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Arbítrio de toga: Julgamento conjunto sem conexão

A toga não pode ser escudo para o arbítrio. A reunião de processos , para julgamento conjunto , deve ser exceção, não regra.

15/9/2025

A prática de reunir processos para julgamento conjunto, mesmo sem conexão formal ou imprópria e possibilidade de decisões contraditórias, tem se tornado recorrente nos tribunais brasileiros.

Isso representa ameaça à legalidade processual. A eficiência não pode ser proteção para flexibilizações que fragilizam garantias constitucionais.

A toga não pode ser escudo para o arbítrio. A reunião de processos deve ser exceção, não regra

Quando a pressa institucional silencia o contraditório, o que se perde não é tempo, é democracia.

Pior: Um contraditório esvaziado, onde os argumentos das partes são engolidos por uma decisão genérica, muitas vezes já pré-formatada, no “copia e cola”.

O juiz não é dono do processo, tampouco da prova. Ele é seu garantidor. O processo pertence às partes.

O magistrado tem que atuar com imparcialidade, não como um condutor autoritário.  

Infelizmente, o arbítrio judicial se manifesta na prática do “decido primeiro, fundamento”. “Decido porque quero.”

É um grito de autoritarismo!

Isso acontece hoje às nossas vistas, não é causídico e OAB?

O processo, em sua essência, é um espaço de resistência à arbitrariedade estatal. No século 13, os ingleses diziam que o vento entrava em casa à noite.  O rei, não.

É o devido processo legal!   

A pressa não pode ser critério de justiça, sob a falsa promessa de eficiência. O Juiz não é protagonista do processo.

A toga, símbolo da imparcialidade e da autoridade judicial, não pode servir de manto para vontades pessoais, subjetividades e solipsismo (sujeito que se basta a si próprio).

Quando um magistrado decide com base em sua consciência, ignorando os limites da legalidade e da fundamentação exigida pela Constituição, o que se vê não é justiça, é arbítrio.

O arbítrio de toga é uma ameaça silenciosa à democracia, à cidadania e à própria ideia de Justiça.

Julgamento conjunto do agravo interno com a ação rescisória sem fundamentação

Vejam como o tema não é um ponto fora da curva. Ocorre no dia a dia forense. Por isso, comento aqui uma decisão, recente, na ação rescisória, da seção de Direito Privado, do TJ/RJ.

Trata-se de uma crítica epistemológica que, aliás, deve sempre ser feita pela doutrina, academia e advogados. A propósito, cabe à doutrina encontrar respostas adequadas à Constituição.

Ocorreu o seguinte: Foi anexado aos autos , um relatório. pelo desembargador relator, acompanhado de solicitação para inclusão em pauta de julgamento, também denominado "Peço Dia".   

Contudo, não consta do referido relatório qualquer fundamentação à possibilidade de julgamento conjunto do agravo interno interposto nos autos, que versa sobre direito à prova indeferida pelo relator. 

A propósito, o processo não pode ser um exercício de adivinhação ou futurologia.

Não pode existir surpresa. Tudo tem que ter fundamentação, expressamente, no relatório ou na decisão que optará pelo julgamento conjunto do agravo interno e da ação rescisória.

Entre o ego e a Constituição o juiz deve ficar com a Constituição.

Aliás, Narciso acha feio o que não é espelho, já dizia Caetano Veloso na música Sampa.

Ora, ora, a justiça não é espelho. O juiz não pode julgar a si próprio, pois estaria apenas reafirmando suas próprias convicções.  

A ausência de manifestação do relator sobre os fundamentos do agravo interno configura omissão relevante.

A ausência de fundamentação quanto à eventual reunião dos feitos para julgamento conjunto vai, por óbvio, comprometer o exercício pleno do contraditório e do direito à ampla defesa.

O relator deve, sim, se manifestar expressamente sobre os pontos suscitados no agravo interno, ainda que não se retrate, sob pena de violação ao contraditório.

Por quê? Porque o causídico não tem como saber os motivos da não retratação, ferindo o direito à ampla defesa e fundamentação das decisões judiciais e, com isso, trazendo grande prejuízo concreto à agravante.

Isso decorre diretamente do art. 1.021, §2º do CPC, que estabelece:

“O agravo será dirigido ao relator, que intimará o agravado para manifestar-se sobre o recurso no prazo de 15 (quinze) dias, ao final do qual, não havendo retratação, o relator levá-lo-á a julgamento pelo órgão colegiado, com inclusão em pauta.”

O que significa na prática?

O relator não pode simplesmente pedir dia sem apresentar sua decisão no agravo interno.

Ele deve fundamentar sua posição, seja para manter a decisão monocrática ou para propor nova solução.

De outro modo: A simples remessa ao colegiado sem qualquer manifestação fere o princípio da fundamentação das decisões judiciais.

Além disso, o relator não pode apenas reiterar os fundamentos da decisão agravada sem nova análise, pois isso compromete o contraditório e a dialeticidade do recurso.

“Art. 1.021, §3º, CPC/15: “É vedado ao relator limitar-se à reprodução dos fundamentos da decisão agravada para julgar improcedente o agravo interno”.

Ocorre que, nesse caso, o relator ficou “mudo”. Houve omissão relevante. Esse silêncio institucional não é neutro.

Tem lado. Ele é opaco. Autoritário. Não dialoga. Impõe arbitrariamente.

O desembargador relator transforma o processo em um monólogo institucional, onde o cidadão é apenas um espectador do decisionismo e narcisismo da toga.

Tal conduta, atropela o CPC, que impõe ao relator o dever de examinar os fundamentos do agravo interno, sendo vedado limitar-se à reprodução da decisão agravada ou à simples remessa ao colegiado sem motivação.

Violação ao devido processo legal pela pauta conjunta

Quando o relator determina o julgamento conjunto do agravo interno com a ação rescisória, sem fundamentar o motivo, e o agravo versa sobre a oitiva de testemunha, isso pode ser interpretado como um indeferimento tácito da produção de prova testemunhal.

Presumindo que, para o relator, a instrução foi encerrada, o que viola o devido processo legal.

Do risco de prejuízo à ampla defesa

A agravante sustenta que a oitiva da testemunha é essencial para demonstrar a existência de vício que comprometeu o julgado rescindendo, sendo imprescindível para o pleno exercício do contraditório e da ampla defesa.

O agravo interno, de acordo com o art. 1.021 do NCPC, versa sobre questão preliminar de natureza processual, enquanto a ação rescisória está ligada a análise de mérito, conforme os requisitos do art. 966 do CPC.

É de uma obviedade óbvia de que reunião dos feitos para julgamento conjunto, neste momento, vai comprometer o direito à prova e à ampla defesa.

A apreciação simultânea do agravo e do mérito da ação rescisória poderia limitar ou inviabilizar a instrução adequada do feito principal, especialmente quanto à produção da prova requerida.

O que diz o art. 55, §3º, do CPC

Nos termos do art. 55, §3º, do CPC, o julgamento conjunto de processos distintos exige demonstração de risco concreto de decisões conflitantes ou contraditórias, o que não se verifica no presente caso.

Vale dizer: O art. 55, §3º do CPC/15 autoriza o julgamento conjunto mesmo sem conexão, mas exige justificativa clara:

“Serão reunidos para julgamento conjunto os processos que possam gerar risco de prolação de decisões conflitantes ou contraditórias caso decididos separadamente, mesmo sem conexão entre eles.”

Tem que verificar, sim, risco concreto de decisões conflitantes ou contraditórias, nos termos do art. 55, §3º, do CPC, que, aliás, são as hipóteses taxativas do artigo.

Não vale inventar. O juiz não é legislador. Ele interpreta o Direito respeitando os direitos fundamentais.

Portanto, o relator, sim, deve indicar: que o julgamento conjunto visa evitar risco de decisões conflitantes ou contradições; que a reunião dos feitos não compromete o contraditório ou o direito à ampla defesa.

Será pedir muito, excelentíssimo relator?

É bem simples observar que não há nenhuma conexão formal ou conexão imprópria entre o agravo Interno e a ação rescisória. Não, mesmo!

Não existe conexão entre as ações, pois a causa de pedir e o pedido de cada uma são divergentes.

Logo, não cabe o julgamento conjunto!

Julgar os dois conjuntamente é atropelar o art. 55 § 3º, do NCPC e às garantias constitucionais, comprometendo a lógica processual e gera nulidade.

A reunião dos feitos, portanto, não se justifica à luz do dispositivo legal. Há, sim, risco real de prejuízo à defesa!

O julgamento separado é a via mais segura e constitucionalmente adequada, pois tem o DNA da Constituição, já que o julgamento conjunto comprometeria o exercício pleno da ampla defesa, pois o agravo interno discute justamente a admissibilidade de prova essencial à instrução da ação rescisória.

Do esvaziamento do agravo interno e prejuízo à sustentação oral

Uma coisa: o julgamento conjunto da ação rescisória com o agravo interno, não é economia processual - é esvaziamento recursal.

Mais grave: é o prejuízo à defesa técnica. O causídico se vê compelido a realizar duas sustentações orais distintas, em 15 minutos, com objetos jurídicos diversos, em um mesmo momento processual. É uma maldade jurídica.

Com o devido respeito, não é economia processual, é, simesvaziamento recursal.

A pauta conjunta, sem fundamentação específica, é um exemplo claro de como a lógica gerencial tem invadido o espaço da jurisdição.

Não há conexão entre os feitos. Não há justificativa. Não há respeito à individualidade dos processos. Há, sim, uma tentativa de sacrificar garantias em nome da conveniência.

E isso é inaceitável!

A defesa técnica não é um detalhe. É um direito. E quando se tenta atropelá-la com pautas confusas, decisões genéricas e restrições à prova, o que se está fazendo é fragilizar o direito à ampla defesa em nome de uma conveniência administrativa.

Não há eficiência legítima onde há violação de garantias. Não há justiça onde há pressa sem fundamento. Não há processo justo onde há confusão deliberada

A Constituição não se curva à conveniência

Não se pode transformar o processo em um balcão de conveniências administrativas. O respeito à lógica jurídica dos pedidos não é um capricho técnico , é uma exigência constitucional.

A decisão judicial que ignora essa lógica, que mistura feitos sem conexão material, que atropela a ordem procedimental e que impõe à parte uma defesa fragmentada e confusa, não promove justiça ,promove insegurança jurídica.

Eficiência não é sinônimo de pressa. Eficiência não é desculpa para desrespeitar garantias constitucionais. Eficiência sem forma é arbítrio. Eficiência sem escuta é silêncio imposto.

Em tempos de culto à produtividade, metas e estatísticas, é preciso reafirmar o óbvio: o processo é uma técnica que garante os direitos fundamentais.

Não é um obstáculo. E quando o Judiciário ignora essa premissa, o que se instala não é eficiência, é corrosão democrática.

A Constituição não se curva à conveniência. Exige que o processo seja justo, transparente, coerente, lógico e respeitoso.

Conclusão

A toga não é escudo para o arbítrio - e tampouco deve ser instrumento de conveniência institucional.

Tem se tornado prática recorrente, sob o manto da celeridade e da economia processual, o julgamento conjunto de ações absolutamente desconexas, sem qualquer risco real de decisões contraditórias.

O que era para ser exceção tornou-se rotina, violando direitos constitucionais como o contraditório e a ampla defesa.

Essa distorção não é mero desvio técnico: é sintoma de um sistema que, em nome da eficiência, flerta perigosamente com o autoritarismo judicial.

Quando a pressa se sobrepõe à justiça, o processo deixa de ser instrumento de proteção para se tornar mecanismo de poder.

E isso tem nome - é o arbítrio de toga.

Renato Otávio da Gama Ferraz
Renato Ferraz é advogado, formado pela Universidade Federal Fluminense (UFF), professor da Escola de Administração Judiciária do TJ-RJ, autor do livro Assédio Moral no Serviço Público e outras obras

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