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Alienação parental e pós-verdade: Crítica ao discurso de revogação

O artigo refuta, com base jurídica e empírica, o discurso de revogação da lei da alienação parental, expondo sua base na pós-verdade e defendendo sua qualificação, não extinção.

22/7/2025

O debate em torno da lei 12.318/10, que dispõe sobre a alienação parental no Brasil, atingiu um ponto de efervescência e polarização sem precedentes. De um lado, vozes clamam por sua revogação completa, argumentando que a norma seria um instrumento de opressão e um escudo para abusadores. De outro, operadores do Direito e setores da sociedade civil alertam para os riscos de desprover o ordenamento jurídico de um mecanismo crucial para a proteção da criança e do adolescente à convivência familiar. Esta análise, fundamentada em dados empíricos e rigor técnico-jurídico, demonstra que o discurso revogatório se assenta em premissas falaciosas e desinformação, e que o verdadeiro desafio reside na qualificação de sua aplicação, não em sua extinção. A revogação seria um retrocesso perigoso, sacrificando a proteção de sujeitos hipervulneráveis em nome de narrativas desconectadas da realidade.

A desconstrução de uma falácia: A lei brasileira e a pseudociência de Gardner

A tese central da campanha pela revogação da lei de alienação parental se sustenta em uma falácia de origem, ao associar indevidamente a legislação brasileira à desacreditada SAP - “Síndrome de Alienação Parental” de Richard Gardner. Essa narrativa, amplificada em ambientes digitais e impulsionada pela lógica da pós-verdade, onde apelos emocionais e crenças pessoais se sobrepõem a fatos objetivos, confunde deliberadamente a controvérsia em torno da SAP com o conteúdo normativo da lei.

É fundamental distinguir esses dois referenciais:

A SAP - "Síndrome de Alienação Parental" de Richard Gardner1: Proposta nos anos 1980, a SAP se apresentava como uma síndrome patológica atribuída à criança, cujo sintoma central seria uma campanha difamatória contra um genitor, supostamente induzida pelo genitor guardião, geralmente a mãe. O trabalho de Gardner carece de validade e fidedignidade científicas, baseando-se em "experiência" e "observações clínicas" sem qualquer delineamento metodológico, grupos de controle, análise estatística ou replicabilidade. O exemplo mais flagrante de sua falta de rigor é a afirmação misógina de que as mães seriam as principais perpetradoras da alienação em cerca de 90% dos casos, dado apresentado sem qualquer base metodológica, o que reforça estereótipos de gênero e desconsidera as complexas dinâmicas de poder em disputas de guarda. Um corpo teórico tão desprovido de integridade científica e neutralidade ética jamais poderia fundamentar leis ou decisões judiciais.

A lei 12.318/10, que disciplina a alienação parental no ordenamento jurídico brasileiro, difere radicalmente da chamada SAP - “Síndrome de Alienação Parental” proposta por Richard Gardner. Ao contrário desta, a norma nacional não faz qualquer menção à síndrome ou ao autor norte-americano, tampouco adota um enfoque psiquiátrico-diagnóstico. Seu objeto é a repressão de atos ilícitos praticados por adultos com a finalidade de interferir na formação psicológica da criança ou adolescente e dificultar o vínculo com o outro genitor. Trata-se, portanto, de um instrumento jurídico-comportamental, que define alienação parental como “a interferência na formação psicológica da criança ou do adolescente (...) para que repudie genitor ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de vínculos com este”, elencando condutas exemplificativas como dificultar o contato ou realizar campanha de desqualificação.

Importa destacar que a lei não restringe o sujeito ativo da conduta alienatória a um dos genitores, estendendo a responsabilização a qualquer pessoa que detenha autoridade ou vigilância sobre a criança, como avós, tutores ou terceiros. Essa previsão afasta, de forma inequívoca, a leitura reducionista que associa alienação parental exclusivamente à figura da “mãe alienadora”.

Ademais, a norma adota um paradigma preventivo e não punitivo, priorizando medidas de caráter educativo, como a mediação familiar e o acompanhamento psicossocial, em contraste com a lógica coercitiva da SAP, que previa, por exemplo, a retirada compulsória da criança de seu convívio habitual. Um de seus aspectos mais relevantes é a exigência de dolo específico para a configuração da conduta alienadora. Ou seja, é necessário que haja a intenção deliberada de interferir na formação psicológica da criança ou adolescente com o objetivo de afastá-la do outro genitor.

Esse requisito impede, de forma categórica, a aplicação da lei em situações nas quais um dos responsáveis apresenta denúncia de abuso ou maus-tratos visando proteger a criança, ainda que a denúncia não venha a ser confirmada posteriormente. A própria lei 14.344/22 (lei Henry Borel) impõe o dever jurídico de denunciar situações de violência ou suspeita desta, sendo logicamente incompatível que o mesmo ordenamento penalize essa conduta como se fosse alienação parental.

Consolida-se, assim, a compreensão de que a alienação parental, no ordenamento jurídico brasileiro, configura uma categoria autônoma de ilícito civil, fundada em comportamentos concretos, observáveis e juridicamente relevantes, em conformidade com os princípios da proteção integral e da prioridade absoluta, previstos tanto na Constituição Federal quanto no Estatuto da Criança e do Adolescente. Nesse contexto, sustentar que a norma estaria "contaminada" por sua justificativa original constitui não apenas uma imprecisão conceitual, mas um erro hermenêutico de base, marcado por uma falácia geneticista que desconsidera a independência interpretativa do texto legal uma vez positivado.

A tentativa de deslegitimar a lei 12.318/10 com fundamento na exposição de motivos de seu projeto de origem (que fazia alusão à denominada “síndrome de alienação parental”) revela uma concepção ultrapassada de interpretação normativa, fundada na ideia superada da "vontade histórica do legislador". Como adverte Carlos Maximiliano, “a lei é mais sábia que o legislador”2, pois, uma vez incorporada ao ordenamento, adquire vida própria e deve ser compreendida à luz dos princípios constitucionais que a regem, e não a partir de intenções subjetivas ou referências doutrinárias eventualmente presentes na sua tramitação. Reduzir a leitura da norma a seus antecedentes legislativos equivale a obscurecer sua função teleológica, sobretudo em se tratando da proteção de direitos fundamentais de crianças e adolescentes, cuja centralidade impõe uma interpretação sistemática e comprometida com sua eficácia material.

Desmentindo o "silenciamento": Os dados falam por si

Outra tese amplamente difundida pelo discurso revogatório é a de que a lei 12.318/10 teria provocado um efeito silenciador nas denúncias de violência contra crianças e adolescentes, especialmente abuso sexual, por medo de mães serem acusadas de alienação. Essa alegação, embora aparentemente legítima, não encontra qualquer respaldo nos dados empíricos disponíveis.

A análise das séries históricas de denúncias do Disque 100 e do Anuário Brasileiro de Segurança Pública evidencia uma tendência de crescimento contínuo nas denúncias de violência contra crianças e adolescentes, mesmo após a promulgação da lei de alienação parental.

Houve, inclusive, uma melhoria qualitativa no registro e categorização das denúncias, indicando o amadurecimento das redes de proteção e da conscientização social. A única queda notável nas notificações ocorreu durante os anos de pandemia de Covid-19 (2020-2021), mas isso foi reflexo das barreiras impostas pelo isolamento social e o fechamento de escolas (que são importantes canais de denúncia), e não da lei de alienação parental5.

Adicionalmente, os registros de estupro de vulnerável compilados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública também refutam categoricamente a ideia de subnotificação: em 2022, foram 74.930 casos, com 61,4% das vítimas com até 13 anos. No triênio 2021-2023, o número ultrapassou 164 mil casos6.

Esses dados demonstram que a hipótese de que a lei de alienação parental silencia vítimas não possui sustentação empírica. É um discurso retoricamente orientado, desconectado da realidade dos fatos e alinhado à lógica da pós-verdade.

Os verdadeiros desafios: A lacuna de dados e a necessidade de qualificação institucional

Se a lei não é o problema, quais são, então, os desafios reais? A resposta reside na má aplicação da norma e na carência de qualificação técnica dos profissionais envolvidos. Um ponto crítico é a lacuna absoluta de dados oficiais sobre a incidência real de falsas denúncias de abuso sexual em contexto de litígio familiar no Brasil. Essa ausência de estatísticas abre espaço para a especulação e a disseminação de discursos alarmistas, que justificam o endurecimento da legislação civil ou a criminalização de quem acusa7, sem um diagnóstico confiável da dimensão do fenômeno.

Uma pesquisa norte-americana, analisando dados de mais de 246 mil crianças, revelou que 79,7% das denúncias iniciais de maus-tratos eram "não substanciadas" (não confirmadas formalmente), mas não necessariamente falsas. Contudo, o estudo constatou que crianças com denúncias não substanciadas enfrentam riscos emocionais e comportamentais similares àquelas com denúncias confirmadas. Fatores como violência doméstica, uso de substâncias por cuidadores e vulnerabilidade social foram associados ao risco. A conclusão é enfática: o status de não substanciação não significa ausência de risco, e serviços de apoio deveriam ser ampliados para todas as famílias denunciadas, como forma de prevenir reincidência de maus-tratos8.

Podemos pensar nas denúncias não substanciadas como um "sensor de fumaça que disparou sem um incêndio visível": mesmo que não haja chamas imediatas (denúncia substanciada), o alarme indica que há algo que merece atenção na casa (a família em risco) e que negligenciar esse aviso pode levar a um incêndio real no futuro, necessitando de intervenção precoce para prevenir danos maiores.

Diante desse cenário, impõem-se soluções concretas para o fortalecimento do Sistema de Garantia de Direitos, incluindo a implementação de um sistema nacional unificado de rastreamento do fluxo processual completo das denúncias de violência contra crianças e adolescentes. Esse sistema deve informar não apenas o número de denúncias, mas seus desfechos: arquivamentos, absolvições (com fundamentação), condenações e, especialmente, a instauração e o resultado de ações por denunciação caluniosa. Isso combateria eficazmente a desinformação sobre supostas falsas denúncias.

Ademais, o fortalecimento do papel da escola como nó central na identificação e encaminhamento de casos, com capacitação de educadores e protocolos para períodos de recesso ou emergências se faz necessário, tal como a manutenção de campanhas permanentes de conscientização sobre os canais de denúncia e a qualificação da escuta e da produção de provas no âmbito judicial, com fortalecimento da metodologia pericial e formação continuada de profissionais.

É preciso compreender que a alienação parental, conforme a lei brasileira, é uma forma de violência psicológica contra a criança e abuso moral contra o genitor injustamente atingido. A má aplicação da norma que vier injustamente penalizar o cuidador legítimo (muitas vezes a mãe), deve ser vista como uma distorção de sua finalidade original. Inclusive, a falsa acusação de alienação parental, quando um genitor manipula o sistema judicial para deslegitimar o cuidador e inverter a narrativa protetiva, é, por si, uma forma de alienação. A legislação brasileira já prevê como atos típicos de alienação parental essa forma de campanha de desqualificação9.

Nesse contexto, decisões como a do TJ/MG (agravo interno 1.0000.24.303388-3/002)10 servem como um farol. O julgado destaca a extrema relevância da prova técnica para a tipificação da alienação parental, justamente para evitar sua utilização abusiva sob a ótica da perspectiva de gênero. Isso é crucial pois, conforme o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero do CNJ, a alegação de alienação parental tem sido uma estratégia utilizada por homens para enfraquecer denúncias de violência e buscar a guarda. Ao condicionar o reconhecimento da alienação parental à prova técnica indissociável, a decisão age preventivamente contra o risco de falsas acusações ou alegações infundadas contra o cuidador, protegendo a parte mais vulnerável no litígio.

Além disso, a decisão mineira demonstra sensibilidade ao melhor interesse e à vontade da criança, determinando que a multa coercitiva para visitas não deve incidir se a criança manifestar sua vontade de não visitar o pai em uma ocasião específica. Essa postura reconhece que "o mais valioso é o interesse da criança e do adolescente no caso de conflito", utilizando a prova técnica e a escuta da criança como mecanismos essenciais para mitigar a revitimização e alinhar as decisões às reais necessidades e sentimentos do menor. Em essência, a decisão funciona como um filtro cuidadoso, distinguindo uma necessidade genuína de intervenção de uma possível utilização estratégica e prejudicial da lei.

É vital que o Judiciário se capacite para reconhecer que a alienação parental não possui um sujeito ativo "pré-definido" por gênero; tanto homens quanto mulheres podem ser agentes ou vítimas dessa violência. O CNJ já deu passos importantes com o protocolo para julgamento com perspectiva de gênero e o Protocolo para Depoimento Especial em Ações de Alienação Parental, diretrizes que devem ser internalizadas como padrões.

O futuro da proteção da infância: Qualificação e responsabilidade

A alegação de que a lei seria machista, e por isso deveria ser revogada, não contribui para a superação dos problemas. Ao contrário, ao negar o conteúdo normativo da legislação e rejeitar a qualificação institucional necessária, essa narrativa aprofunda as distorções. Enquanto a norma é interpretada sem o devido rigor técnico, as injustiças se multiplicam, inclusive contra mulheres que exercem o papel cuidador com responsabilidade.

O verdadeiro avanço reside no aprimoramento institucional da resposta judicial aos casos de alienação parental, na superação de preconceitos estruturais e na consolidação de um modelo de análise técnica, sensível às especificidades de gênero, mas firme na repressão à instrumentalização do Judiciário como arena de litígios abusivos.

Proteger as crianças e adolescentes significa, também, proteger quem zela efetivamente por elas. Isso exige que o sistema de justiça opere com técnica, empatia e responsabilidade, comprometido com a verdade dos fatos, e não com as ilusões confortáveis das crenças ideológicas. A revogação da lei 12.318/10 seria um passo para trás. O caminho é o da aplicação qualificada, da formação contínua de todos os operadores do Direito e da adoção de uma postura técnica e crítica, capaz de garantir que a justiça seja, de fato, um instrumento de pacificação e proteção para as famílias brasileiras.

_______

1 GARDNER, Richard A. The Parental Alienation Syndrome: a guide for mental health and legal professionals. 2. ed. Cresskill, NJ: Creative Therapeutics, 1998.

2 CROME, Prof. da Universidade de Bonn. Apud: MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 23. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2022. p. 26.

3 AGÊNCIA GOV. Disque 100: aprimoramento do sistema garante que mais cidadãos denunciem violações de direitos humanos. Brasília, DF, 24 jan. 2024. Disponível em: https://agenciagov.ebc.com.br/noticias/202401/melhorias-no-disque-100-resultam-em-aumento-de-mais-de-45-no-numero-de-denuncias-de-violacoes-de-direitos-humanos-em-2023-se-comparado-com-2022. Acesso em: 12 jul. 2025.

4 SECRETARIA DE COMUNICAÇÃO SOCIAL (SECOM). Disque 100 registra 657,2 mil denúncias em 2024 e crescimento de 22,6% em relação a 2023. Brasília, DF, 18 jan. 2025. Disponível em: https://www.gov.br/secom/pt-br/assuntos/noticias/2025/janeiro/disque-100-registra-657-2-mil-denuncias-em-2024-e-crescimento-de-22-6-em-relacao-a-2023. Acesso em: 12 jul. 2025.

5 BRASIL. Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Disque 100 tem mais de 6 mil denúncias de violência sexual contra crianças e adolescentes em 2021. Brasília, DF, 12 maio 2021. Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2021/maio/disque-100-tem-mais-de-6-mil-denuncias-de-violencia-sexual-contra-criancas-e-adolescentes-em-2021. Acesso em: 12 jul. 2025.

6 FUNDO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A INFÂNCIA (UNICEF). Panorama da violência letal e sexual contra crianças e adolescentes no Brasil: 2021–2023. Brasília, DF: UNICEF, 2024. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/relatorios/panorama-da-violencia-letal-e-sexual-contra-criancas-e-adolescentes-no-brasil-2021-2023. Acesso em: 12 jul. 2025.

7 Nesse sentido, o PL 4488/2016, disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2077676. Acesso em: 19 jul. 2025.

8 Holbrook, H. M., & Hudziak, J. J. (2020). Risk factors that predict longitudinal patterns of substantiated and unsubstantiated maltreatment reports. Child Abuse & Neglect, 99, Article 104279. https://doi.org/10.1016/j.chiabu.2019.104279

9 MERTEN, Beatrice. Alienação parental e perspectiva de gênero: desafios na aplicação. Migalhas, São Paulo, 9 jul. 2025. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/434129/alienacao-parental-e-perspectiva-de-genero-desafios-na-aplicacao. Acesso em: 13 jul. 2025.

10 MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça. Acórdão de Agravo Interno n. 1.0000.24.303388-3/002. Relator: Des. Francisco Ricardo Sales Costa. Julgado em 22 out. 2024. Publicado em 22 out. 2024.

Beatrice Merten
Defensora Pública do Estado do Rio de Janeiro. Pós Graduada e Mestranda em Direito.

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