O fim do mundo não será televisionado — ele será monetizado.
Em 2012, a profecia maia nos preparou para um fim do mundo. O que não previram é que o apocalipse não viria em forma de meteoros ou maremotos, mas de excesso de informações, notificações de aplicativos, transmissões ao vivo e campanhas publicitárias travestidas de "entretenimento".
Mas o que acontece quando a dor vira modelo de negócios? Quando o vício se disfarça de passatempo? Quando a carência afetiva se materializa em silicone, vinil e… disputa judicial pela “guarda” de um bebê reborn?
Diante disso, cabe perguntar: qual é, afinal, o papel da responsabilidade civil em tempos de capitalismo dos vícios?
Quando o vício é fabricado, quem é o responsável?
Jogos de aposta, influencers promovendo “diversão lucrativa”, plataformas que transformam compulsão em fonte de receita...
Se o risco é inerente à atividade, como preconiza o art. 927 do CC, será que basta invocar a “livre iniciativa” para se eximir de responsabilidade?
Até onde vai a responsabilidade dos influenciadores que promovem tais práticas? Seriam eles simples divulgadores? Ou seriam coautores, solidariamente responsáveis (art. 933, CC), pelos danos que ajudam a produzir? Ou será que estamos diante de uma nova forma de dano difuso?
O preço da fé em tempos digitais
Quando crianças são transformadas em pregadores mirins, promovendo curas e milagres em troca de doações, o que estamos assistindo? Será isso um exercício legítimo da fé? Ou seria um abuso da boa-fé alheia, passível de anulação das doações por vício de consentimento?
Em que momento o Direito deve (ou pode) intervir nessas relações? Qual o limite entre a proteção à liberdade religiosa e o dever de coibir práticas abusivas?
Será que o CC, em seu art. 104, ao exigir boa-fé nos negócios jurídicos, teria algo a dizer sobre essas transações disfarçadas de fé?
Bebês reborn: Objetos, pessoas ou sintomas?
No caso dos bebês reborn, a discussão se amplia.
Se são juridicamente bens móveis, por que surgem disputas emocionais pela sua “guarda” em dissoluções conjugais? Estaríamos diante de uma analogia possível com a tutela de seres sencientes, como os animais de estimação?
Ou seria esta mais uma evidência de que o Direito ainda não sabe lidar com vínculos afetivos que ultrapassam a lógica patrimonial?
E se um dia pais adotivos de um bebê reborn pleitearem vaga em creche pública — como negar-lhes o direito à educação, sem banalizar a própria noção de direito?
O que nos diz o art. 1º, III, da CF, que consagra a dignidade da pessoa humana? Onde começa a dignidade? Onde ela termina?
A hiperjudicialização é a causa ou a consequência?
Critica-se muito a judicialização, mas pouco se fala das causas.
O mercado fabrica vícios, cria necessidades artificiais e, diante dos danos, se exime. O cidadão, sem alternativas, recorre ao Judiciário.
O problema, então, é o excesso de processos, ou a ausência de mecanismos de prevenção e de responsabilidade efetiva?
Será que a judicialização não seria, paradoxalmente, o termômetro da falência das instâncias de responsabilização?
O CDC foi, no século XX, uma resposta à irresponsabilidade das empresas. Teremos que criar, no século XXI, um Código de Proteção ao Hipervulnerável Emocional?
Ou a ampliação das funções preventiva, promocional e punitiva da responsabilidade civil já seria suficiente?
E se, diante desse capitalismo dos vícios, a responsabilidade civil — com sua tradicional função reparatória — for insuficiente?
Será preciso pensar em:
- Responsabilização solidária de influenciadores, plataformas e anunciantes (arts. 932 e 933, CC)?
- Função punitiva como elemento dissuasório real (em linha com os punitive damages dos EUA)?
- Medidas preventivas e promocionais que eduquem e transformem comportamentos?
- Tutela inibitória para frear práticas abusivas antes que causem dano (art. 12, CC)?
Ou será que a solução está fora do Direito Privado, exigindo uma atuação mais incisiva das agências reguladoras e do Estado?
No fundo, o que está em jogo é mais do que a reparação de danos. É a própria função social do Direito em uma sociedade que mercantiliza a dor e terceiriza o sofrimento.
Será a responsabilidade civil o último suspiro de um Direito que ainda pretende proteger pessoas em um mundo que só protege lucros? Ou será ela o primeiro passo para uma nova concepção de cidadania, que não tolere a exploração da vulnerabilidade como estratégia econômica?
As respostas ainda não estão dadas. Mas a responsabilidade civil — flexível, multifuncional e ética, como vem nos ensinando o professor Nelson Rosenvald — segue sendo o lugar onde essas perguntas precisam ser feitas.