O juízo de admissibilidade da apelação compete exclusivamente ao órgão ad quem, conforme dispõe o § 3º do art. 1.010 do CPC: "Após as formalidades previstas nos §§ 1º e 2º, os autos serão remetidos ao tribunal pelo juiz, independentemente de juízo de admissibilidade."
Ao órgão prolator da sentença não cabe analisar a presença dos pressupostos de admissibilidade do recurso que a impugna.
Então, por que a apelação é dirigida ao órgão a quo? O legislador preferiu manter essa etapa procedimental prévia - presente no CPC passado - levando em conta a existência de processos que tramitam em autos físicos.
Como os autos físicos são cada vez mais raros e estão com os dias contados, entendo que o legislador poderia rever essa regra e adotar um procedimento semelhante ao do agravo de instrumento.
Exceto nas hipóteses de retratação (apelação contra decisão sem resolução de mérito ou improcedência liminar), o trabalho do juízo a quo na apelação é meramente burocrático: ouvir o apelado e remeter os autos ao tribunal.
Nem mesmo conceder prazo ao recorrente para sanar o vício ou complementar a documentação exigível (parágrafo único do art. 932 do CPC) pode o juiz, porque, em caso de descumprimento, a consequência deve ser a inadmissibilidade, e o magistrado de primeiro grau não tem competência para declará-la.
E se o juiz obstar o processamento da apelação por considerá-la inadmissível?
O STJ, sob o regime dos repetitivos, fixou a Tese 1.267, cujo teor é o seguinte:
"1) A decisão do juiz de primeiro grau que obsta o processamento da apelação viola o § 3º do art. 1.010 do CPC, caracterizando usurpação da competência do tribunal, autoriza manejo da reclamação do inciso I do artigo 988;
2) Na hipótese em que o juiz da causa negar seguimento à apelação no âmbito da execução ou cumprimento de sentença, também será cabível agravo de instrumento, além da reclamação prevista no inciso I do art. 988;
3) Modulação: até a data da publicação do acórdão do presente julgamento, com base no princípio da fungibilidade e em caráter excepcional, é possível o recebimento da correição parcial, do agravo de instrumento ou do mandado de segurança como reclamação apta a impugnar a decisão do juiz de primeiro grau que inadmite a apelação, desde que não tenha ocorrido seu trânsito em julgado."
Entendo que a Corte acertou nos três itens.
É evidente o cabimento da reclamação para a preservação da competência do tribunal (inciso I do art. 988 do CPC). Se a competência é exclusiva do órgão ad quem, a realização do juízo de admissibilidade pelo órgão a quo constitui inegável usurpação de competência.
Por outro lado, toda decisão interlocutória proferida na execução (processo de execução ou cumprimento de sentença) desafia agravo de instrumento (parágrafo único do art. 1.015 do CPC). Assim, caso o juízo de primeiro grau inadmita a apelação na execução, caberá também a interposição do agravo de instrumento.
Quanto ao agravo de instrumento na fase de conhecimento, ao mandado de segurança e à correição parcial, o STJ afastou o cabimento de tais instrumentos, mas, acertadamente, modulou os efeitos da decisão para, até a sua publicação, permitir a aplicação da fungibilidade com a reclamação, desde que não haja trânsito em julgado.
Afirmo que se trata de um acerto pelo seguinte: a Corte adotou a fungibilidade de meios processuais, sinalizando que ela não se restringe a recursos (ou tutelas de urgência, ou ainda possessórias); e a dúvida objetiva existe enquanto não há precedente judicial vinculante a respeito do tema. Depois disso, a utilização do meio processual inadequado constitui erro grosseiro.
E se a apelação for manifestamente inadmissível e o juiz obstar o seu processamento, ainda caberá reclamação?
Não há autorização legal para que o juiz negue seguimento à apelação, mesmo que ela seja manifestamente ou flagrantemente inadmissível.
Portanto, caso o juiz negue seguimento à apelação manifestamente inadmissível, caberá reclamação (inciso I do art. 988 do CPC), e agravo de instrumento em se tratando de execução (parágrafo único do art. 1.015 do CPC).
Vale lembrar, todavia, que o STF e o STJ têm relativizado a interpretação da lei em recursos que guardam certa similaridade procedimental com a apelação: o agravo em recurso especial e o agravo em recurso extraordinário.
Tais recursos são interpostos perante o órgão a quo, mas o juízo de admissibilidade é exclusivo do órgão ad quem, conforme dispõe o § 3º do art. 1.042 do CPC: "O agravado será intimado, de imediato, para oferecer resposta no prazo de 15 (quinze) dias."
Portanto, caso o presidente ou o vice-presidente do tribunal de origem negue seguimento ao agravo, caberá reclamação (inciso I do art. 988 do CPC e súmula 727 do STF).
No entanto, julgados do STF e do STJ apresentam o entendimento de que não cabe reclamação, por inexistir usurpação de competência, caso o AREsp ou o ARE seja manifestamente inadmissível (v.g., STF - Rcl 131.118 ED, Rcl 22.864 AgR; STJ - AgRg na Rcl 46.356/SP; AgInt na Rcl 44.035/SC).
Nessa mesma linha, é possível encontrar julgados do STJ permitindo ao órgão de primeiro grau obstar a subida da apelação manifestamente inadmissível (v.g., RMS 54.549; AgInt no RMS 54.301).
Com o devido respeito, tais julgados se amparam muito mais em política judicial de redução de acervo que propriamente em Direito. Algo perfeitamente compreensível, especialmente em se tratando de AREsps e AREs, mas juridicamente inadequado.
Como afirmei em outro texto, "Juiz não legisla, nem sob a escusa: de concretizar princípios ou direitos fundamentais programáticos, de fazer um pseudo-controle de constitucionalidade, transformando questões infraconstitucionais (ou constitucionais por reflexo) em questões diretamente constitucionais, ou ainda, transformando o controle de constitucionalidade em mero juízo de razoabilidade, de proporcionalidade ou de ponderação; da vedação ao non liquet ou de suprir uma suposta omissão ou atuação deficiente de outro Poder."
O texto legal, quanto à competência para a realização do juízo de admissibilidade e ao cabimento da reclamação - seja no agravo em recurso especial ou em recurso extraordinário, seja na apelação -, não é uma moldura para que o juiz nela insira a tela que desejar, pois não trata de cláusula geral processual. Nem mesmo de conceito jurídico indeterminado se trata. Se a lei merecer algum tipo de aperfeiçoamento, que seja alterada por quem tem a competência constitucional para tanto.
Como disse Antonin Scalia: "Se você for um juiz bom e fiel, você deve se resignar ao fato de que nem sempre vai gostar das conclusões a que você chega. Se você gosta delas o tempo todo, provavelmente está fazendo algo errado."