1. Introdução
O sistema recursal brasileiro enfrenta frequentemente um dilema processual intrigante: o que acontece com um agravo de instrumento pendente quando, durante sua tramitação, sobrevém uma sentença de improcedência? Mais especificamente, quando o tribunal concede uma tutela de urgência no agravo e, posteriormente, o juízo de primeiro grau julga o pedido improcedente, há ainda interesse no julgamento desse recurso?
A jurisprudência tradicionalmente entende que a sentença absorve os efeitos da decisão provisória anterior, tornando o agravo sem objeto. Essa lógica aparentemente simples, porém, esconde nuances importantes que merecem reflexão aprofundada, especialmente quando a tutela foi concedida por órgão hierarquicamente superior.
O presente artigo analisa essa tensão processual, propondo uma interpretação que equilibre o respeito à hierarquia jurisdicional com a eficiência do sistema recursal.
2. A teoria da cognição judicial e seus reflexos no sistema recursal
A teoria da cognição judicial estabelece, dito aqui de forma simplista, diferentes níveis de profundidade na análise judicial: a cognição sumária e a cognição exauriente. Tradicionalmente, entende-se que a cognição exauriente, própria da sentença, seria capaz de absorver e superar a cognição sumária realizada em sede de decisão interlocutória.
No entanto, a cognição sumária não significa, necessariamente, análise desprovida de fundamentação robusta ou adequada do caso, mas em apreciação restrita aos fatos e provas conhecidas pelo juízo até aquele momento, como dito por Marinoni e Arenhart:
"Quando o juiz é obrigado a decidir com base em uma participação restrita das partes, o seu juízo é obviamente sumário, não porque o seu conhecimento sobre os fatos apenas possa ser dito provável, mas sim porque as partes ainda não se utilizaram de forma plena das suas oportunidades de participação para o convencimento do juiz"1
Não raro que a análise realizada em cognição sumária, sem que a parte adversa consiga trazer elementos de prova e de convencimento diverso, seja replicada quando da cognição exauriente.
A distinção da cognição sumária pela exauriente não se dá pela fundamentação mais robusta de uma em relação à outra, mas em razão do provimento sumário ser, via de regra, proferida antes que as partes tenham exercido plenamente o direito de defesa quando então será realizada a cognição exauriente da sentença.
Outro efeito recorrente quando da sentença é a perda do objeto do agravo de instrumento contra decisão interlocutória do mesmo processo, por aplicação do art. 932, inciso III do CPC.
Todavia, não se trata de consequência necessária, posto que o próprio art. 946 do CPC prevê a coexistência de agravo de instrumento e apelação.
Depreende-se que, se há apelação em curso, significa que houve sentença. E, se há agravo de instrumento a ser julgado simultaneamente com a apelação, significa que este agravo pode subsistir, mesmo após a sentença que ensejou o apelo.
Portanto, sobrevinda sentença caberá perquirir no caso a caso se a cognição exauriente da sentença esvaziou a decisão proferida pelo órgão ad quem no agravo de instrumento que aguarda julgamento.
3. Posicionamento jurisprudencial sobre o tema
Neste sentido, a Corte Especial do STJ já se manifestou sobre esvaziamento do agravo de instrumento contra decisão de antecipação de tutela após prolação da sentença:
"PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. AGRAVO DE INSTRUMENTO INTERPOSTO CONTRA DECISÃO PROFERIDA EM ANTECIPAÇÃO DE TUTELA INCIDENTAL. SUPERVENIENTE PROLAÇÃO DE SENTENÇA DE MÉRITO. PERDA DE OBJETO. 1. Há dois critérios para solucionar o impasse relativo à ocorrência de esvaziamento do conteúdo do recurso de agravo de instrumento, em virtude da superveniência da sentença de mérito, quais sejam: a) o da cognição, segundo o qual o conhecimento exauriente da sentença absorve a cognição sumária da interlocutória, havendo perda de objeto do agravo; e b) o da hierarquia, que pressupõe a prevalência da decisão de segundo grau sobre a singular, quando então o julgamento do agravo se impõe. 2. Contudo, o juízo acerca do destino conferido ao agravo após a prolatação da sentença não pode ser engendrado a partir da escolha isolada e simplista de um dos referidos critérios, fazendo-se mister o cotejo com a situação fática e processual dos autos, haja vista que a pluralidade de conteúdos que pode assumir a decisão impugnada, além de ensejar consequências processuais e materiais diversas, pode apresentar prejudicialidade em relação ao exame do mérito. 3. A pedra angular que põe termo à questão é a averiguação da realidade fática e o momento processual em que se encontra o feito, de modo a sempre perquirir acerca de eventual e remanescente interesse e utilidade no julgamento do recurso. 4. Ademais, na específica hipótese de deferimento ou indeferimento da antecipação de tutela, a prolatação de sentença meritória implica a perda de objeto do agravo de instrumento por ausência superveniente de interesse recursal, uma vez que: a) a sentença de procedência do pedido - que substitui a decisão deferitória da tutela de urgência - torna-se plenamente eficaz ante o recebimento da apelação tão somente no efeito devolutivo, permitindo desde logo a execução provisória do julgado (art. 520, VII, do Código de Processo Civil); b) a sentença de improcedência do pedido tem o condão de revogar a decisão concessiva da antecipação, ante a existência de evidente antinomia entre elas. 5. Embargos de divergência não providos. (EAREsp n. 488.188/SP, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Corte Especial, julgado em 7/10/2015, DJe de 19/11/2015)"
O respeitável precedente, portanto, compreendeu pela ausência superveniente de interesse recursal quando: a) a sentença de procedência do pedido - que substitui a decisão deferitória da tutela de urgência - torna-se plenamente eficaz ante o recebimento da apelação tão somente no efeito devolutivo, permitindo desde logo a execução provisória do julgado; b) a sentença de improcedência do pedido tem o condão de revogar a decisão concessiva da antecipação, ante a existência de evidente antinomia entre elas.
3.2. A situação peculiar da tutela deferida pelo tribunal
Situação igualmente peculiar, mas com desfecho que poderá ser diverso, deverá ocorrer no caso de interesse no julgamento do agravo de instrumento com tutela deferida face à sentença superveniente de improcedência.
Sobre o tema, lecionam Fredie Didier Jr. e Leonardo Carneiro da Cunha:
"Mas não é sempre que o agravo de instrumento interposto contra decisão sobre tutela provisória perderá seu objeto após a prolação da sentença.
Nos casos em que o agravo foi interposto contra decisão interlocutória que indeferiu a tutela provisória, tendo o Tribunal deferido a tutela provisória recursal e sobrevindo sentença de improcedência, o agravo de instrumento não perde a sua utilidade.
Não é um caso tão simples quanto os demais, porque há tutela provisória que não foi deferida pelo órgão prolator da sentença. Com isso, não há decisão em juízo de cognição sumária, de tutela provisória, sendo substituída por decisão em juízo de cognição exauriente, de tutela definitiva, pois as decisões: i) não foram proferidas pelo mesmo juízo; ii) os juízos prolatores têm competências funcionais distintas, sendo um hierarquicamente superior ao outro."
Neste caso, não há revogação da tutela provisória pela sentença, já que ela fora concedida pelo Tribunal: a decisão do Tribunal não pode ser revogada pela primeira instância; apenas o Tribunal pode fazer o juízo sobre a permanência ou não da tutela provisória que conceder. Além disso, deve-se ter em mente que, enquanto não revogada, a antecipação dos efeitos da tutela dura enquanto pender o processo, ou seja, enquanto não sobrevier decisão final definitiva -- que não se confunde com a sentença" (*DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da. Curso de Direito Processual Civil: v.3 - Meios de Impugnação às Decisões Judiciais e Processo nos Tribunais. 22. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora JusPodivm, 2025. P. 976).
A propósito, o STJ possui precedente elucidativo para o caso em particular, sopesando justamente as peculiaridades do caso de sentença proferida em sentido contrário à decisão proferida no agravo de instrumento:
"PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AGRAVO DE INSTRUMENTO EM PROCESSO CAUTELAR JULGADO POSTERIORMENTE À SENTENÇA. DÚVIDA QUANTO À PERDA DE OBJETO. ALEGAÇÃO DE JULGAMENTO ULTRA PETITA. AUSÊNCIA. 1. A superveniência da sentença no processo principal não conduz, necessariamente, à perda do objeto do agravo de instrumento. A conclusão depende tanto "do teor da decisão impugnada, ou seja, da matéria que será examinada pelo tribunal ao examinar o agravo, quanto do conteúdo da sentença" (O destino do agravo depois de proferida a sentença. Aspectos Polêmicos e Atuais dos Recursos Cíveis e de Outros Meios de Impugnação às Decisões Judiciais. Série 7. Nelson Nery Jr. e Teresa Arruda Alvim Wambier - coordenadores. São Paulo: RT, 2003). 2. A questão soluciona-se pela aplicação de dois critérios: a) o da hierarquia, segundo o qual a sentença não tem força para revogar a decisão do tribunal, razão por que o agravo não perde o objeto, devendo ser julgado; b) o da cognição, pelo qual a cognição exauriente da sentença absorve a cognição sumária da interlocutória. Neste caso, o agravo perderia o objeto e não poderia ser julgado. 3. Se não houver alteração do quadro, mantendo-se os mesmos elementos de fato e de prova existentes quando da concessão da liminar pelo tribunal, a sentença não atinge o agravo, mantendo-se a liminar. Nesse caso, prevalece o critério da hierarquia. Se, entretanto, a sentença está fundada em elementos que não existiam ou em situação que afasta o quadro inicial levado em consideração pelo tribunal, então a sentença atinge o agravo, desfazendo-se a liminar. 4. Trata-se de medida cautelar no curso da qual não houve alteração do quadro probatório, nem qualquer fato novo, entre a concessão da liminar pelo tribunal e o julgamento de improcedência do pedido do autor. Prevalência do critério da hierarquia. Agravo de instrumento não prejudicado. 5. Ausência de julgamento ultra petita. 6. Recurso especial improvido. (REsp n. 742.512/DF, relator Ministro Castro Meira, Segunda Turma, julgado em 11/10/2005, DJ de 21/11/2005, p. 206.)"
Segundo magistral lição constante do voto e ementa de caso relatado pelo E. ministro Castro Meira, "Se não houver alteração do quadro, mantendo-se os mesmos elementos de fato e de prova existentes quando da concessão da liminar pelo tribunal, a sentença não atinge o agravo, mantendo-se a liminar. Nesse caso, prevalece o critério da hierarquia. Se, entretanto, a sentença está fundada em elementos que não existiam ou em situação que afasta o quadro inicial levado em consideração pelo tribunal, então a sentença atinge o agravo, desfazendo-se a liminar" (RESp 742.512/DF).
O que se pode concluir é que, proferida sentença de mérito em sentido contrário à decisão liminar proferida em sede de agravo de instrumento, poderá persistir a manutenção do interesse recursal do agravante já que tutela perseguida ainda poderá ser útil, não devendo o relator do agravo extingui-lo pelo simples conhecimento da prolação de sentença.
A sentença que pretende afastar tutela concedida pelo tribunal deve necessariamente enfrentar, de maneira específica e fundamentada, os argumentos utilizados pela Corte Superior ou ter se valido de fundamentos e/ou provas supervenientes à decisão agravada, de modo a justificar a superação da decisão proferida pelo Tribunal. A mera prolação de sentença em sentido contrário, sem o devido enfrentamento dos fundamentos da decisão do tribunal e sem qualquer prova ou fundamento superveniente, não parece suficiente para esvaziar o interesse recursal no julgamento do agravo e tampouco para revogar a tutela concedida por instância superior.
4. Conclusão
A questão do interesse no julgamento do agravo de instrumento após sentença de improcedência não pode ser resolvida de maneira simplista, com a aplicação isolada e automática do critério da cognição ou da hierarquia. Cada caso merece análise individualizada, considerando:
- A existência ou não de novos elementos probatórios entre a decisão do tribunal e a sentença;
- O adequado enfrentamento, pela sentença, dos fundamentos utilizados pelo tribunal para conceder a tutela;
- A manutenção ou não da utilidade prática da tutela concedida pelo tribunal;
- A preservação da autoridade das decisões dos órgãos jurisdicionais superiores.
Quando a sentença de improcedência não apresenta fundamentação adequada para afastar os argumentos utilizados pelo tribunal na concessão da tutela, e não há alteração significativa no conjunto probatório, deve prevalecer o princípio da hierarquia, mantendo-se o interesse no julgamento do agravo de instrumento e mantendo-se vigente a tutela deferida pelo E. Tribunal até julgamento da apelação.
Esta solução, além de preservar a autoridade das decisões dos tribunais, contribui para a racionalidade do sistema processual e para a efetividade da tutela jurisdicional, evitando que decisões precipitadas dos juízos de primeiro grau possam causar prejuízos irreparáveis às partes que obtiveram provimento favorável junto aos tribunais.
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1 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Prova e Convicção - Ed. 2022 Author: Luiz Guilherme Marinoni, Sérgio Cruz Arenhart. https://next-proview.thomsonreuters.com/launchapp/title/rt/monografias/104787185/v6/page/IV
2 DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da. Curso de Direito Processual Civil: v.3 - Meios de Impugnação às Decisões Judiciais e Processo nos Tribunais. 22. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora JusPodivm, 2025.
3 MEDINA, José Miguel Garcia. Código de processo civil comentado. 6. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022.
4 Watanabe, Kazuo. Cognição no processo civil / Kazuo Watanabe. --4. ed. rev. e atual. -- São Paulo : Saraiva, 2012.
5 Superior Tribunal de Justiça. REsp 742.512/DF, Rel. Ministro Castro Meira, Segunda Turma, julgado em 11/10/2005.
6 Superior Tribunal de Justiça. REsp 1.389.194/SP, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 20/11/2014.
7 Prova e Convicção - Ed. 2022 Author: Luiz Guilherme Marinoni, Sérgio Cruz Arenhart
8 Publisher: Revista dos Tribunais https://next-proview.thomsonreuters.com/launchapp/title/rt/monografias/104787185/v6/page/IV - RB-5.7