Migalhas de Peso

O preço do pioneirismo no Direito

Uma reflexão sobre inovação jurídica, resistência das instituições e o surgimento do Direito Penal Médico no Brasil.

6/8/2025

1. Introdução

Ao longo da história jurídica, os grandes avanços doutrinários, legislativos e práticos foram inaugurados por mentes inquietas, que ousaram vislumbrar o que ainda não era evidente para a maioria. Em um sistema legal muitas vezes estruturado sobre tradições e precedentes, o pioneiro surge como aquele que caminha à frente, abrindo trilhas em terrenos inexplorados. No entanto, esse caminho, embora glorioso em sua essência, é também solitário, custoso e frequentemente desacreditado. O Direito, como campo do saber e da prática social, reserva um preço considerável para quem se propõe a inovar: o preço do pioneirismo.

Este artigo tem por objetivo refletir sobre o custo - pessoal, técnico, institucional e cultural - que acompanha o advogado ou jurista que inaugura uma nova área de atuação ou desenvolve um ramo emergente do Direito. Mais do que traçar um panorama teórico, buscamos oferecer uma análise crítica sobre os desafios, resistências e estratégias que permeiam esse processo. Para tanto, abordaremos: (i) o fenômeno da rejeição inicial às novas áreas jurídicas; (ii) a necessidade de conhecimento e técnica para legitimar a atuação pioneira; (iii) o papel da divulgação e conscientização; (iv) a construção de diretrizes e marcos éticos e normativos; e (v) o reconhecimento tardio que costuma coroar os que persistem com visão de futuro.

2. O caminho da solidão: A rejeição inicial e a dúvida coletiva

Todo processo de inovação jurídica… Todo processo de inovação jurídica começa com um desconforto: o incômodo diante de um vácuo normativo, de uma injustiça reiterada ou de uma nova realidade social ainda não contemplada pelas categorias tradicionais. No entanto, o primeiro sentimento que o pioneiro costuma enfrentar não é o aplauso, mas a desconfiança. Não raro, sua iniciativa é recebida com ironia, ceticismo ou simples desdém.

No Brasil, os exemplos se multiplicam. Quando se começou a falar em “Direito Médico”, nos anos 1990, muitos juristas torciam o nariz, considerando tratar-se de uma subcategoria da responsabilidade civil. Hoje, o Direito Médico é uma especialidade consolidada, com doutrina, jurisprudência e comissões específicas em quase todas as seccionais da OAB. O mesmo ocorreu com o “Direito Digital”, outrora considerado uma moda passageira, hoje fundamental diante da revolução tecnológica.

Essa rejeição inicial ocorre porque o novo desafia o status quo. Ele exige desapego de modelos prontos, quebra de paradigmas e aceitação de que nem tudo está encerrado nos manuais. A figura do pioneiro, portanto, é desconfortável por natureza: ela denuncia, com sua simples existência, a omissão da maioria. E o ser humano, por instinto, tende a reagir com hostilidade ao que não compreende.

Por isso, o pioneirismo exige coragem. O advogado que decide atuar em uma área ainda não regulamentada, pouco conhecida ou carente de jurisprudência consolidada, deve estar preparado para caminhar sem mapas, para se orientar por princípios, e não por regras já postas. Essa solidão inicial é o primeiro e mais doloroso preço do pioneirismo.

3. O antídoto do estudo: Legitimação técnica do novo caminho

Para resistir à rejeição...Para resistir à rejeição e conquistar espaço legítimo, o único caminho é o saber. Estudo profundo, constante atualização, embasamento técnico irrepreensível - esses são os alicerces que sustentam o pioneiro diante das críticas e da resistência.

É fundamental que o profissional que decide desbravar uma nova seara jurídica domine tanto o arcabouço legal existente quanto as lacunas que precisam ser preenchidas. Conhecer doutrina nacional e estrangeira, jurisprudência comparada, marcos regulatórios correlatos e fundamentos constitucionais é essencial para dar segurança a sua atuação e credibilidade ao seu discurso.

A técnica é o escudo do inovador. Quando confrontado com críticas vazias ou desconfiança infundada, o pioneiro deve responder com solidez argumentativa e respaldo teórico. Não basta querer inovar; é preciso fazê-lo com responsabilidade, com respeito ao ordenamento jurídico e com base no princípio da segurança jurídica, sempre que possível buscando diálogo com os precedentes dos Tribunais Superiores - especialmente com o STF e o STJ, intérpretes maiores do sistema jurídico brasileiro.

O Direito não é - e jamais poderá ser - apenas voluntarismo. A intuição é válida, mas precisa ser racionalizada. Por isso, o pioneirismo exige não apenas ousadia, mas método. Sem método, o novo se perde no improviso; com método, ele se transforma em escola.

4. Divulgar para legitimar: A necessidade de conscientização social e institucional

Nenhuma nova área do Direito se firma apenas nos autos dos processos. Para que se consolide, é preciso que ela encontre eco na sociedade e ressonância institucional. Daí a importância da divulgação responsável, da produção doutrinária, da participação em eventos acadêmicos, da atuação junto a entidades de classe e da educação continuada.

O pioneiro não pode atuar isoladamente. É preciso que ele se torne multiplicador de conhecimento: escrevendo artigos, ministrando cursos, promovendo debates, prestando esclarecimentos à população e, sobretudo, construindo redes de diálogo com outros profissionais. A advocacia é, antes de tudo, um serviço público. E, nesse sentido, divulgar corretamente os fundamentos, os objetivos e os limites de uma nova área jurídica é uma forma de prestar contas à sociedade.

Além disso, a conscientização institucional - notadamente no âmbito da OAB, das universidades e dos conselhos profissionais - é estratégica. O pioneiro deve buscar reconhecimento e diálogo com essas estruturas, não apenas para ampliar sua legitimidade, mas também para contribuir na construção de diretrizes éticas e boas práticas que possam orientar futuras gerações.

É nesse ponto que o pioneirismo se encontra com a responsabilidade coletiva. Ao invés de apenas ocupar um “nicho”, o pioneiro deve colaborar na edificação de um campo jurídico saudável, técnico e socialmente comprometido. Trata-se de ir além da atuação individual e compreender-se como agente transformador de um processo histórico em curso.

5. Construindo diretrizes: Da prática à teoria e da teoria à norma

Não há pioneirismo sem método, tampouco avanço sem sistematização. Após o enfrentamento da desconfiança inicial e da legitimação técnica por meio do estudo e da divulgação, chega o momento mais árduo - porém mais fecundo - do trabalho pioneiro: a construção das diretrizes que sustentarão aquela nova área jurídica.

Essas diretrizes não surgem prontas. Ao contrário, elas são extraídas da experiência forense, da análise casuística, da atuação ética e reiterada no cotidiano, da mediação com outros saberes - como a medicina, no caso do Direito Médico - e da reflexão doutrinária séria e comprometida. Assim como no campo da bioética, que emergiu como resposta a novas realidades clínicas, a teoria do Direito precisa se adaptar e construir novos contornos para lidar com situações ainda não regulamentadas.

Nesse cenário, o pioneiro não é apenas operador do Direito, mas também seu construtor. Ele participa da formação de um campo normativo que antes era apenas um feixe disperso de preocupações. Define padrões, debate limites, inspira resoluções, contribui para a consolidação de jurisprudência e dialoga com o legislador, direta ou indiretamente, através de ações concretas que provocam transformações.

É nesse ponto que a atuação do jurista ganha valor histórico. Ele deixa de ser apenas um advogado criativo ou ousado, para tornar-se verdadeiro agente estruturante de um ramo do Direito. E isso nos leva ao campo ainda pouco trilhado, mas absolutamente necessário, do Direito Penal Médico.

6. Direito Penal Médico: A fronteira pioneira entre a vida, a técnica e a responsabilidade

Poucas áreas jurídicas carregam tamanho potencial transformador - e simultaneamente tamanho risco - quanto o nascente Direito Penal Médico. Até pouco tempo, as infrações penais na atividade médica eram tratadas de modo colateral, dentro do grande guarda-chuva do Direito Penal comum. Mas essa abordagem generalista já não se sustenta diante da complexidade contemporânea da atuação em saúde.

O Direito Penal Médico desponta como resposta à crescente criminalização de atos médicos, odontológicos e hospitalares, muitas vezes sem o necessário filtro técnico ou critério jurídico adequado. De maneira preocupante, cresce o número de profissionais de saúde processados por homicídio culposo, lesão corporal, omissão de socorro, falsidade ideológica, entre outros delitos. Ao mesmo tempo, esses processos frequentemente carecem de perícia apropriada, de compreensão dos protocolos clínicos ou mesmo de mínima familiaridade com a realidade hospitalar.

É nesse vácuo de proteção e de racionalidade que o Direito Penal Médico se justifica. Ele nasce da urgência por um tratamento jurídico técnico, justo e proporcional para os casos em que condutas médicas ou odontológicas são analisadas sob o prisma penal. É um campo que exige do operador do Direito conhecimento profundo de medicina legal, protocolos assistenciais, regulação sanitária e dos limites éticos e técnicos da prática profissional.

Ser pioneiro nesse ramo implica não apenas defender médicos, mas defender a própria lógica do Direito Penal frente aos riscos de uma “judicialização punitivista” da saúde. Implica também capacitar profissionais da saúde para atuarem com consciência de seus deveres e limites, sem medo, mas com cautela. Implica, sobretudo, estabelecer critérios: o que é erro técnico e o que é crime? Quando a falha é humana e quando é dolosa? Como se deve periciar um procedimento cirúrgico ou um atendimento em UPA?

Essa nova fronteira não é apenas uma área de atuação - é uma trincheira ética. E, como toda trincheira, exige quem esteja disposto a ocupar o front.

7. A crítica como combustível: Resistência, ridicularização e o valor da visão de futuro

Todo pioneiro é, por natureza...Todo pioneiro é, por natureza, um alvo. Quem ousa apontar para o futuro é inevitavelmente confrontado por aqueles que preferem o conforto do passado. A crítica - muitas vezes destrutiva - acompanha o inovador desde o primeiro passo. No Direito, onde a tradição tem peso de dogma, a resistência ao novo ganha contornos ainda mais intensos.

No caso do Direito Penal Médico, essa resistência é ainda mais acentuada. Há quem acuse de oportunismo quem busca atuar nesse campo; há quem alegue que “estão criando moda” ou “criminalizando a medicina”. No entanto, tais críticas, em sua maioria, ignoram o fato de que a criminalização já está em curso - com ou sem o olhar técnico do advogado.

A função do pioneiro é justamente essa: não negar a realidade, mas compreendê-la com profundidade, organizá-la com método e intervir com responsabilidade. A crítica é inevitável, mas, para o verdadeiro visionário, ela se torna combustível. A história está repleta de exemplos de áreas do saber que foram ridicularizadas antes de se tornarem essenciais.

Visão de futuro é dom de poucos, mas é missão de todos aqueles que se propõem a transformar o Direito em ferramenta de justiça e não de injustiça travestida de legalidade. Por isso, o pioneiro precisa aprender a suportar a crítica, mas também a usá-la como farol - o que incomoda, revela o que é relevante.

8. Conclusão: O preço do pioneirismo como investimento no futuro do Direito

O pioneirismo tem seu preço. Ele cobra em forma de noites insones, incertezas, desconfianças e críticas. Mas também oferece recompensas que não se medem em moedas: a construção de um legado, a transformação de realidades, a edificação de um campo jurídico que antes era invisível.

Quem atua hoje na estruturação do Direito Penal Médico no Brasil - seja como advogado, doutrinador, juiz, promotor ou conselheiro - está participando de um movimento histórico. Está contribuindo para que a relação entre Direito e medicina seja mais justa, equilibrada e técnica. Está ajudando a formar um novo ramo do saber jurídico que, certamente, será indispensável às futuras gerações.

Ao fim e ao cabo, toda grande conquista começa com alguém que teve coragem de caminhar sozinho. Mas nenhum pioneiro permanece só por muito tempo. Quando a trilha é bem aberta, ela logo se transforma em estrada. E então, muitos virão por ela, guiados pela clareza de quem soube ver primeiro.

Andre Luiz Barretto Canuto
Advogado e Professor em pós-graduação, Mestre em Direito Penal - especializado em cupabilidade médica ( direito penal médico ) e crimes financeiros de competência da justiça federal.

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