Migalhas de Peso

Bebê reborn, tigrinho e a fé parcelada em 12x

Um apanhado de perguntas (incômodas) sobre vícios, consumo e responsabilidade civil. Um convite a repensar: O Direito ainda protege ou só observa?

20/5/2025

O fim do mundo não será televisionado — ele será monetizado.

Em 2012, a profecia maia nos preparou para um fim do mundo. O que não previram é que o apocalipse não viria em forma de meteoros ou maremotos, mas de excesso de informações, notificações de aplicativos, transmissões ao vivo e campanhas publicitárias travestidas de "entretenimento".

Mas o que acontece quando a dor vira modelo de negócios? Quando o vício se disfarça de passatempo? Quando a carência afetiva se materializa em silicone, vinil e… disputa judicial pela “guarda” de um bebê reborn?

Diante disso, cabe perguntar: qual é, afinal, o papel da responsabilidade civil em tempos de capitalismo dos vícios?

Quando o vício é fabricado, quem é o responsável?

Jogos de aposta, influencers promovendo “diversão lucrativa”, plataformas que transformam compulsão em fonte de receita...

Se o risco é inerente à atividade, como preconiza o art. 927 do CC, será que basta invocar a “livre iniciativa” para se eximir de responsabilidade?

Até onde vai a responsabilidade dos influenciadores que promovem tais práticas? Seriam eles simples divulgadores? Ou seriam coautores, solidariamente responsáveis (art. 933, CC), pelos danos que ajudam a produzir? Ou será que estamos diante de uma nova forma de dano difuso?

O preço da fé em tempos digitais

Quando crianças são transformadas em pregadores mirins, promovendo curas e milagres em troca de doações, o que estamos assistindo? Será isso um exercício legítimo da fé? Ou seria um abuso da boa-fé alheia, passível de anulação das doações por vício de consentimento?

Em que momento o Direito deve (ou pode) intervir nessas relações? Qual o limite entre a proteção à liberdade religiosa e o dever de coibir práticas abusivas?

Será que o CC, em seu art. 104, ao exigir boa-fé nos negócios jurídicos, teria algo a dizer sobre essas transações disfarçadas de fé?

Bebês reborn: Objetos, pessoas ou sintomas?

No caso dos bebês reborn, a discussão se amplia.

Se são juridicamente bens móveis, por que surgem disputas emocionais pela sua “guarda” em dissoluções conjugais? Estaríamos diante de uma analogia possível com a tutela de seres sencientes, como os animais de estimação?

Ou seria esta mais uma evidência de que o Direito ainda não sabe lidar com vínculos afetivos que ultrapassam a lógica patrimonial?

E se um dia pais adotivos de um bebê reborn pleitearem vaga em creche pública — como negar-lhes o direito à educação, sem banalizar a própria noção de direito?

O que nos diz o art. 1º, III, da CF, que consagra a dignidade da pessoa humana? Onde começa a dignidade? Onde ela termina?

A hiperjudicialização é a causa ou a consequência?

Critica-se muito a judicialização, mas pouco se fala das causas.

O mercado fabrica vícios, cria necessidades artificiais e, diante dos danos, se exime. O cidadão, sem alternativas, recorre ao Judiciário. 

O problema, então, é o excesso de processos, ou a ausência de mecanismos de prevenção e de responsabilidade efetiva?

Será que a judicialização não seria, paradoxalmente, o termômetro da falência das instâncias de responsabilização?

O CDC foi, no século XX, uma resposta à irresponsabilidade das empresas. Teremos que criar, no século XXI, um Código de Proteção ao Hipervulnerável Emocional?

Ou a ampliação das funções preventiva, promocional e punitiva da responsabilidade civil já seria suficiente?

E se, diante desse capitalismo dos vícios, a responsabilidade civil — com sua tradicional função reparatória — for insuficiente? 

Será preciso pensar em:

  1. Responsabilização solidária de influenciadores, plataformas e anunciantes (arts. 932 e 933, CC)?
  2. Função punitiva como elemento dissuasório real (em linha com os punitive damages dos EUA)?
  3. Medidas preventivas e promocionais que eduquem e transformem comportamentos?
  4. Tutela inibitória para frear práticas abusivas antes que causem dano (art. 12, CC)?

Ou será que a solução está fora do Direito Privado, exigindo uma atuação mais incisiva das agências reguladoras e do Estado?

No fundo, o que está em jogo é mais do que a reparação de danos. É a própria função social do Direito em uma sociedade que mercantiliza a dor e terceiriza o sofrimento.

Será a responsabilidade civil o último suspiro de um Direito que ainda pretende proteger pessoas em um mundo que só protege lucros? Ou será ela o primeiro passo para uma nova concepção de cidadania, que não tolere a exploração da vulnerabilidade como estratégia econômica?

As respostas ainda não estão dadas. Mas a responsabilidade civil — flexível, multifuncional e ética, como vem nos ensinando o professor Nelson Rosenvald — segue sendo o lugar onde essas perguntas precisam ser feitas.

Manasses Lopes
Advogado e professor universitário. Especialista em Direito Processual Civil pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), em Brasília.

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