A prática jurídica, historicamente construída sobre os alicerces da escuta, da reflexão e do contato humano, está diante de uma das maiores transformações de sua história. A era digital, impulsionada por avanços tecnológicos acelerados, especialmente pela inteligência artificial, tem alterado profundamente a forma como advogamos, decidimos e nos relacionamos com o Direito.
Num tempo em que a velocidade dita o ritmo da vida e o conhecimento parece estar ao alcance de um clique, é inevitável que nos perguntemos: o que ainda nos torna indispensáveis como operadores do Direito?
A advocacia do século XXI não pode ignorar os benefícios da tecnologia. Ferramentas de automação otimizam tarefas repetitivas; softwares especializados fazem triagens processuais em segundos; plataformas de jurimetria oferecem estatísticas que ajudam a prever, com razoável grau de acerto, o desfecho de demandas. Inteligências artificiais como o ChatGPT ou o Gemini já são capazes de redigir peças preliminares, analisar jurisprudência e estruturar argumentos básicos. O acesso à informação, que já foi um diferencial, agora é uma constante. Em um dispositivo como um Kindle, é possível carregar a biblioteca do Congresso Americano no bolso.
Porém, há algo que nenhuma máquina poderá substituir: o olhar humano sobre o conflito humano.
Um algoritmo nada mais é do que uma receita: um conjunto de passos pré-estabelecidos para resolver um problema. Mas o Direito, ao lidar com a vida em sua complexidade, raramente se submete a receitas prontas. Cada caso traz uma dor única, uma história irrepetível, um contexto que exige escuta, empatia e sensibilidade. A automatização pode sugerir, pode auxiliar — mas não pode sentir. E o sentir é, e continuará sendo, a alma da advocacia.
Vivemos, como dizia Darcy Ribeiro, um tempo em que é preciso falar sobre o óbvio. E o óbvio, neste caso, é lembrar que o Direito não existe para servir à técnica, mas às pessoas. Em tempos de hiperconectividade, dar um bom dia verdadeiro ou olhar nos olhos de alguém com atenção já se tornou quase um ato revolucionário. A tecnologia encurtou distâncias, mas nem sempre aproximou consciências.
Nesse sentido, a advocacia enfrenta o desafio de preservar sua essência. A relação advogado-cliente não pode ser reduzida a uma interação protocolar em plataformas digitais. O cliente não quer apenas uma resposta jurídica — ele busca acolhimento, orientação, confiança. E isso se constrói com presença, com escuta ativa, com comprometimento real.
A metáfora entre a biblioteca e o Kindle ilustra bem esse momento. A biblioteca, silenciosa, com seus livros envelhecidos, representa a advocacia tradicional, densa e cuidadosa. Já o Kindle, prático e portátil, simboliza a advocacia digital: ágil, eficiente, funcional. Ambos têm valor. Ambos são instrumentos legítimos. O ponto de equilíbrio está em saber usá-los com discernimento, sem que a eficiência comprometa a profundidade, nem que a tradição resista ao necessário avanço.
Outro eixo fundamental dessa transformação é a ética. O uso de tecnologias jurídicas exige responsabilidade. O que fazemos com os dados? Como interpretamos as previsões algorítmicas? Quem responde por decisões equivocadas baseadas em automações imperfeitas? A ética digital precisa estar no centro da formação e da atuação jurídica. A inteligência artificial pode ser treinada para reconhecer padrões, mas não para julgar com justiça. Justiça, no sentido pleno, requer valores — e valores não se programam.
A formação jurídica, nesse novo cenário, exige um duplo movimento. Por um lado, é necessário dominar as ferramentas tecnológicas, compreender os limites e potencialidades da IA, manter-se atualizado diante de tantas inovações. Por outro, é indispensável cultivar as competências humanas: empatia, escuta, integridade, prudência.
O futuro da advocacia não será dos que apenas sabem operar sistemas, mas dos que souberem equilibrar a máquina com a mão estendida; o dado com o discernimento; a estatística com a escuta. Muito tem se dito: “a tecnologia deve estar a serviço do homem — e não o contrário.” Essa é, talvez, a síntese mais honesta do momento que vivemos.
A era digital nos oferece um arsenal de ferramentas. Mas nenhuma ferramenta será capaz de substituir o gesto mais elementar e mais revolucionário da nossa profissão: olhar o outro como sujeito de direitos. Esse é o desafio — e também a grande oportunidade — da advocacia contemporânea.