1. Títulos de crédito e a natureza jurídica do cheque
Os títulos de crédito são instrumentos essenciais à circulação de riquezas, permitindo a formalização de negócios e o adimplemento de obrigações nas relações comerciais. Entre os principais títulos de crédito encontram-se a letra de câmbio, a nota promissória, a duplicata, o cheque e as debêntures.
O cheque, de acordo com a definição do Banco Central do Brasil, é "uma ordem de pagamento à vista, pela qual o emitente (sacador) determina ao seu banco (sacado) que pague determinada quantia ao beneficiário"1.
Portanto, a operação envolve três agentes:
- (sacador): pessoa que emite o cheque;
- quem recebe o valor do cheque;
- instituição financeira responsável pelo pagamento.
Embora seja, por natureza legal, uma ordem de pagamento à vista (art. 32 da lei 7.357/85), na prática brasileira desenvolveu-se o hábito do uso de cheques pré-datados, o que gera importantes discussões jurídicas, especialmente quanto ao início do prazo prescricional.
2. Cheque pós-datado. Costume brasileiro
Como citado, é frequente o uso do chamado "cheque pré-datado", também conhecido como “bom para”, em que as partes, por acordo, estabelecem uma data futura para a apresentação do título ao sacado.
A legislação não regula expressamente a prática da pré-datação. Entretanto, o art. 113, II2 do CC autoriza que os negócios jurídicos sejam interpretados considerando-se a boa-fé e os usos e costumes do lugar da celebração, o que fundamenta a legitimidade desse costume.
O STJ, atento à realidade social e comercial, consolidou entendimento sobre o cheque pré-datado, editando a súmula 370: “Caracteriza dano moral a apresentação antecipada de cheque pré-datado.”
Assim, fica reconhecido que, embora o cheque seja uma ordem à vista, a apresentação do título antes da data acordada configura ato ilícito, sujeito à reparação civil por dano moral, pois ofende o princípio da boa-fé objetiva.
Consequentemente, esse costume pode ser considerado como inserido no ordenamento jurídico, portanto, passivo de tutela jurisdicional.
3. Termo inicial da prescrição do cheque. Prescrição do cheque pós-datado
A lei 7.357/85 dispõe que sua apresentação para pagamento, deve a contar do dia da emissão, no prazo de 30 dias, quando emitido no lugar onde houver de ser pago; e de 60 dias, quando emitido em outro lugar do país ou no exterior, na forma do art. 333 da lei do cheque.
Quanto a prescrição determina, em seu art. 59, que “prescreve em seis meses a ação cambial contra o emitente e seus avalistas, contados do término do prazo de apresentação”.
Contudo, surge dúvida relevante quanto aos chamados cheques pré-datados: o termo inicial da prescrição deve ser contado da data de emissão constante na cártula ou da data ajustada?
O art. 32 da lei do cheque prescreve que "o cheque é pagável à vista", sendo ineficaz qualquer declaração em contrário. O parágrafo único do mesmo artigo reforça: “Considera-se não escrita qualquer menção em sentido diverso.”
De acordo com a legislação, a pós-datação não altera a natureza do cheque de pagamento à vista.
O tema foi enfrentado pelo STJ em sede de recurso repetitivo (Tema 945/STJ)4, fixando as seguintes teses:
a) Para que o prazo de apresentação do cheque possa ser ampliado, a data de emissão constante na cártula deve corresponder à data ajustada entre as partes. b) O protesto do cheque pode ocorrer em qualquer momento dentro do prazo para a ação cambial.
Portanto, não é permitido às partes modificar o termo inicial do prazo prescricional por acordo, sob pena de violação ao art. 1925 do CC6, que proíbe convenção sobre prazos de prescrição.
O entendimento do STJ é que mesmo com a alteração do prazo para apresentação (pré-datado), o início do prazo prescricional permanece inalterado.
4. Conclusões
Apesar do reconhecimento pelo Judiciário da legitimidade da prática do cheque pré-datado para fins de boa-fé e eventual dano moral, o termo inicial do prazo prescricional para a ação cambial permanece vinculado à data de emissão constante no campo próprio da cártula, conforme determina a lei do cheque7 e a jurisprudência do STJ.
Recomenda-se que, para evitar discussões e eventual prescrição, insira no campo específico a exata data ajustada para adimplemento do cheque, sem anotações à parte ou datas paralelas. Ou que considere a redução do prazo executório do título.
Em síntese, a prática do cheque pré-datado é costume reconhecido judicialmente sob o prisma da boa-fé e para fins de responsabilidade civil, mas não produz efeito diante do prazo prescricional, que, obrigatoriamente, segue a disposição expressa na lei.
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1 https://www.bcb.gov.br/meubc/faqs/p/o-que-e-o-cheque
2 Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração. II - corresponder aos usos, costumes e práticas do mercado relativas ao tipo de negócio
3 Art. 33. O cheque deve ser apresentado para pagamento, a contar do dia da emissão, no prazo de 30 (trinta) dias, quando emitido no lugar onde houver de ser pago; e de 60 (sessenta) dias, quando emitido em outro lugar do País ou no exterior.
4 https://processo.stj.jus.br/repetitivos/temas_repetitivos/pesquisa.jsp?novaConsulta=true&tipo_pesquisa=T&cod_tema_inicial=945&cod_tema_final=945
5 Art. 192. Os prazos de prescrição não podem ser alterados por acordo das partes
6 https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm
7 https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7357.htm