A contratação de sistemas de ERP - Enterprise Resource Planning tem se tornado um passo estratégico fundamental para empresas de todos os portes, dada a sua capacidade de integrar processos internos, otimizar operações e ampliar o controle sobre as diversas áreas do negócio. No entanto, apesar das promessas de eficiência e ganho de produtividade, a implementação de um sistema ERP é um processo complexo, repleto de desafios técnicos, contratuais e operacionais, o que demanda especial atenção por parte das empresas contratantes.
Por envolver tecnologia avançada e soluções inovadoras de gestão, esse tipo de serviço demanda investimentos expressivos, refletindo o alto custo associado à busca por eficiência e aprimoramento na gestão empresarial.
Outro aspecto relevante a ser considerado é que grande parte das empresas desenvolvedoras e licenciadoras de softwares de gestão, via de regra, terceiriza o processo de implantação do sistema ERP, com o claro propósito de mitigar ou até mesmo afastar sua responsabilidade em caso de falhas na execução do projeto.
Tal conduta torna-se evidente já na fase contratual, quando o instrumento celebrado promove uma dissociação completa das responsabilidades entre a fornecedora do software e a empresa encarregada da implantação do projeto, eximindo cada parte de qualquer obrigação solidária ou conjunta, mesmo diante de eventuais falhas na execução.
Essa fragmentação contratual, somada à ausência de uma definição clara de responsabilidades, contribui diretamente para o elevado índice de insucessos em projetos de ERP. Tais fracassos não são incomuns e os prejuízos associados a uma implantação mal conduzida podem comprometer significativamente a saúde financeira da organização.
Entretanto, muito embora grande parte das empresas fornecedoras ou licenciadoras de software procure se dissociar contratualmente do canal de implantação, na tentativa de afastar sua responsabilidade por eventuais falhas no projeto, tal desvinculação não é eficaz do ponto de vista jurídico.
Isso porque, a atuação coordenada, com a indicação direta do canal, existência de vínculo de parceria comercial, promessa conjunta de resultados, homologação e indicação do canal, faz com que a jurisprudência tende a reconhecer a responsabilidade solidária entre os envolvidos, especialmente com base na teoria da aparência e nos princípios da boa-fé objetiva e da confiança legítima.
Tal entendimento tem sido reiteradamente reconhecido em decisões judiciais, nas quais se observa que, ainda que formalmente separadas, a atuação conjunta das empresas envolvidas no fornecimento e implantação do ERP configura verdadeira comunhão de interesses e riscos.
A responsabilidade solidária, nesses casos, pode decorrer dos seguintes aspectos:
1. Relação jurídica entre a fornecedora e o canal de implantação - pela forma como as empresas se apresentam ao mercado e interagem com o cliente. Quando o canal de implantação atua sob chancela do fornecedor, com autorização para representar a marca, utilizar ferramentas exclusivas e atuar com base em metodologias oficiais, fica caracterizado o vínculo de confiança estendido, sendo irrelevante se há contrato formal entre canal e desenvolvedora.
- de regra esta forma de atuação pressupõe a existência do nexo causal entre a(s) conduta(s) ilícita(s) das empresas caracterizadas pela falha do sistema ERP e os danos causados à empresa contratante (material e muitas vezes moral).
Vejamos jurisprudência sobre o Tema no TJ/SP:
CONTRATO - Rescisão de contrato de prestação de serviços - Fornecimento de Software - Solidariedade entre as corrés mantida - Contratos firmados com a autora demonstram a atuação conjunta das corrés, que são franqueadora e franqueada - Provas dos autos comprovam que a autora nunca utilizou os serviços contratados - Disponibilização, implantação e customização do sistema de software não foi finalizada - Corré contratada não cumpriu o contrato e, ainda que ela tivesse liberado o sistema à autora contratante, isso não resolveu o problema, pois o objetivo do contrato era fornecer àquela um sistema que deveria funcionar diariamente, com acesso aos seus empregados, mas estes nunca o utilizaram - Não bastou a mera entrega do software, porque ninguém adquire produto ou serviço que não funciona, o que denota que tal entrega foi inoperante, equivalente a algo inexistente para os fins almejados - Demonstração da culpa das corrés para a rescisão do contrato – Multa contratual que não pode ser exigida da autora porque as rés deram causa à rescisão - Sentença mantida - Ação procedente em parte e improcedente a reconvenção - Sentença confirmada pelos seus próprios fundamentos, nos termos do art. 252 do regimento Interno deste TJ/SP – Honorários recursais - Cabimento - Honorários advocatícios majorados de 10% para 15% do valor da condenação (na ação) e de 10% para 15% sobre o valor do pedido reconvencional, este devido apenas pela corré TOTVS - Aplicação do disposto no art. 85, § 11, do CPC – Recursos desprovidos. (TJ/SP - AC: 10124725720188260625 SP 1012472-57 .2018.8.26.0625, relator.: Álvaro Torres Júnior, Data de Julgamento: 21/3/2022, 20ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 22/3/2022).
2. Aplicação do CDC – Ainda que o contrato tenha sido celebrado entre pessoas jurídicas, tanto a doutrina quanto a jurisprudência reconhecem a possibilidade de aplicação do CDC, por duas razões alternativas: (i) quando a empresa contratante figura como destinatária final do produto ou serviço, ou seja, quando a contratação não se vincula à sua atividade-fim; ou (ii) em razão da vulnerabilidade técnica da contratante, hipótese que se evidencia no caso concreto diante da alta complexidade e tecnicidade inerente ao software adquirido. Consequentemente, a aplicação do CDC atrai a responsabilidade solidária de toda a cadeia de fornecedores/prestadores de serviços levando à condenação de ambas as empresas em casos de falha do projeto (fornecedora/licenciadora e canal de implantação). Do ponto de vista jurídico, tal situação encontra respaldo no art. 7º, parágrafo único, do CDC, que prevê a solidariedade entre todos os participantes da cadeia de fornecimento.
Vejamos jurisprudência sobre o Tema no TJ/SP:
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE RESCISÃO CONTRATUAL C/C INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL E RESTITUIÇÃO DE VALORES. CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. APLICAÇÃO . REQUERENTE DESTINATÁRIA FINAL DO PRODUTO E DOS SERVIÇOS ALÉM DE VULNERÁVEL TECNICAMENTE. INTELIGÊNCIA DO ARTIGO 2º DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. NULIDADE DE CLÁUSULAS. RECONHECIMENTO . CLÁUSULAS 21 E 22 DO CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. PREVISÃO DE ISENÇÃO E LIMITAÇÃO DE RESPONSABILIDADE CONTRATUAL DA REQUERIDA TOTVS S.A. CONTRARIEDADE AO ARTIGO 51 DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR . NULIDADE DE PLENO DIREITO. RESTITUIÇÃO DAS CONTRAPRESTAÇÕES. MANUTENÇÃO. CONTRATAÇÃO DE SOFTWARE NÃO ENTREGUE . CRONOGRAMA DE IMPLANTAÇÃO INOBSERVADO. PROBLEMAS NA IMPLANTAÇÃO NÃO SOLUCIONADOS. RESPONSABILIDADE INDISSOCIÁVEL DE AMBAS AS REQUERIDAS. CONSTATAÇÃO EM PROVA PERICIAL . PREJUÍZO A TODO O SERVIÇO PARCIALMENTE PRESTADO. PRODUTO IMPRESTÁVEL À CONTRATANTE. inteligência do art. 476 do CC. SENTENÇA MANTIDA . ÔNUS SUCUMBENCIAL. MANUTENÇÃO. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS DE SUCUMBÊNCIA RECURSAL. MAJORAÇÃO . APLICAÇÃO DO ART. 85, § 11º, DO CPC.RECURSOS CONHECIDOS E NÃO PROVIDOS. 1. Em se tratando de destinatária final dos serviços e do produto ou, ainda se assim não fosse, diante da vulnerabilidade técnica da Requerente, são aplicáveis as normas do CDC . 2. São nulas de pleno direito as cláusulas que “impossibilitem, exonerem ou atenuem a responsabilidade do fornecedor por vícios de qualquer natureza dos produtos e serviços ou impliquem renúncia ou disposição de direitos”, na forma do artigo 51 do Código de Defesa do Consumidor. 3. Reconhecem-se descabidos os pagamentos realizados a título de contraprestação por serviços que visavam a entrega final de um produto nunca finalizado, nos termos artigo 476 do Código Civil. (TJPR - 11ª Câmara Cível - 0020861-90.2014.8.16 .0035 - São José dos Pinhais - Rel.: DESEMBARGADORA LENICE BODSTEIN - J. 25.08 .2022). (TJ/PR - APL: 00208619020148160035 São José dos Pinhais 0020861-90.2014.8.16 .0035 (Acórdão), relator.: Lenice Bodstein, Data de Julgamento: 25/8/2022, 11ª Câmara Cível, Data de Publicação: 29/8/2022)
Vale destacar que a solidariedade não implica em presunção automática de culpa, mas assegura à parte prejudicada a possibilidade de acionar qualquer um dos corresponsáveis, ou mesmo ambos (o que é mais indicado) para reparação integral do dano. Caberá, então, à parte demandada ou pagadora, se for o caso, exercer o direito de regresso contra o corresponsável, nos termos do art. 283 do CC.
Essa sistemática garante maior efetividade à tutela judicial e evita o prolongamento do litígio em razão de disputas paralelas sobre a origem do problema. Na prática, facilita a recomposição do equilíbrio contratual e o ressarcimento célere dos prejuízos suportados pela empresa usuária.
Para que se tenha maiores oportunidades de vencer demandas desta magnitude é necessário que desde a inicial ambas as empresas (fornecedora/licenciadora e canal de implementação) sejam incluídas no feito, isto porque, juridicamente não se pode atribuir responsabilidade a empresa não integrante da relação processual, ou ainda que possível (eventualmente) a decisão judicial tem efeitos somente inter partes.
Além disso, a exclusão de uma das eventuais corresponsáveis compromete seriamente a efetividade da tutela jurisdicional, podendo não apenas enfraquecer os fundamentos do pedido como também ensejar, em determinadas hipóteses, a improcedência da demanda. Em casos mais extremos, a ausência de parte necessária ao deslinde da controvérsia pode levar à nulidade do processo, especialmente quando caracterizado o cerceamento de defesa ou a impossibilidade de exercício pleno do contraditório e da ampla defesa por aqueles que, embora substancialmente envolvidos, não foram formalmente incluídos na lide.
Tal risco se agrava em demandas que envolvem relações jurídicas complexas, como aquelas firmadas em cadeia entre fornecedora, implementadora e cliente final, nas quais há corresponsabilidade técnica e contratual. Isto porque, o ajuizamento da ação contra apenas um dos entes poderá acarretar dificuldades probatórias, ônus excessivo à parte autora e, em última análise, risco de improcedência parcial ou total da demanda.
Portanto, a formação adequada do polo passivo desde a propositura da ação não é apenas uma estratégia recomendável, mas, sim, uma exigência de ordem prática e jurídica para garantir a plenitude da prestação jurisdicional e evitar decisões inócuas ou juridicamente frágeis.
Sobre o tema vejamos o entendimento do STJ:
RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. AÇÃO DE RESCISÃO CONTRATUAL. CONTRATO DE SUBLICENCIAMENTO DE SOFTWARE . CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. AFASTAMENTO. PRECLUSÃO. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA . PREVISÃO LEGAL. INEXISTÊNCIA. CULPA CONCORRENTE. AVENÇA . RESOLUÇÃO. RETORNO AO STATUS QUO ANTE. 1. Recurso especial interposto contra acórdão publicado na vigência do CPC de 2015 (Enunciados Administrativos nºs 2 e 3/STJ) . 2. Contrato celebrado por usuário final com empresa autorizada a sublicenciar software de gestão empresarial de propriedade da recorrente (SAP BRASIL LTDA.) e a operar nas demais etapas necessárias à operacionalização do sistema. 3 . Resolução do contrato por culpa concorrente imputável à desenvolvedora do software, à empresa responsável pela sua implantação e ao próprio usuário final. 4. Não havendo danos a serem reparados, materiais ou morais, a liquidação do contrato resolvido deve se restringir à recomposição da situação jurídica de cada um dos contratantes anteriormente à celebração da avença. 5 . Hipótese em que as instâncias ordinárias afastaram a aplicabilidade das normas consumeristas, a impedir o reconhecimento da solidariedade por vício do produto ou do serviço nos moldes do CDC. 6. Na enumeração das partes de um contrato de licenciamento de software no qual também estejam contemplados os serviços de implantação, manutenção, suporte etc., dadas as diversas peculiaridades que o cercam, devem ser abarcados, além do usuário final, todos aqueles que assumem, ainda que indiretamente, a responsabilidade pelo adequado funcionamento do sistema . 7. Dever de devolução das parcelas recebidas do usuário final que deve recair tanto sobre a proprietária dos direitos de uso do software quanto sobre a empresa autorizada a sublicenciá-lo e a operar nas demais etapas necessárias à sua operacionalização, na extensão do que cada uma recebeu. 8. A constatação de culpa concorrente poderia, se dano houvesse, servir para fins de redução do valor da respectiva indenização, nos termos do art . 945 do CC, mas não para afastar o dever de restituição integral das parcelas pagas pelo usuário final, que, ao fim e ao cabo, não pôde usufruir das facilidades que o software de gestão empresarial poderia lhe proporcionar. 9. Recurso especial parcialmente provido. (STJ - REsp: 1728044 RS 2017/0030981-2, relator.: ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, Data de Julgamento: 10/4/2018, T3 - 3ª turma, Data de Publicação: DJe 13/4/2018)
Em síntese, diante da complexidade técnica e jurídica que envolve a contratação e a implantação de sistemas ERP a responsabilidade solidária entre o fornecedor do software e o canal de implantação, quando caracterizada pela atuação coordenada e pela expectativa legítima de atuação conjunta, deve ser reconhecida como mecanismo de proteção ao contratante e de equilíbrio nas relações contratuais.
A fragmentação artificial de responsabilidades, embora formalmente prevista, não pode prevalecer sobre a realidade dos fatos e sobre os princípios que regem as relações negociais contemporâneas, especialmente quando envolvem serviços de alta complexidade, grande investimento e essencialidade operacional para a empresa usuária.
Não se pode ignorar, ainda, que os projetos de ERP costumam envolver valores expressivos e cronogramas longos, além de demandarem intensa cooperação técnica entre as partes. A empresa contratante, na maioria das vezes, não possui domínio técnico para avaliar isoladamente a origem de uma falha, se decorrente do código-fonte do software, da parametrização feita pelo canal de implantação ou da ausência de suporte adequado.
Exigir que o contratante individualize a responsabilidade de cada fornecedor, sob pena de não ver reconhecido seu direito à reparação, impõe-lhe um ônus probatório desproporcional, ferindo o princípio da equidade, da ampla defesa e do contraditório. Por isso, a responsabilização solidária funciona, nesse contexto, como instrumento de justiça efetiva e de restabelecimento do equilíbrio contratual, assegurando que o contratante não seja duplamente penalizado (primeiro pelo insucesso do projeto e depois pela impossibilidade de obter a reparação integral dos danos sofridos).