a necessária adaptação às particularidades das relações trabalhistas constitui o grande desafio a ser enfrentado pela comunidade jurídica. Não se trata de negar a força normativa das decisões do STF, mas de desenvolver metodologias de aplicação que considerem adequadamente as especificidades da seara trabalhista.

A construção de uma dogmática própria para a aplicação de precedentes vinculantes no Direito do Trabalho, sensível tanto à autoridade das decisões do STF quanto às particularidades das relações laborais, representa um campo fértil para pesquisas e reflexões teóricas, com importantes implicações práticas para o futuro da Justiça do Trabalho no Brasil.

Em última análise, o sucesso desse empreendimento dependerá da capacidade dos diferentes atores envolvidos – STF, TST, magistrados trabalhistas, advogados, Ministério Público do Trabalho e academia – de estabelecerem um diálogo institucional produtivo, orientado pela busca de soluções que conciliem a segurança jurídica proporcionada pelos precedentes vinculantes com a efetivação dos direitos sociais trabalhistas previstos na CF/88.

Marco Aurélio dos Anjos
Advogado trabalhista. Sócio no Valfran dos Anjos Advogados. MBA em Direito Empresarial. Pós-graduação em Trabalho e Esporte. Curso em Cambridge. Atuação destacada em contencioso, gestão e Tribunais.

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