1. Introdução
O debate acerca da licitude das holdings familiares tem ganhado cada vez mais espaço nos tribunais e na doutrina brasileira, sobretudo diante da insistência de alguns setores em alegar que tais estruturas carecem de “propósito negocial”. Segundo essa crítica, a constituição de uma holding familiar teria como único objetivo a economia tributária, o que descaracterizaria a validade do instituto. Essa visão, no entanto, revela-se reducionista e pouco alinhada à realidade, pois ignora a multiplicidade de finalidades legítimas que justificam a adoção da holding, especialmente no contexto familiar.
A discussão sobre o propósito negocial não pode ser analisada de forma abstrata ou dissociada da realidade prática das famílias brasileiras. Tampouco pode servir de fundamento para a desconsideração de estruturas lícitas e transparentes que, dentro da legalidade, cumprem funções de preservação, organização e eficiência patrimonial. O presente artigo busca delimitar o alcance jurídico do conceito de propósito negocial, demonstrando seus fundamentos legais e jurisprudenciais, e evidenciando que a holding familiar, inclusive no modelo mais sofisticado de três células, possui propósitos inequívocos que garantem sua legitimidade.
2. O conceito de propósito negocial no Direito Tributário brasileiro
O ponto de partida desse debate encontra-se no art. 116, parágrafo único, do CTN, incluído pela LC 104 de 2001. O dispositivo prevê que “a autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária”.
Da leitura do texto legal extrai-se que o alvo da norma é a dissimulação e não a elisão lícita. Mais do que isso, a eficácia do comando depende de lei ordinária que estabeleça os procedimentos aplicáveis, o que até o presente momento não ocorreu. O STJ tem reiteradamente afirmado, em julgados como o REsp 1.149.022/RS, que a aplicação do art. 116, parágrafo único, depende de regulamentação, não podendo a Fazenda invocar isoladamente a ausência de propósito negocial para desconsiderar atos válidos.
Do mesmo modo, o STF, ao julgar a ADI 2446, reconheceu que a elisão fiscal é exercício legítimo da autonomia privada, desde que não haja fraude, simulação ou abuso de direito. A exigência genérica de propósito negocial, como condição de validade dos negócios jurídicos, não encontra amparo no ordenamento. O que a Constituição e a lei vedam é a dissimulação, não a busca por eficiência e racionalidade na gestão do patrimônio.
Cumpre acrescentar que a lei ordinária mencionada pelo art. 116, parágrafo único, deve ser federal e não estadual. A razão é simples: trata-se de norma de caráter geral em matéria tributária, cuja competência legislativa é privativa da União, nos termos do art. 146, III, da Constituição Federal. Permitir que cada Estado editasse sua própria lei para regulamentar a aplicação do dispositivo acarretaria grave violação ao princípio da uniformidade normativa e geraria insegurança jurídica, pois o mesmo instituto poderia ser tratado de forma distinta em cada unidade federativa. Sendo o CTN lei complementar federal, somente uma lei ordinária federal, de alcance nacional, pode estabelecer os procedimentos para aplicação da cláusula geral antielisiva. Essa interpretação preserva a coerência do sistema tributário e assegura que o contribuinte não esteja sujeito a critérios diversos e conflitantes em cada Estado da Federação.
3. Propósito negocial e a licitude da holding familiar
A holding familiar é um instrumento multifuncional, cuja utilidade não se esgota na esfera tributária. Ela é concebida para viabilizar a sucessão organizada, a proteção patrimonial e o comando centralizado dos negócios da família. Cada uma dessas finalidades traduz propósitos negociais claros e legítimos, que não podem ser confundidos com manobras simuladas.
Além dessas finalidades amplamente reconhecidas, deve-se enfatizar que a redução de riscos também constitui propósito negocial legítimo. É justamente no âmbito familiar que riscos como litígios entre herdeiros, dilapidação do patrimônio por má gestão e exposição do acervo em inventário público podem comprometer a preservação do legado. Antecipar-se a esses riscos e adotar mecanismos para mitigá-los não representa economia fiscal, mas sim estratégia concreta de governança e estabilidade patrimonial. O instituto da holding traduz, portanto, o dever de prudência na administração do patrimônio familiar.
A doutrina tributária, ao tratar do tema da elisão, reconhece que o contribuinte não apenas pode, como deve, organizar-se de modo racional e eficiente. Roque Carrazza, por exemplo, sustenta que não se pode exigir do contribuinte comportamentos antieconômicos, quando a lei lhe confere alternativas válidas. Dentro dessa lógica, a holding familiar, ao reduzir riscos, evitar litígios e preservar a integridade do patrimônio, atende plenamente ao conceito de propósito negocial.
4. O modelo de três células e a presença inequívoca de propósito negocial
Entre as diversas arquiteturas possíveis, o modelo de três células, composto pela célula cofre, pela célula veículo e pela célula destino, é o que mais claramente evidencia a existência de propósitos múltiplos. Cada uma das células cumpre uma função própria: a célula cofre concentra e institucionaliza o patrimônio da família, a célula veículo viabiliza a integralização de recursos excedentes de forma juridicamente segura e a célula destino promove a sucessão planejada, assegurando que os bens cheguem às novas gerações de maneira organizada e eficiente.
A fragmentação estrutural em três núcleos distintos não constitui artifício ou dissimulação, mas uma técnica de organização patrimonial que reflete propósitos concretos de segurança, eficiência e proteção. A multiplicidade de funções demonstra que o modelo não apenas atende ao objetivo lícito de economia tributária, mas também responde a preocupações de governança, continuidade e proteção contra riscos.
5. Combate às interpretações abusivas do fisco
Apesar da clareza da legislação e da jurisprudência consolidada, ainda é comum observar tentativas de algumas Fazendas Estaduais e municipais de questionar holdings familiares sob o argumento de ausência de propósito negocial. Em geral, tais interpretações partem de uma leitura excessivamente subjetiva e acabam por impor ao contribuinte obrigações que a lei não exige.
É preciso lembrar que a autonomia privada é princípio estruturante da ordem econômica. O contribuinte tem liberdade para escolher a forma mais racional e eficiente de organizar seu patrimônio, desde que não haja fraude ou simulação. A busca por eficiência e segurança patrimonial não pode ser convertida em indício de ilicitude. O STF já deixou claro que a linha divisória é objetiva: enquanto na evasão há fraude, dolo ou dissimulação, na elisão e no planejamento patrimonial há apenas exercício legítimo de direitos.
Assim, a crítica de ausência de propósito negocial, quando aplicada de forma genérica, revela-se abusiva e contrária ao princípio da legalidade tributária. O fisco não pode impor ao contribuinte escolhas irracionais apenas para maximizar a arrecadação.
6. Conclusão
A holding familiar consolidou-se como um dos mais relevantes instrumentos de planejamento patrimonial e sucessório no Brasil contemporâneo. Sua adoção não pode ser deslegitimada por críticas vazias acerca da ausência de propósito negocial, pois suas finalidades são concretas e multifacetadas. Além da sucessão organizada, da proteção patrimonial e do comando centralizado dos negócios, a holding também cumpre a função essencial de reduzir riscos de litígios, de dilapidação e de exposição patrimonial.
O modelo de três células, por sua vez, exemplifica a sofisticação e a legitimidade do instituto. Não há dissimulação, mas racionalidade jurídica e econômica. Defender a existência de propósito negocial nas holdings familiares é proteger a autonomia privada e a liberdade de organização patrimonial asseguradas pela Constituição. O contribuinte que age com prudência e inteligência na administração de seu patrimônio não pode ser punido por exercer sua liberdade de organização dentro da legalidade.
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Referências
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.
BRASIL. Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966. Dispõe sobre o Sistema Tributário Nacional e institui normas gerais de direito tributário aplicáveis à União, Estados e Municípios (Código Tributário Nacional). Diário Oficial da União: Brasília, DF, 27 out. 1966.
BRASIL. Lei Complementar nº 104, de 10 de janeiro de 2001. Altera dispositivos da Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966 – Código Tributário Nacional. Diário Oficial da União: Brasília, DF, 11 jan. 2001.
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (Brasil). Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2446/DF. Relator: Min. Ilmar Galvão. Julgado em 09/11/2005. Diário da Justiça: Brasília, DF, 03 fev. 2006.
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Brasil). Recurso Especial nº 1.149.022/RS. Relator: Min. Mauro Campbell Marques. Julgado em 28/04/2010. Diário da Justiça Eletrônico: Brasília, DF, 12 maio 2010.
CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 29. ed. São Paulo: Malheiros, 2013.