A Constituição Federal de 1988, em seu art. 225, caput e §3º, estabelece o dever do Estado e da coletividade de proteger o meio ambiente, impondo ao legislador a criação de normas penais ambientais específicas. Além disso, reforça tal dever com o advento da lei 9.605/1998 - lei dos crimes e infrações administrativas ambientais, que prevê:
Art. 3º As pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativa, civil e penalmente conforme o disposto nesta lei, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade.
Parágrafo único. A responsabilidade das pessoas jurídicas não exclui a das pessoas físicas, autoras, co-autoras ou partícipes do mesmo fato.
Embora represente um marco relevante na proteção ecológica, pois “a proteção do ser humano é a proteção da Natureza, e vice-versa”1, a lei de crimes ambientais apresenta lacunas e déficit legislativo, o que abre espaço para a expansão do Direito Penal. No entanto, a utilização do Direito Penal para garantir a proteção do meio ambiente é alvo de críticas, sobretudo quanto à responsabilização da pessoa jurídica e ao movimento de “criminalizações de colarinho branco na seara ecológica”, diante da alegação de que já não bastaria o administrativo sancionador.
Em outras palavras, tais categorias colocam em xeque fundamentos do Direito Penal e do Processo Penal. Muitas vezes, as empresas acabam respondendo por outputs lesivos, de modo que um diretor, sócio ou membro responsável pelas tomadas de decisão acaba respondendo penalmente, ainda que apenas por não ter sido cuidadoso na organização interna e no controle de riscos. Esse déficit normativo favorece, por vezes, denúncias genéricas, frequentemente desprovidas da necessária individualização da conduta, o que compromete garantias constitucionais fundamentais, como o contraditório e a ampla defesa2.
Soma-se a isso a criação dos chamados crimes de perigo abstrato, em especial no Direito Penal Ambiental, o que gera problemáticas imputações, sem a demonstração concreta de dano e sem a devida observância das balizas dogmáticas essenciais3. Ao mesmo tempo, estudos recentes destacam a importância do Direito Penal como instrumento para a proteção climática (o chamado “Direito Penal Climático”), bem como o reconhecimento do clima ou sistema climático como bem jurídico-penal autônomo4.
Nesse cenário, ganha relevo a conformidade criminal preventiva5, que prevê medidas e controles para a evitação de riscos jurídico-penais.
O termo compliance significa prevenção6,“diferente do direito penal ou administrativo sancionador, que trabalham na análise ex post de ilícitos, apenas na análise de condutas comissivas ou omissivas que já violaram de forma direta ou indireta algum bem jurídico digno de tutela do Estado”. Assim, a conformidade criminal preventiva e/ou “compliance trata o mesmo fenômeno a partir de uma análise ex ante, ou seja, de uma análise dos controles internos e das medidas que podem prevenir a persecução penal da empresa”7. Em outras palavras, busca-se identificar e prevenir riscos jurídico-penais antes que eles se concretizem.
É cada vez mais difícil delimitar as linhas divisórias entre os espaços de riscos penalmente relevantes e os irrelevantes - riscos/perigos juridicamente permitidos e do risco/perigo juridicamente proibido. Por isso, o primeiro requisito de qualquer programa efetivo é a correta identificação da atividade e do âmbito em que os riscos podem ser prevenidos.
Embora aplicável a diversos setores, no agronegócio o compliance assume papel particularmente relevante. Isso porque o setor, central para a economia brasileira, enfrenta o desafio de manter altos níveis de produtividade e, ao mesmo tempo, adequar-se a exigências ambientais cada vez mais rigorosas, tanto no plano nacional quanto no comércio internacional.
Logo, a implementação de programas de conformidade criminal preventiva permite às empresas agrícolas e aos produtores rurais reduzir riscos jurídico-penais, prevenir sanções e fortalecer a governança no agro, protegendo patrimônio e reputação e contribuindo, ao mesmo tempo, para a preservação ambiental.
Assim, a governança no agronegócio ocupa papel central na gestão do setor, considerando elementos como diferenças regionais e a integração de riscos climáticos, ambientais, socioeconômicos e tecnológicos. Em muitos casos, é necessário estruturar ou reforçar a governança desde as propriedades rurais, devido a exigências externas relacionadas à obtenção de crédito, comercialização e conformidade legal. No caso das agroempresas, cuja fiscalização é mais rigorosa, exigem maior robustez para lidar com o complexo cipoal normativo.
É inegável a relevância da tradição familiar na gestão de muitas propriedades de produtores rurais. Por vezes, podem existir protocolos internos, mas é essencial que eles sejam aperfeiçoados com o devido refinamento jurídico, para garantir conformidade com a legislação vigente. Protocolos bem definidos de gestão de riscos podem não apenas mitigar sanções, mas também assegurar maior segurança sucessória, preservando o legado construído, às vezes ao longo de gerações.
Assim, diante da atual crise ecológica, torna-se imperioso que as empresas agrícolas e os produtores rurais revisem suas práticas sustentáveis (ecológica, social, econômica). Além da adoção da conformidade criminal preventiva, é fundamental a implementação e/ou reforço do due diligence rural - checagem de parceiros, avaliação de fornecedores e revisão de práticas de gestão -, o que permite identificar vulnerabilidades antes de operações societárias ou transações comerciais, evitando desgastes futuros e fortalecendo a reputação da empresa ou do produtor rural.
Para empresas mais complexas, com maiores delegações de funções e cadeias produtivas extensas, a conformidade criminal preventiva exige estruturas mais robustas.
Em suma, a governança no agronegócio, voltada a uma maior segurança nas cadeias produtivas, deve partir de uma leitura atenta do mercado e, sobretudo, das pautas socioambientais, afinal “o mau uso do meio ambiente tem importado em custos econômicos e sociais imensos”8. Nesse sentido, faz-se necessário que o “sistema de penalidades ambientais seja justo e eficaz, assegurando a proteção ambiental”9, sem, contudo, prejudicar direitos legítimos das agroempresas e dos produtores rurais. Igualmente, “faz-se necessário que uma economia agrícola se alinhe à proteção ambiental”10, ainda mais diante de um princípio da sustentabilidade ambiental no direito tributário11.
Somos seres de um determinado tempo, e é mais prudente prevenir-se por meio de estruturas sólidas, códigos de conduta internos, sistemas de políticas, controles e procedimentos bem definidos, assim como pelo fortalecimento do due diligence e pela busca por tendências de certificações que alinhem produção e preservação. Essas medidas permitem prevenir sanções e garantir a continuidade e longevidade do negócio rural.
Dessa forma, o setor do agronegócio não apenas cumpre normas legais, mas estrutura sua gestão de riscos de forma proativa, protegendo patrimônio e reputação. Ao mesmo tempo, assegura o desenvolvimento sustentável (ecológico, social e econômico), a credibilidade e a confiança perante o mercado.
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1 SARLET, Ingo Wolfgang.; FENSTERSEIFER, Tiago. Curso de Direito Ambiental. 5 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2025. p. 124.
2 Persistem fortes críticas à responsabilização das pessoas jurídicas e, especialmente, os ocupantes de altos cargos de direção, aqueles que, em geral, figuram no contrato social da empresa, sem descrever os fatos na denúncia, “devendo a denúncia descrever, de forma pormenorizada, o seu preenchimento no caso concreto. Caso não seja demonstrada a conduta, descrito quem a realizou ou determinou a sua realização (devendo-se tratar de representante legal), assim como que esta foi praticada em benefício ou interesse da empresa, a denúncia deverá ser considerada inepta, por não permitir o exercício do contraditório e ampla defesa”. Ver: COSTA, Helena Regina Lobo da. Responsabilidade penal da pessoa jurídica e seu eterno atrito com institutos penais. CONJUR, [s. l.], 30 jul. 2025. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2025-jul-30/responsabilidade-penal-da-pessoa-juridica-e-seu-eterno-atrito-com-os-institutos-penais/. Acesso em: 2 ago. 2025.
3 Sobre a questão ver: D’AVILA, Fabio Roberto. O ilícito penal nos crimes ambientais. Algumas reflexões sobre a ofensa a bens jurídicos e os crimes de perigo abstrato no âmbito do direito penal ambiental. Revista do Ministério Público do RS, Porto Alegre, n. 75, edição especial, p. 11-33, 2015. Disponível em: https://www.amprs.org.br/revista/revista-do-ministerio-publico-edicao-75. Acesso em: 2025.
4 Ver: PERTILLE, Marcelo Bauer. Tutela penal do clima: da importância da teoria do bem jurídico à autonomia do equilíbrio climático diante do bem ambiental. Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v. 13, n. 1. p. 109-128, 2023.
5 MONTANER FERNÁNDEZ, Raquel. El criminal compliance preventivo y la delimitación del riesgo penal ambiental empresarial. La ley penal, [s. l.], n 142, enero-febrero 2020.
6 Ver:https://www.migalhas.com.br/depeso/436431/o-compliance-na-prevencao-de-riscos-no-setor-agroempresarial.
7 SAAVEDRA, Giovani Agostini. Compliance na área da saúde. In: Direito penal e política criminal. D’AVILA, Fabio Roberto.; SANTOS, Daniel Leonhardt dos (org.). Porto Alegre: Edipurs, 2016. p. 227-228.
8 BURANELLO, Renato. Manual do direito do agronegócio. 4 ed. Rio de Janeiro: Saraiva Jur, 2025. p. 477.
9 BURANELLO, Renato. Manual do direito do agronegócio. 4 ed. Rio de Janeiro: Saraiva Jur, 2025. p. 481.
10 BURANELLO, Renato. Manual do direito do agronegócio. 4 ed. Rio de Janeiro: Saraiva Jur, 2025. p. 481.
11 PAULSEN, Leandro. Curso de Direito Tributário completo. 16 ed. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. p. 33.