Há momentos na história institucional em que se faz necessário recordar velhas máximas jurídicas para enfrentar novos e sofisticados desafios éticos. A célebre frase "ainda há juízes em Berlim" - símbolo da resistência do Judiciário contra o arbítrio - tornou-se mais atual do que nunca diante dos contornos dramáticos do recente processo de escolha da lista sêxtupla da OAB/PE para o preenchimento da vaga do Quinto Constitucional no TJ/PE.
Conforme relatado nos autos dos agravos de instrumento 0800383-89.2025.4.05.0000 e 0800613-34.2025.4.05.0000, o que deveria ter sido um processo democrático, pautado na transparência, previsibilidade e segurança jurídica, degenerou em uma sequência de manobras administrativas que culminaram no flagrante desrespeito à vontade soberana dos advogados pernambucanos.
A essência do Quinto Constitucional, prevista no art. 94 da Constituição Federal, não é apenas a oxigenação dos Tribunais com profissionais da advocacia e do Ministério Público. É, acima de tudo, um pacto de confiança: entre os advogados e sua entidade de classe, entre a classe e a sociedade, e entre esta e o Estado Democrático de Direito. Esse pacto foi rompido.
No caso em análise, uma candidata cuja autodeclaração de pertencimento à cota racial havia sido recusada por banca técnica da UFPE, posteriormente incluída por força de decisão liminar administrativa da OAB nacional, foi indevidamente mantida na cota racial até a data da eleição. A decisão definitiva que revertia essa condição veio após a apuração dos votos. Resultado? Uma das candidatas legítimas - Taciana de Castro - foi excluída da lista sêxtupla, apesar de estar entre as mais votadas tanto na classificação geral quanto no critério de gênero.
O ponto nevrálgico que quero aqui abordar, como bem identificado pelo desembargador Federal Edvaldo Batista da Silva Júnior, está no momento da alteração da condição de elegibilidade: após a proclamação dos votos. É aqui que reside o atentado contra a integridade do processo eleitoral. Se os eleitores votaram considerando que uma das candidatas concorria pela cota, não se pode - após os votos estarem na urna - transmutar sua posição e classificá-la como concorrente ampla. Isso não é mera irregularidade: é fraude à vontade do eleitor. E pior: é um escárnio à paridade de armas democrática.
O edital 001/24 da OAB/PE era claro: a verificação das condições de elegibilidade deveria ocorrer até a proclamação do resultado. O art. 25 da resolução 100/24 do Conselho Seccional reforça essa diretriz. O que se viu, entretanto, foi o uso instrumental de decisões monocráticas e recursos administrativos intempestivos para alterar artificialmente os critérios de formação da lista, atropelando regras previamente pactuadas e, sobretudo, os votos da classe.
É importante destacar que a tutela jurisdicional concedida - e ora mantida - não pretendeu resolver a disputa em favor de um ou outro candidato, mas sim restaurar a ordem violada e impedir que uma situação consolidada à margem do devido processo produza efeitos irreversíveis. O Judiciário foi, aqui, o último bastião contra o que se poderia chamar de “nepotismo ético”, uma prática insidiosa que, sob o manto da legalidade, mascara favoritismos e conspirações internas que envergonham a classe, como bem destacou o estimado ex-presidente da OAB/PE, Pedro Henrique Reynaldo Alves.
A advocacia brasileira precisa tirar lições profundas deste episódio. Não se pode mais tolerar a politização das eleições do Quinto Constitucional como instrumento de barganha, autopromoção ou ajuste de contas internas. O prestígio dessa garantia constitucional depende de sua fidelidade ao espírito da Constituição: justiça, transparência e mérito.
A demora de mais de um ano na definição da lista sêxtupla, causada por essa disputa na base de um “vale-tudo” questionável, não é um detalhe técnico: é uma afronta à advocacia pernambucana e à sociedade, que aguarda o preenchimento de uma das vagas mais relevantes do Judiciário local. É tempo perdido que não volta, é confiança pública deteriorada, é democracia interna maculada. A advocacia pernambucana merece mais.
Espera-se que, daqui por diante, as instituições de classe compreendam que autonomia não é sinônimo de soberania. Nenhuma entidade - nem mesmo a OAB - pode rasgar as próprias regras sob pretexto de interpretações convenientes ou alinhamentos políticos momentâneos. A lei é para todos, inclusive para quem a redige.
Que este episódio sirva como alerta. Que os bastidores da política de classe sejam iluminados pela razão institucional, e não obscurecidos por estratégias de ocasião. E que os eleitores - os advogados que confiaram seu voto - sejam respeitados com a reverência que a democracia exige.
Porque sim, felizmente, ainda há juízes em Berlim.