1) A violência sexual contra mulheres: conceito, tipificação e contexto social
Há séculos podemos observar na mídia a representação de mulher ideal imposta por uma sociedade patriarcal, que considera, até hoje, mulheres como sujeitos inferiores (segundo sexo, como explica Beauvoir, 1980a e 1980b), cuja existência vale apenas para servir o homem e a família (STUDART, 1974).1
Baseado no modelo cristão, que santifica a passividade absoluta e glorifica a pureza da castidade, o padrão de mulher a ser seguido era (para certos grupos, ainda é) o da virgem Maria, a mulher santa que se torna mãe virgem, sem ser corrompida pelo pecado, ícone da subserviência, da abnegação e da entrega objetificada que sustenta a “divindade” do que Badinter (1985) denomina como “mito do amor materno”, que naturaliza uma construção social de maternidade e, junto dela, uma discursivização sobre o que significa ser mulher.2
De acordo com Beauvoir (1980b, p. 605), “(...) a passividade a que a mulher é destinada é santificada. [...] Não é preciso fazer nada para salvar a alma, basta viver sem desobedecer [...]” essa ‘ordem’ discursiva patriarcal-religiosa. Sendo assim, a mulher, no patriarcado, é vista como ser inferior, cuja docilidade e submissão são consideradas suas únicas virtudes. Ela, como objeto (e não como sujeito), “pertence” a um homem (ao pai, quando jovem; e ao marido, após o casamento) e sua obrigação é, de acordo com esse ethos, manter-se pura e dedicada a ele e às suas vontades. Assim sendo, seu dever, como mulher, é o de satisfazer as vontades dos homens, queira ela ou não, pois sequer é consultada.3 Neste contexto patriarcal, a mulher que ousa se rebelar contra as imposições desse sistema, especialmente no âmbito sexual, é frequentemente reduzida a rótulos opressores. Ao recusar-se a aderir ao ideal de "pureza" - construído como virtude máxima feminina -, ou ao rejeitar o papel de objeto passivo subordinado às vontades masculinas, ela é rapidamente rotulada de maneira pejorativa. Essa construção binária, expressa na visão de que as mulheres devem ser "virgens ou prostitutas", reforça o controle sobre sua sexualidade, negando-lhes o direito de ser sujeito da própria vida e escolhas. Assim, aquelas que desafiam essas normas rompem com essa dinâmica de controle, e revelam as contradições e violências simbólicas mantidas pelo patriarcado.
Essa dinâmica de controle e opressão sobre a sexualidade feminina, sustentada por uma visão patriarcal, cria um cenário propício para a perpetuação de diferentes formas de violência contra a mulher, muitas vezes naturalizadas ou justificadas por essa mesma lógica binária e discriminatória. A objetificação da mulher e a negação de sua autonomia acabam sendo fatores estruturantes de crimes sexuais, que, apesar de configurarem graves violações de direitos humanos, ainda enfrentam desafios no reconhecimento e enfrentamento pela sociedade.
No contexto brasileiro, o CP prevê diversas tipificações desses crimes, que vão desde o estupro até o assédio sexual, buscando, em teoria, proteger as mulheres dessas violações. No entanto, a análise desses dispositivos legais permite observar suas limitações e lacunas, que muitas vezes refletem as próprias raízes culturais de desigualdade de gênero.
O Título VI do CP que abrange os arts. 213 até 218-B (capítulo I e II) diz respeito aos crimes contra a dignidade sexual. Em tal dispositivo está previsto o crime de estupro com suas qualificadoras (213), fraude sexual (215), importunação sexual (215-a), assédio sexual (216-b), registro não autorizado da intimidade sexual (216-b), estupro de vulnerável (217-a), corrupção de menores (218), satisfação de lascívia mediante presença de menor (218-a), favorecimento de prostituição ou conduta semelhante de exploração sexual (218-b) e divulgação de cena de estupro de vulnerável/ pornografia de menor.4
Em conjunto, algumas outras leis como lei Maria da Penha prevê em seu art. 7º, III a existência da violência sexual contra a mulher, materializada pelo CP5, a lei 8.072/1990 (lei dos crimes hediondos) que proclama o estupro e estupro de vulnerável como crimes hediondos, lei 14.245 (lei Mariana Ferrer) que coíbe a prática de atos atentatórios à dignidade da vítima e de testemunhas (por conta do ocorrido na audiência de Mari Ferrer), e outras leis que alteraram e acrescentaram artigos e direitos para vítimas de crimes sexuais.
2) A inércia do Estado e a reprodução da violência sexual
A inércia do Estado, muitas vezes, atua como um espelho e um catalisador da cultura do estupro, perpetuando suas lógicas e dificultando o enfrentamento eficaz da violência sexual. Enquanto a cultura do estupro demonstra como as "regras de conduta" impostas à mulher, a idealização da "vítima perfeita" e a relutância em reconhecer o agressor como um indivíduo comum (e muitas vezes próximo) são elementos centrais dessa cultura, a inércia estatal se manifesta na lentidão ou insuficiência das respostas institucionais a esses fenômenos.6
Essa passividade se revela na forma como o aparelho estatal, desde as forças policiais até o sistema judiciário, pode reproduzir os estigmas da cultura do estupro. Questionamentos sobre a roupa da vítima, seu comportamento, ou a validade de sua denúncia, especialmente quando o agressor é conhecido ou respeitado socialmente, são exemplos práticos dessa inércia. Mesmo com avanços legais, como a ampliação do conceito de estupro no CP brasileiro para incluir "qualquer ato libidinoso" e qualquer pessoa como vítima (e não apenas mulheres), a resistência cultural subjacente faz com que a implementação dessas leis seja desafiadora. A inércia estatal, nesse sentido, não é apenas a falta de ação, mas também a incapacidade de desmantelar os mitos e preconceitos que protegem os agressores e descredibilizam as vítimas, mantendo um ciclo de impunidade e naturalização da violência que a cultura do estupro tanto fomenta.
Desta maneira, a cultura do estupro não se restringe a atos isolados de violência individual, mas constitui um complexo sistema de violências simbólicas que permeia a sociedade. Essa "cultura" atua para legitimar, tolerar e até estimular a violação sexual, apresentando-se como uma prática corriqueira, apesar de publicamente condenável. É fundamental destacar como essa cultura opera em múltiplos níveis para proteger o agressor e, ao mesmo tempo, anular a dignidade e os direitos da vítima, evidenciando-se como uma das formas mais difundidas de violência de gênero, intrinsecamente conectada à perpetuação do machismo e da misoginia. Isso serve para reforçar a ideia de que o estupro é um produto social, e não uma aberração individual,7 onde deveria o Estado ser capaz e competente de impedir sua manifestação e proliferação na sociedade.
Um grande exemplo de sua inércia é o caso Mari Ferrer, o qual deu origem a lei que carrega seu nome. Na audiência de instrução e julgamento de seu caso de estupro, Mariana Ferrer foi insultada pelo advogado do acusado, o qual a ofendeu por sua dignidade e mostrou fotos suas de biquíni. O magistrado, o promotor e seu defensor público se mantiveram em silêncio enquanto a vítima era humilhada em ato judicial.
O Estado é o responsável pelo bem-estar das vítimas de todos os crimes, incluindo as vítimas de crime sexual. Dentro do procedimento de investigação policial e também judicial, a vítima acaba por se revitimizar, ou seja, sofrer o trauma delituoso de novo por conta dos aparatos estatais ao dar seu depoimento, ao participar da audiência, ao encontrar com seu agressor no fórum... Todos esses fatos deveriam ser reprimidos pelo Estado para não causar mais um trauma e mais dor na vítima. Porém, o Estado não possui ainda ferramentas o suficiente para evitar a vitimização secundária, atuando como agente de intensificação da angústia da vítima.
Sendo assim, o Estado se mostra ineficiente para acabar com o sofrimento da vítima, inclusive muitas vezes, por omissão ou por atitudes, contribuindo mais ainda para sua estigmatização e para sua dor.
3) A dignidade da pessoa humana e a necessidade de uma política pública efetiva
A dignidade da mulher está diretamente ligada aos direitos fundamentais que asseguram sua liberdade, igualdade e respeito, tanto na esfera pública quanto na privada. Trata-se de garantir plenamente o reconhecimento da mulher como sujeito autônomo de direitos, capaz de decidir sobre si mesma, seu corpo, suas escolhas e sua existência. No entanto, essa plenitude ainda enfrenta desafios históricos e estruturais que perpetuam desigualdades e violências de gênero, negando, muitas vezes, o direito das mulheres de viverem de forma digna.
No contexto de uma sociedade ainda marcada por raízes patriarcais, a dignidade da mulher foi, ao longo do tempo, subjugada por narrativas que as reduziram a objetos, subordinadas às vontades masculinas. Essas construções se refletem em diferentes âmbitos: familiar, onde as mulheres foram tradicionalmente condicionadas a papéis de submissão e cuidado; no mercado de trabalho, onde enfrentam desigualdade salarial e oportunidades limitadas; e na sexualidade, onde frequentemente sua liberdade é restringida pelo julgamento social.8
A preservação da dignidade da mulher exige, além de mudanças culturais e educacionais, a ação efetiva do Estado e a aplicação rigorosa de leis que coíbam toda forma de violência e discriminação de gênero. A dignidade feminina inclui não apenas a ausência de violência, mas também a garantia de um ambiente social e institucional que promova sua autonomia, respeite sua individualidade e valorize sua contribuição em condições de igualdade frente aos homens. É fundamental compreender que a dignidade da mulher não pode ser reduzida ou condicionada a aspectos externos, mas deve ser tratada como inegociável e intrínseca ao seu ser.9
Promover a dignidade da mulher vai além de reconhecer sua humanidade; significa quebrar estruturas que invisibilizam suas opressões, garantindo acesso à saúde, educação, segurança, oportunidades iguais e liberdade de expressar quem são, sem que isso dependa do controle ou da validação de terceiros.10
Desta maneira, cabe ao Estado garantir esse tratamento para o sexo feminino. De algumas formas, o Estado através de leis como a lei Maria da Penha e outras portarias tenta efetivar esse dever com as mulheres. Através da criação de políticas públicas que visam o aprimoramento de propostas institucionais como por exemplo a criação de delegacias especializadas de mulheres, os direitos de igualdade previstos em todo ordenamento jurídico brasileiro começam a ser vigentes na prática.
No entanto, por mais que essas iniciativas representem avanços importantes na estrutura institucional de enfrentamento à violência contra a mulher, elas ainda são insuficientes diante das raízes culturais profundas que sustentam a desigualdade de gênero. É nesse contexto que se destaca a importância da educação como ferramenta transformadora. A promoção de políticas públicas voltadas para a igualdade de gênero, especialmente por meio de ações educativas nas escolas, nos espaços de trabalho e nos meios de comunicação, é essencial para desconstruir estereótipos, combater a cultura do estupro e prevenir a violência antes mesmo que ela ocorra. Sem uma mudança estrutural na mentalidade coletiva, as garantias legais tendem a permanecer limitadas à teoria.11
Diante do exposto, é evidente que o enfrentamento à violência sexual contra mulheres exige não apenas a existência de leis e estruturas institucionais, mas também um compromisso contínuo com a transformação cultural e social. A atuação do Estado deve ser firme e efetiva, tanto na repressão quanto na prevenção desses crimes, garantindo que os direitos das mulheres sejam respeitados em sua integralidade. Somente por meio da articulação entre o sistema de justiça, políticas públicas bem estruturadas e uma educação voltada para a igualdade de gênero será possível romper com o ciclo de violência e consolidar uma sociedade verdadeiramente justa, igualitária e segura para todas.
Conclusão
A violência sexual contra mulheres representa uma das formas mais graves de violação dos direitos humanos e da dignidade da pessoa humana. Ao longo deste artigo, foi possível compreender que, embora o ordenamento jurídico brasileiro tenha avançado na tipificação de condutas criminosas - como o estupro, a importunação sexual e a divulgação não autorizada de conteúdo íntimo -, persiste uma lacuna preocupante entre a teoria normativa e a realidade vivida pelas vítimas. O contexto sociocultural ainda é marcado por práticas patriarcais, culpabilização da vítima e naturalização da violência, o que contribui para a perpetuação da impunidade.
A análise da atuação estatal demonstrou que a omissão de autoridades, a morosidade nos processos, a ausência de atendimento humanizado e a revitimização institucional enfraquecem os mecanismos de proteção já existentes. Casos emblemáticos, como o de Mariana Ferrer, evidenciam como o sistema de justiça pode se tornar um instrumento de opressão, quando deveria ser uma ferramenta de acolhimento e responsabilização.
Além das medidas repressivas, ficou evidente que o combate à violência sexual exige políticas públicas consistentes, com investimento em delegacias especializadas, capacitação de profissionais e estrutura adequada para acolhimento das vítimas. Contudo, tais ações só alcançarão resultados concretos se forem acompanhadas por uma política nacional de educação baseada na igualdade de gênero. É por meio da formação crítica e da desconstrução de padrões discriminatórios que se criam as bases para uma sociedade menos violenta e mais justa.
Portanto, a superação da violência sexual contra mulheres requer mais do que leis: exige compromisso político, responsabilidade institucional e transformação cultural. Sem essa articulação, os direitos das mulheres continuarão sendo negados, e a dignidade humana seguirá subordinada a uma estrutura histórica de desigualdade.
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1 DE PAULA, L.; SANT’ANA, C. G. A violência contra a mulher no Brasil: repercussão pública do machismo estrutural. Fórum Linguístico, v. 19, n. 1, p. 7555–7574, 19 maio 2022.
2 Ibidem
3 Ibidem
4 BRASIL. DECRETO-LEI No 2.848, DE 7 DE DEZEMBRO DE 1940. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm.
5 BRASIL. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm
6 SANTOS, I. M.; LEITE, M. A. R. A INEFICIÊNCIA ESTATAL NO COMBATE AO ABUSO E EXPLORAÇÃO SEXUAL DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES: O DEVER DE AGIR EM UMA AÇÃO CONJUNTA COM A FAMÍLIA E A SOCIEDADE. Revista Ibero-Americana de Humanidades, Ciências e Educação, v. 11, n. 5, p. 7960–7975, 2025.
7 SOUSA, R. F. DE; SOUSA, R. F. DE. Cultura do estupro: prática e incitação à violência sexual contra mulheres. Revista Estudos Feministas, v. 25, n. 1, p. 9–29, 1 abr. 2017.
8 COELHO, Gustavo. UM OLHAR SOBRE A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA: MECANISMOS À FAVOR DA PROTEÇÃO DA DIGNIDADE DA MULHER. PROJEÇÃO, DIREITO E SOCIEDADE, [S. l.], v. 2, n. 2, p. 385–391, 2011. Disponível em: https://projecaociencia.com.br/index.php/Projecao2/article/view/114. Acesso em: 29 jul. 2025.
9 Ibidem
10 Ibidem
11 Ibidem
12 BRASIL. DECRETO-LEI No 2.848, DE 7 DE DEZEMBRO DE 1940. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm
13 BRASIL. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm
14 COELHO, Gustavo. UM OLHAR SOBRE A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA: MECANISMOS À FAVOR DA PROTEÇÃO DA DIGNIDADE DA MULHER. PROJEÇÃO, DIREITO E SOCIEDADE, [S. l.], v. 2, n. 2, p. 385–391, 2011. Disponível em: https://projecaociencia.com.br/index.php/Projecao2/article/view/114 .Acesso em: 29 jul. 2025.
15 DE PAULA, L.; SANT’ANA, C. G. A violência contra a mulher no Brasil: repercussão pública do machismo estrutural. Fórum Linguístico, v. 19, n. 1, p. 7555–7574, 19 maio 2022.
16 MACIEL, L.; VILHENA, C. A DIGNIDADE DA MULHER COMO LIMITE À LIBERDADE DE EXPRESSÃO 1. [s.l: s.n.]. Disponível em: https://www.editorarealize.com.br/editora/ebooks/conidih/2019/PROPOSTA_EV128_ MD3_ID164_06092019180250.pdf . Acesso em: 29 jul. 2025.
17 SANTOS, I. M.; LEITE, M. A. R. A INEFICIÊNCIA ESTATAL NO COMBATE AO ABUSO E EXPLORAÇÃO SEXUAL DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES: O DEVER DE AGIR EM UMA AÇÃO CONJUNTA COM A FAMÍLIA E A SOCIEDADE. Revista Ibero-Americana de Humanidades, Ciências e Educação, v. 11, n. 5, p. 7960–7975, 2025.
18 SOUSA, R. F. DE; SOUSA, R. F. DE. Cultura do estupro: prática e incitação à violência sexual contra mulheres. Revista Estudos Feministas, v. 25, n. 1, p. 9–29, 1 abr. 2017.