I. Introdução
Contextualização do Tema
A crescente digitalização das relações humanas transformou não apenas a forma como vivemos e nos comunicamos, mas também a maneira como construímos e administramos nosso patrimônio. Em uma era onde ativos financeiros, registros pessoais e memórias afetivas são armazenados em nuvens, servidores e dispositivos eletrônicos, o Direito Sucessório se depara com um desafio monumental: o que acontece com nosso legado digital após a morte? A ausência de uma legislação específica no Brasil sobre a "herança digital" tem gerado um cenário de profunda insegurança jurídica para herdeiros e operadores do Direito.
Nesse vácuo legislativo, o STJ, provocado a se manifestar sobre um caso de contornos trágicos e complexos, assumiu o protagonismo. No julgamento do REsp 2.124.424/SP, a 3ª turma não apenas enfrentou o ineditismo da questão, mas estabeleceu um verdadeiro marco regulatório inaugural, criando uma figura processual até então inexistente: o inventariante digital.
II. Conceito e classificação da herança digital
Definição Jurídica
A herança digital pode ser conceituada como a universalidade de bens e direitos de natureza digital deixados por uma pessoa após o seu falecimento. Trata-se de um acervo imaterial, composto por arquivos, dados e informações armazenados em formato eletrônico. A doutrina jurídica, buscando sistematizar o tema, consolidou uma distinção fundamental entre os bens digitais de natureza patrimonial e aqueles de cunho existencial.
Bens digitais patrimoniais
Referem-se a todos os ativos digitais que possuem valor econômico aferível e, em regra, são transmissíveis aos herdeiros. Integram essa categoria:
- Criptomoedas e ativos digitais: Como Bitcoin (BTC), Ethereum (ETH), tokens não fungíveis (NFTs) e outros criptoativos.
- Contratos digitais e licenças: Licenças de software, direitos de uso de plataformas e outros contratos eletrônicos que prevejam a transmissibilidade.
- Obras protegidas por direito autoral: Livros digitais (e-books), músicas, fotografias e softwares de autoria do falecido.
- Perfis monetizados: Canais em plataformas como YouTube ou perfis em redes sociais que geram receita e possuem valor de mercado.
- Arquivos com valor econômico: Projetos, planilhas financeiras, bancos de dados e outras informações digitais com impacto patrimonial direto.
Bens digitais existenciais
Esta categoria abrange o conjunto de dados e informações ligados intrinsecamente à personalidade, à intimidade e à vida privada do falecido. São bens que, a princípio, não possuem valoração econômica direta e cuja transmissão é controversa, pois colide com direitos fundamentais. Incluem-se aqui:
- Comunicações privadas: E-mails pessoais, mensagens em aplicativos como WhatsApp e Telegram.
- Fotografias e vídeos pessoais: Arquivos que registram momentos íntimos e privados.
- Diários e registros pessoais: Anotações, memórias e pensamentos registrados em formato eletrônico.
- Dados sensíveis: Informações que, se reveladas, poderiam violar a intimidade não apenas do falecido, mas também de terceiros com quem ele se comunicava.
III. O leading case: REsp 2.124.424/SP
O julgamento deste recurso especial representa um divisor de águas no Direito Sucessório brasileiro, estabelecendo as primeiras diretrizes para o tratamento processual da herança digital.
Fundamentação do voto da ministra Nancy Andrighi (Relatora)
Em seu voto condutor, a ministra Nancy Andrighi destacou o ineditismo da matéria, reconhecendo a ausência de precedentes e de uma doutrina consolidada sobre o tema. A relatora ponderou que o acesso irrestrito e direto dos herdeiros a dispositivos eletrônicos sem a respectiva senha judicialmente autorizada representaria um risco iminente de exposição de informações íntimas, protegidas pelos direitos da personalidade (como a privacidade e a intimidade), que não se extinguem com a morte.
Para a ministra, a solução não poderia ser um simples "sim" ou "não", mas sim a criação de um procedimento que equilibrasse os interesses em jogo: o direito sucessório dos herdeiros e a proteção post mortem da personalidade do falecido e de terceiros.
A criação do "inventariante digital"
Diante desse dilema, a ministra propôs a criação de uma figura processual inovadora: o inventariante digital. Trata-se de um profissional especializado em tecnologia, com dever de sigilo, nomeado pelo juiz para atuar como um perito auxiliar da justiça. Suas principais características são:
- Função de perito: Sua atuação é técnica, equiparando-se à de um perito judicial (art. 156 do CPC), com o objetivo de acessar, identificar e listar o conteúdo dos dispositivos.
- Dever de sigilo e responsabilidade: O inventariante digital responde civil e criminalmente por qualquer violação ao sigilo das informações acessadas, garantindo a confidencialidade do processo.
- Atribuições específicas: Sua função é estritamente identificar e separar o que é patrimonial do que é existencial, sem emitir juízo de valor sobre a transmissibilidade.
Procedimento proposto pela relatora
O voto da ministra Nancy Andrighi delineou um rito processual específico para lidar com a questão:
- Incidente processual: A apuração dos bens digitais deve ocorrer em um incidente processual apartado dos autos principais do inventário, garantindo maior controle e sigilo.
- Nomeação e listagem: O juiz nomeia o inventariante digital, que acessará os dispositivos e produzirá um relatório minucioso, listando todo o conteúdo encontrado.
- Classificação judicial: De posse do relatório, o magistrado, em decisão indelegável, analisará cada item e decidirá o que se classifica como patrimonial (e, portanto, transmissível aos herdeiros) e o que é existencial (devendo ser mantido em sigilo ou descartado).
- Administração temporária: Os bens digitais patrimoniais identificados serão, então, entregues ao inventariante tradicional do espólio para administração até a conclusão da partilha.
IV. O voto divergente do ministro Ricardo Villas Bôas Cueva
O ministro Ricardo Villas Bôas Cueva inaugurou a divergência, apresentando uma visão mais tradicional e direta sobre a sucessão, fundamentada em princípios clássicos do Direito Civil.
Fundamentos da divergência
Para o ministro, a solução deveria seguir a lógica do princípio da saisine, consagrado no art. 1.784 do CC, segundo o qual a herança se transmite imediatamente aos herdeiros no momento da morte. Sob essa ótica:
- Não há distinção de bens: O princípio da sucessão universal não faria distinção entre bens digitais e analógicos. Todo o acervo, material ou imaterial, se transmite integralmente.
- Transmissão imediata: Os herdeiros adquirem a propriedade e a posse de todo o patrimônio digital no instante do falecimento.
- Responsabilidade dos herdeiros: Caberia aos próprios herdeiros, e não a um terceiro perito, a responsabilidade de zelar pela memória e proteger a intimidade do falecido, decidindo o que deve ser preservado ou descartado.
O voto divergente criticou a criação do inventariante digital por considerar que a figura:
- Carece de base legal: Não haveria previsão no ordenamento jurídico que justificasse a criação de um tratamento diferenciado para bens digitais.
- Gera injustiça: Impor essa diferenciação criaria uma barreira injustificada entre a sucessão de bens digitais e a de bens físicos, quebrando a universalidade da herança.
- Analogia com cartas físicas: O ministro traçou uma analogia com a abertura de cartas, diários e cofres físicos após a morte, atos que são historicamente realizados pelos herdeiros sem a necessidade de um intermediário nomeado pelo juiz.
Por fim, o voto divergente concluiu pela desnecessidade da medida, defendendo o acesso direto das inventariantes ao conteúdo dos iPads. No entanto, a tese prevalecente foi a da relatora, fixando o procedimento do inventariante digital.
V. Precedentes e evolução jurisprudencial
Embora o REsp 2.124.424/SP seja um leading case, ele não surgiu no vácuo. Decisões anteriores já sinalizavam a crescente preocupação do Judiciário com o tema. Tribunais estaduais já haviam se pronunciado sobre o acesso a perfis em redes sociais para conversão em memoriais ou exclusão, bem como sobre a partilha de ativos como milhas aéreas e criptomoedas.
Um marco teórico fundamental é o enunciado 687 da IX Jornada de Direito Civil do CJF - Conselho da Justiça Federal, que estabelece: "O patrimônio digital, naquilo que for suscetível de valoração econômica, pode integrar o espólio, admitindo-se a sua disposição por testamento ou codicilo." Este enunciado já reconhecia a natureza patrimonial de certos bens digitais e sua inclusão na sucessão, fornecendo base doutrinária para a decisão do STJ.
VI. Aspectos processuais e práticos
A decisão do STJ tem implicações diretas na prática forense, exigindo uma nova postura de advogados e juízes.
O incidente processual de identificação
O procedimento proposto pela ministra Nancy Andrighi encontra fundamento nos artigos do CPC que tratam da prova pericial (art. 464 e seguintes) e dos deveres dos auxiliares da justiça (art. 156). A nomeação do inventariante digital se dará ad hoc, ou seja, especificamente para aquele ato, exigindo do profissional um conhecimento técnico especializado em tecnologia da informação e segurança de dados.
Distinção do inventariante tradicional
É crucial não confundir as figuras:
- Inventariante do espólio (tradicional): É o representante legal do espólio, responsável por administrar todos os bens (digitais ou não) até a partilha.
- Inventariante digital (perito): É um auxiliar eventual da Justiça, nomeado para uma função específica e técnica: identificar e classificar o conteúdo digital para subsidiar a decisão do juiz.
Critérios de classificação dos bens
A decisão final sobre a transmissibilidade de cada ativo digital é um ato jurisdicional indelegável. O juiz, com base no relatório do perito e nos princípios da razoabilidade, deverá ponderar entre o valor patrimonial do bem e sua conexão com os direitos da personalidade, sempre visando à máxima proteção da intimidade do falecido e de terceiros.
VII. Lacunas legislativas e projetos em tramitação
A decisão do STJ, embora fundamental, é uma solução jurisprudencial para uma lacuna legislativa. Leis existentes, como o Marco Civil da Internet (lei 12.965/14) e o CC, não foram concebidas para regular a sucessão digital, gerando insegurança.
VIII. Impactos práticos e desafios futuros
O precedente do STJ inaugura uma nova realidade para o sistema de justiça e para a sociedade.
- Para a advocacia especializada: Surge uma nova e promissora área de atuação no planejamento sucessório, exigindo dos advogados capacitação em tecnologia e segurança da informação. O testamento digital e a consultoria preventiva ganham enorme relevância.
- Para o poder Judiciário: A decisão unifica o entendimento e confere maior previsibilidade. Contudo, impõe aos juízos a necessidade de desenvolver expertise técnica para nomear peritos adequados e julgar com base em relatórios complexos.
- Desafios tecnológicos: Persistem desafios práticos, como o acesso a carteiras de criptomoedas cujas chaves privadas foram perdidas, a garantia da segurança dos dados durante a perícia e a rápida evolução tecnológica, que constantemente cria novos tipos de ativos digitais.
IX. Direito comparado e experiências internacionais
O Brasil não está sozinho neste debate. Nos Estados Unidos, a maioria dos estados já adotou o RUFADAA - Revised Uniform Fiduciary Access to Digital Assets Act, uma lei modelo que regula o acesso de fiduciários (executores, inventariantes) a ativos digitais. Na União Europeia, o GDPR - Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados influencia a discussão, embora não trate diretamente da sucessão.
As próprias plataformas digitais (Big Techs) possuem políticas próprias: o Google oferece o "Gerenciador de Contas Inativas", o Facebook permite a transformação de perfis em "memoriais", e a Apple tem um sistema de "Contato Herdeiro". Essas políticas, contudo, são contratuais e nem sempre se alinham às leis sucessórias de cada país.
X. Conclusão
O julgamento do REsp 2.124.424/SP pelo STJ é mais do que a solução de um caso concreto; é a fundação de um novo pilar no Direito Sucessório brasileiro. Ao criar a figura do inventariante digital e o procedimento para sua atuação, a Corte estabeleceu um precedente de importância histórica, que busca o difícil, mas necessário, equilíbrio entre o direito patrimonial dos herdeiros e a proteção post mortem dos direitos da personalidade.
Este é, sem dúvida, um marco inicial na construção de uma jurisprudência sólida sobre a herança digital. Contudo, a solução definitiva e segura para todos os cidadãos virá apenas com a regulamentação legislativa específica. Enquanto a lei não chega, a decisão do STJ serve como um farol, orientando a evolução do planejamento sucessório e garantindo que, mesmo na era digital, a justiça e a dignidade prevaleçam na transição do legado de uma geração para outra.