Migalhas de Peso

O ciclo artificial de endividamento do idoso nos contratos de RMC e RCC

Análise crítica revela como idosos são aprisionados em dívidas via RMC e RCC, diante da violação sistemática ao dever de informação previsto no CDC e na IN 138/22 do INSS.

1/7/2025

Esta produção acadêmica tem como propósito auxiliar juristas atuantes na seara do Direito do Consumidor, oferecendo subsídios técnicos e empíricos para a compreensão aprofundada do fenômeno do ciclo artificial de endividamento. Busca-se, com base em documentação oficial e produção científica recente, demonstrar como os consumidores hipervulneráveis são impactados de forma intensa, em especial idosos contratantes de produtos vinculados à RMC - reserva de margem consignável e ao RCC - cartão consignado. A partir da análise de documentos oficiais, pesquisas técnicas e cartilhas governamentais, demonstra-se como esses consumidores, mesmo honrando suas obrigações contratuais, permanecem presos a dívidas que não se extinguem. Isso ocorre em razão do reiterado descumprimento de deveres informacionais básicos, especialmente os previstos no art. 15 da IN INSS 138/22, que estabelece regras para a transparência nas contratações.

De acordo com a IN PRES/INSS 138/22, considera-se RMC - Reserva de Margem Consignável o limite reservado na renda mensal do benefício para uso exclusivo do cartão de crédito, indicando a contratação de um cartão de crédito consignado; e RCC - Reserva de Cartão Consignado o limite reservado na renda mensal do benefício para uso exclusivo do cartão de benefícios, indicando a contratação de cartão consignado de benefício. Embora essas modalidades tenham sido concebidas para facilitar o acesso ao crédito com maior segurança para instituições e consumidores, na prática, revelam-se instrumentos de risco quando utilizadas sem transparência, especialmente junto a públicos hipervulneráveis, como os idosos.

Ainda segundo a IN PRES/INSS 138/22, o art. 5º estabelece que a averbação da contratação de crédito consignado pelo titular do benefício só ocorrerá se atendidas algumas condições essenciais. A operação deve ser realizada com a própria instituição consignatária acordante ou por meio de correspondente bancário a ela vinculado, conforme dispõe a resolução 4.935/21 do CMN - Conselho Monetário Nacional, sendo a instituição consignatária responsável pelos atos praticados em seu nome. O desconto deverá ser formalizado por meio de contrato devidamente assinado, com reconhecimento biométrico, apresentação de documento oficial com foto e CPF, acompanhado da autorização expressa da consignação. Esta autorização, por sua vez, deve ser dada de forma expressa e biometricamente reconhecida, não se admitindo gravações de voz ou autorizações por telefone como meio válido de comprovação. Além disso, o benefício previdenciário não pode estar bloqueado para empréstimos, e o total de descontos com crédito consignado não pode ultrapassar 45% da margem consignável do benefício. Esse percentual é subdividido da seguinte forma: até 35% para empréstimos pessoais consignados, 5% para o cartão de crédito consignado e 5% para o cartão consignado de benefício. Por fim, o contrato deve respeitar o limite máximo de 84 parcelas mensais e sucessivas. Tais exigências têm por finalidade assegurar maior segurança jurídica, transparência e proteção ao consumidor, especialmente àqueles em condição de hipervulnerabilidade. Contudo, como se demonstrará a seguir, essas normas frequentemente são desrespeitadas em prejuízo do consumidor idoso.

A cartilha "Educação Financeira para Pessoas Idosas" (Ministério da Economia, 2020) evidencia que os aposentados e pensionistas do INSS, por sua baixa familiaridade com ferramentas digitais, limitada educação financeira e pouco acesso a informações adequadas, tornam-se alvos preferenciais de práticas bancárias predatórias. Muitos são levados a contratar produtos sem entender os riscos envolvidos.

Segundo dados do Banco Central do Brasil (2020), em 2019 havia 4,6 milhões de consumidores superendividados no país – 5,4% dos que recorreram a algum tipo de crédito. Entre os idosos, esse risco é ainda maior: 7,8% da população endividada acima de 65 anos está em condição de superendividamento.

A nota técnica 11/23 da SENACON/MJ reforça esse cenário ao demonstrar que 80,3% dos casos de superendividamento envolvem descontos diretos em benefícios previdenciários, atingindo de forma acentuada consumidores hipervulneráveis como os idosos. O cartão consignado, pode ser utilizado para saques e compras, com juros mais baixos do que os cartões comuns. No entanto, apenas o valor mínimo da fatura é automaticamente descontado do benefício previdenciário, o que transforma o produto em uma armadilha para o consumidor desinformado.

Esse modelo de contratação infringe frontalmente o art. 15 da IN 138/22, que determina o fornecimento de material informativo no ato da contratação, a entrega do cartão em meio físico ao titular do benefício e o envio mensal da fatura com informações detalhadas (INSS, 2022).

Além da violação administrativa, configura-se também ofensa ao direito à informação previsto no CDC. De acordo com o STJ, no julgamento do REsp 1.364.915, o dever de informar deve ser compreendido como um verdadeiro ônus proativo e uma forma de cooperação entre fornecedor e consumidor: “Mais do que obrigação decorrente de lei, o dever de informar é uma forma de cooperação, uma necessidade social [...] pondo fim à antiga e injusta obrigação que o consumidor tinha de se acautelar (caveat emptor)”, afirmou o ministro Humberto Martins.

A ausência de fatura, cartão físico e informações claras impossibilita o acompanhamento da dívida. Essa desconexão entre o consumidor e sua obrigação contratual fundamenta a tese do ciclo artificial de endividamento: uma dinâmica estruturada para impedir a quitação da dívida, mantendo o consumidor preso a um fluxo permanente de débitos e encargos. Chama-se "artificial" esse ciclo porque ele não nasce da incapacidade de pagamento do consumidor, mas sim da opacidade intencional promovida pelas instituições financeiras. O consumidor segue pagando, sem saber quanto deve ou quando sua dívida terminará.

Dados da nota técnica 11/23 revelam ainda que 76,4% dos superendividados tentaram renegociar suas dívidas, mas não obtiveram êxito. Segundo estudo de Marques (2015), parte expressiva desses consumidores é composta por idosos: 18,5% têm mais de 60 anos e 1% mais de 80 anos, embora esse grupo etário represente apenas 11% da população. Muitos também são arrimos de família, com até três dependentes. A dificuldade em renegociar reforça a tese de que o problema é estrutural e não decorre de inadimplemento voluntário.

Diante disso, conclui-se que o ciclo artificial de endividamento é um fenômeno deliberado, sustentado por falhas informacionais, omissões contratuais e desrespeito à hipervulnerabilidade do consumidor idoso. A não entrega de documentos essenciais, como cartão físico e fatura mensal, somada à ausência de explicações claras, cria uma estrutura de crédito opaca que impossibilita decisões conscientes. Trata-se de uma violação direta à cidadania financeira da pessoa idosa e à função social do contrato. Romper esse ciclo exige mais que reforma legal: é preciso garantir, na prática, o acesso pleno à informação e o respeito aos direitos fundamentais dos consumidores.

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BANCO CENTRAL DO BRASIL. Indicadores de endividamento de risco e perfil do tomador de crédito. Estudo Especial nº 80/2020. In: Relatório de Economia Bancária (2019). Disponível em: https://www.bcb.gov.br/conteudo/relatorioinflacao/EstudosEspeciais/EE080_Indicadores_de_endividamento_de_risco_e_perfil_do_tomador_de_credito.pdf. Acesso em 27. Jun. 2025.

BRASIL. Ministério da Economia. Cartilha de Educação Financeira para Pessoas Idosas. Brasília: Secretaria Especial de Previdência e Trabalho, 2020. Disponível em: https://www.gov.br/previdencia/pt-br/assuntos/previdencia-social/CartilhadeEducaoFinanceiraparaPessoasIdosas.pdf?utm_source=chatgpt.com. Acesso em 27. Jun. 2025.

BRASIL. Ministério da Justiça. Secretaria Nacional do Consumidor. Nota Técnica nº 11/2023/CGEMM/DPDC/SENACON/MJ. Disponível em: https://www.gov.br/mj/pt-br/assuntos/seus-direitos/consumidor/notas-tecnicas/nota-tecnica-no-11-2023-cgemm-dpdc-senacon-mj.pdf. Acesso em 27. Jun. 2025.

INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL. Instrução Normativa PRES/INSS nº 138, de 10 de novembro de 2022. DOU de 13/12/2022. Disponível em: https://www.in.gov.br/web/dou/-/instrucao-normativa-pres/inss-n-138-de-10-de-novembro-de-2022-*-450060585. Acesso em 27. Jun. 2025.

MARQUES, Claudia Lima. Mulheres, Idosos e o Superendividamento dos Consumidores: cinco anos de dados empíricos do Projeto-Piloto em Porto Alegre. Revista de Direito do Consumidor. vol. 100. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 393-423. Acesso em 27. Jun. 2025.

Vandeilson Araújo Dias
Advogado, professor e pesquisador. Pós-graduado em Direito Processual Civil. Atua como coordenador do núcleo de Direito do Consumidor no escritório Parente Ponte Advogados Associados, em Camocim/CE.

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