A era das redes sociais trouxe transformações profundas em diversas esferas da vida social, incluindo o exercício da advocacia. Se por um lado democratizou o acesso à informação jurídica e ampliou as possibilidades de divulgação profissional, por outro criou incentivos perversos que estão corroendo a seriedade do sistema de justiça. A busca por engajamento digital, likes e compartilhamentos tem levado alguns profissionais a transformar o processo judicial em palco para performances que nada têm a ver com a defesa legítima de direitos.
O fenômeno não é novo, mas ganhou contornos preocupantes na Justiça do Trabalho. Demandas espetaculosas, formuladas com requintes retóricos e fundamentação jurídica fantasiosa, proliferam nos tribunais trabalhistas brasileiros, consumindo recursos preciosos e alimentando narrativas de descrédito contra o sistema de proteção social. O caso emblemático que tramita na 16ª vara do Trabalho de Salvador, onde uma recepcionista reivindica licença-maternidade e salário-família com base em vínculo afetivo estabelecido com boneca reborn, exemplifica essa tendência alarmante que ameaça a credibilidade da jurisdição especializada.
O processo judicial não é teatro. Tem finalidade específica e socialmente relevante: solucionar conflitos com base no direito, garantir acesso à justiça e efetivar direitos fundamentais. Quando transformado em instrumento de autopromoção ou laboratório para experimentos conceituais duvidosos, perde sua legitimidade e compromete a confiança pública nas instituições.
A petição inicial que pleiteia equiparação entre maternidade biológica e vínculo emocional com boneca hiper-realista revela confusão conceitual grave e desrespeito aos fundamentos do direito trabalhista. A ação, que além da licença-maternidade busca rescisão indireta e indenização de R$ 10 mil por danos morais, fundamenta-se na alegação de que a trabalhadora teria sofrido “zombarias e constrangimentos públicos” por parte de colegas e superiores ao comunicar sua pretensa “condição materna”. A licença-maternidade prevista no art. 7º, XVIII, da Constituição Federal não é concessão benevolente do Estado, mas política pública estruturada com objetivos específicos: proteger a saúde da gestante, garantir o aleitamento materno, facilitar a adaptação familiar e fortalecer vínculos humanos reais.
Estender tais garantias a situações manifestamente distintas não representa avanço jurídico, mas banalização de direitos conquistados através de décadas de luta social. Milhares de trabalhadoras brasileiras enfrentam dificuldades concretas para exercer a maternidade em condições dignas - discriminação no ambiente de trabalho, descumprimento da licença integral, falta de creches nas empresas, assédio moral durante a gravidez. Essas são as batalhas que merecem a atenção da advocacia trabalhista séria.
A Justiça do Trabalho brasileira processa anualmente mais de quatro milhões de ações. Esse volume impressionante não decorre de capricho estatístico, mas reflete a magnitude dos conflitos trabalhistas em país com mercado de trabalho complexo e histórico de violações sistemáticas aos direitos sociais. Cada processo representa, potencialmente, trabalhador em busca de direitos negados, salários não pagos, condições insalubres, jornadas extenuantes ou discriminação no ambiente laboral.
Quando demandas frívolas ingressam nesse sistema já sobrecarregado, produzem efeitos deletérios que transcendem o caso individual. Primeiro, consomem tempo e recursos que deveriam ser direcionados a conflitos genuínos. Juízes, servidores e toda a estrutura judicial mobilizada para analisar pedido manifestamente infundado deixam de se dedicar a casos com fundamento jurídico sólido.
Segundo, alimentam narrativas de descrédito contra a Justiça do Trabalho. Setores historicamente contrários aos direitos sociais encontram nessas demandas munição para questionar a legitimidade e eficiência do sistema de proteção ao trabalho. A proliferação de casos espetaculosos fortalece discursos que apresentam a jurisdição trabalhista como espaço de excessos e frivolidades, quando na verdade representa conquista civilizatória fundamental.
Terceiro, criam precedentes perigosos que podem estimular outras ações igualmente infundadas. A lógica das redes sociais, onde conteúdo viral gera mais conteúdo similar, pode contaminar o ambiente processual, transformando tribunais em palcos para competições de criatividade argumentativa desconectada da realidade jurídica.
A advocacia desempenha papel essencial na democracia, mas essa prerrogativa vem acompanhada de responsabilidades que não podem ser negligenciadas. O Estatuto da Advocacia e o Código de Ética e Disciplina da OAB estabelecem deveres claros, incluindo a obrigação de atuar com dignidade, independência e responsabilidade social.
Transformar o processo em instrumento de marketing pessoal ou busca por notoriedade representa violação grave desses princípios. A advocacia-espetáculo, focada na repercussão midiática mais que na defesa legítima de direitos, corrói a credibilidade profissional e compromete a imagem da categoria.
No caso específico analisado, chama atenção a elaboração retórica sofisticada aplicada a fundamentação juridicamente insustentável. A petição invoca “princípios constitucionais como a dignidade da pessoa humana e o livre desenvolvimento da personalidade” para sustentar direito inexistente, demonstrando capacidade técnica que torna ainda mais grave a escolha por utilizar argumentos constitucionais sérios em defesa de pretensão manifestamente frívola.
O sistema de justiça não pode permanecer inerte diante dessa tendência. A resposta deve ser firme, proporcional e educativa, demonstrando que a frivolidade processual tem consequências. O CPC prevê instrumentos adequados para coibir a litigância de má-fé, incluindo multa, indenização e outras sanções processuais.
No caso concreto, com audiência designada para 28 de julho de 2025 na 16ª vara do Trabalho de Salvador, configuram-se claramente as hipóteses do art. 80 do CPC: dedução de pretensão destituída de fundamento e utilização do processo para objetivo ilegítimo. A eventual condenação por litigância de má-fé seria medida pedagógica importante, sinalizando que o Poder Judiciário não tolerará a transformação do processo em espetáculo midiático.
A OAB também deve atuar. A conduta da profissional subscritora da petição merece avaliação disciplinar, verificando-se eventual violação dos deveres éticos da advocacia. A profissão jurídica constrói sua legitimidade através da seriedade e responsabilidade de seus membros, valores que não podem ser comprometidos por práticas que beiram a má-fé processual.
A Justiça do Trabalho brasileira é produto de conquista histórica, resultado de lutas seculares por direitos sociais e proteção ao trabalho humano. Sua credibilidade foi construída através da análise séria de conflitos reais, da proteção efetiva aos trabalhadores e da aplicação equilibrada da legislação social.
Em momento de crescentes ataques aos direitos trabalhistas e questionamentos ao próprio sistema de proteção social, a comunidade jurídica tem o dever de preservar a seriedade da jurisdição especializada. Isso implica combater tanto as violações patronais aos direitos dos trabalhadores quanto as demandas frívolas que comprometem a credibilidade institucional.
A defesa intransigente dos direitos trabalhistas constrói-se através do exercício responsável da advocacia, da fundamentação sólida dos pedidos e do respeito aos limites constitucionais e legais. Não se edifica proteção social consistente com base em experimentalismos jurídicos ou busca por viral nas redes sociais.
A inovação interpretativa é valor importante no direito, especialmente em ramo dinâmico como o trabalhista, que deve acompanhar as transformações sociais e econômicas. Contudo, a criatividade argumentativa deve estar ancorada em fundamentos sólidos, finalidades legítimas e respeito aos princípios que regem o sistema jurídico.
O caso da licença-maternidade para “mãe” de boneca reborn, hoje repercutindo amplamente na mídia jurídica e nas redes sociais, extrapola qualquer limite razoável de interpretação evolutiva do direito. Não se trata de ampliar proteções constitucionais a novas situações sociais, mas de estender garantias humanas fundamentais a relações que escapam completamente ao universo jurídico relevante.
A advocacia trabalhista séria tem compromissos inadiáveis: defender os direitos dos trabalhadores com base em fundamentos sólidos, contribuir para a evolução responsável da jurisprudência e preservar a credibilidade das instituições que protegem o trabalho humano. Esses objetivos são incompatíveis com a transformação do processo em palco para performances midiáticas.
A comunidade jurídica deve reagir a essa tendência com firmeza e responsabilidade. Não se trata de coibir a criatividade interpretativa ou desencorajar a defesa de direitos em situações complexas, mas de preservar a seriedade que distingue o exercício profissional da advocacia do entretenimento digital. O direito é instrumento de transformação social, não conteúdo para redes sociais.