Introdução
Ao nos aproximarmos de mais um Dia das Crianças, as vitrines se enchem de cores e os apelos comerciais nos convidam a celebrar a data com presentes. Contudo, como jurista e estudiosa das estruturas que edificam uma nação, sinto-me compelida a propor uma reflexão mais profunda, que transcenda o brilho fugaz dos brinquedos. A verdadeira celebração da infância reside não no que damos às crianças, mas em quem as ajudamos a se tornar. O maior presente que podemos oferecer é a garantia de um desenvolvimento pleno - físico, mental e emocional - que forjará seres humanos mais fortes, éticos e capazes de construir uma sociedade mais justa.
Este não é um anseio meramente poético; é uma diretriz jurídica, um mandamento constitucional. A proteção da criança e do adolescente não é uma opção, mas um dever inarredável que a ordem jurídica brasileira impõe com absoluta prioridade à família, ao Estado e a toda a sociedade.
O alicerce inegociável: A família como berço da ética e da autonomia
A arquitetura de uma nação justa começa no seio familiar. É nesse espaço primário de convivência que a criança absorve os primeiros e mais duradouros ensinamentos sobre o mundo. Antes mesmo que o Estado-juiz ou o Estado- legislador alcancem o indivíduo, a família já o formata, imprimindo em sua alma os códigos de conduta, os valores e os princípios que o guiarão pela vida. O art. 227 da nossa CF/88 e o ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente não são meras cartas de intenção; são normas cogentes que delegam à família o dever de assegurar, com absoluta prioridade, os direitos fundamentais da criança.
Essa missão, contudo, vai muito além do provimento material. A atuação familiar ativa e afetuosa é o solo fértil onde germinam a integridade, a autonomia e a ética. Laços de confiança e diálogo são fundamentais para que a criança desenvolva um senso de segurança emocional, indispensável para a exploração do mundo e para a construção de sua identidade. É na rotina do lar, nos exemplos cotidianos, nas conversas francas e no estabelecimento de limites com amor que se ensina sobre respeito, empatia e responsabilidade.
Uma criança que cresce em um ambiente onde a verdade é um valor, onde os erros são oportunidades de aprendizado e não de humilhação, e onde o respeito ao próximo é praticado, internaliza esses preceitos de forma orgânica. Ela não apenas aprende sobre ética; ela torna-se ética. A autonomia, tão essencial para a vida adulta, não nasce do abandono, mas do suporte cuidadoso que permite à criança fazer escolhas, arcar com pequenas consequências e, assim, fortalecer seu caráter e sua capacidade de discernimento. Negligenciar essa formação é criar um vácuo que, futuramente, nenhuma política pública ou sanção penal conseguirá preencher com a mesma eficácia.
A responsabilidade compartilhada: O papel do Estado e da sociedade na proteção integral
Se a família é o alicerce, o Estado e a sociedade são as vigas mestras que sustentam e protegem essa construção. A prioridade absoluta, insculpida no art. 4º do ECA, é um princípio que deve nortear cada ato do Poder Público e cada interação social. Ao Estado, não basta legislar; é preciso implementar políticas públicas eficazes que garantam o acesso universal e de qualidade à saúde, à educação, ao lazer e à cultura. É seu dever proteger as crianças da violência, do abuso, da exploração e de qualquer forma de negligência, seja ela intrafamiliar ou institucional.
Dados recentes nos mostram uma realidade alarmante que desafia nosso compromisso legal e moral. Relatórios como o "Cenário da Infância e Adolescência no Brasil" da Fundação Abrinq revelam que milhões de crianças ainda vivem em situação de pobreza, com acesso precário a condições básicas de desenvolvimento. O aumento dos índices de trabalho infantil, apontado pelo IBGE, é uma chaga social que nos envergonha e nos convoca à ação. Cada criança fora da escola, cada jovem cooptado pela criminalidade, representa uma falha coletiva.
A sociedade, por sua vez, é a guardiã difusa desses direitos. A omissão é uma forma de cumplicidade. Proteger uma criança não é uma tarefa exclusiva de seus pais ou do conselho tutelar; é um dever de todos. É o vizinho que denuncia uma situação de maus-tratos, é o empresário que não admite mão de obra infantil em sua cadeia produtiva, é o cidadão que exige do poder público a criação de espaços seguros de convivência e aprendizado. É a compreensão de que cada criança, independentemente de sua origem, cor ou classe social, é um membro valioso de nossa comunidade e seu futuro é, em última análise, o nosso futuro.
Considerações finais
Neste Dia das Crianças, que nossa reflexão nos mova à ação. Que os presentes materiais venham acompanhados do presente mais valioso: nossa presença atenta, nosso compromisso ativo e nossa incansável defesa de seus direitos. A construção de seres humanos melhores e mais fortes não é fruto do acaso; é o resultado de um projeto deliberado de amor, cuidado e responsabilidade.
Investir na infância é a estratégia mais inteligente e sensível para edificar uma sociedade menos violenta, mais empática e verdadeiramente justa. Que a celebração da infância se converta em um pacto nacional permanente pela proteção integral de cada criança e adolescente em nosso país. Afinal, ao garantirmos a dignidade de suas jornadas, estamos, em verdade, lapidando a alma da própria nação.
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BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.
BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 16 jul. 1990.
FUNDAÇÃO ABRINQ. Cenário da Infância e Adolescência no Brasil 2025. São Paulo: Fundação Abrinq, 2025.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE).
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua) - Trabalho de Crianças e Adolescentes. Rio de Janeiro: IBGE, 2025.
TIBA, Içami. Quem ama, educa!. São Paulo: Integrare Editora, 2002.