O Brasil descobriu tardiamente que regular apostas online não significa apenas arrecadar impostos. Os números obtidos pelo Intercept Brasil revelam uma face perversa dessa equação: entre junho de 2023 e abril de 2025, os auxílios-doença concedidos por ludopatia aumentaram 2.300%. O que parecia ser apenas entretenimento digital transformou-se em questão de saúde pública com reflexos diretos na Previdência Social.
A explosão desses números - de uma média histórica de 11 benefícios anuais para 276 no período analisado - escancara o despreparo do Estado brasileiro para lidar com as consequências sociais das apostas online. Enquanto o debate público se concentra na tributação e nos valores arrecadados, ignora-se sistematicamente o custo previdenciário dessa nova modalidade de adoecimento.
O perfil dos beneficiários revela o tamanho do problema: 73% são homens, 80% têm entre 18 e 39 anos - trabalhadores em plena idade produtiva que deixam de contribuir para passar a onerar o sistema. Mais grave ainda, 7% declararam ter dependentes, ampliando o impacto social para além do indivíduo doente.
A concessão de auxílio-doença por jogo patológico enfrenta resistências históricas do INSS no reconhecimento de transtornos mentais. O estigma social agrava o quadro: muitos trabalhadores sequer conhecem a possibilidade do benefício ou obtêm afastamento por diagnósticos secundários como depressão e ansiedade, mascarando a real dimensão do problema.
Do ponto de vista jurídico-previdenciário, a situação expõe lacunas graves. O art. 59 da lei 8.213/1991 prevê o auxílio-doença para o segurado incapacitado para o trabalho por mais de 15 dias. A ludopatia, reconhecida pela Classificação Internacional de Doenças (CID-10: F63.0), enquadra-se perfeitamente nessa previsão legal. Contudo, a perícia médica do INSS ainda enfrenta dificuldades em avaliar adequadamente esses casos.
A demora na implementação de políticas preventivas é inadmissível. A lei 14.790/23 destinou 1% da arrecadação líquida das bets ao Ministério da Saúde para prevenção e tratamento. Um ano e meio depois, nenhuma ação concreta foi implementada. O grupo de trabalho interministerial, criado em dezembro de 2024, realizou sua primeira reunião apenas em março de 2025 - e sequer inclui os Ministérios do Trabalho e Previdência.
Essa omissão tem custos concretos. Cada trabalhador afastado representa não apenas o pagamento do benefício, mas também a perda de arrecadação previdenciária. Um gerente bancário de 39 anos que recebe auxílio-doença deixa de contribuir com valores significativos ao sistema. Multiplique isso pelos números crescentes e teremos um rombo previdenciário não contabilizado.
A questão trabalhista também merece reflexão. O art. 482 da CLT, que prevê demissão por justa causa por “prática constante de jogos de azar”, colide frontalmente com o reconhecimento da ludopatia como doença. A jurisprudência mais moderna, como demonstra decisão do TRT da 5ª região, já reconhece que o trabalhador doente deve ser encaminhado para tratamento, não punido com dispensa.
A dignidade da pessoa humana, princípio fundamental da Constituição, impede que se trate o ludopata como criminoso ou pessoa de má índole. Trata-se de doente que necessita amparo do sistema de seguridade social, não de exclusão do mercado de trabalho.
O caso dos bancários que desviaram recursos para alimentar o vício ilustra a complexidade do tema. São trabalhadores qualificados, com carreiras promissoras, destruídas pela compulsão. O direito penal e o direito do trabalho precisam considerar a capacidade volitiva comprometida pela doença ao analisar essas condutas.
A regulamentação das apostas online no Brasil falhou ao desconsiderar o impacto previdenciário. Enquanto se discute se a alíquota deve ser 12% ou 18%, ignora-se que cada ponto percentual arrecadado pode significar dezenas de trabalhadores afastados, famílias desestruturadas e um custo social incalculável.
É urgente que o INSS desenvolva protocolos específicos para avaliação pericial da ludopatia. Que o Ministério da Saúde implemente as ações preventivas já financiadas por lei. Que a Justiça do Trabalho consolide o entendimento de que vício em jogos é doença, não desvio moral.
O Estado brasileiro precisa reconhecer que criou um problema ao liberar as apostas online sem estrutura adequada de prevenção e tratamento. Os números do INSS são apenas a ponta do iceberg. Por trás de cada auxílio-doença concedido há uma tragédia pessoal, familiar e social que poderia ter sido evitada.
A previdência social não pode continuar sendo a única resposta do Estado ao drama dos ludopatas. É preciso prevenir antes de remediar, tratar antes de afastar, proteger antes de pagar o auxílio. Do contrário, continuaremos assistindo ao paradoxo cruel: o Estado arrecada com as apostas enquanto paga a conta do vício.