1. O processo de formação e a qualificação do contrato
O objetivo do presente trabalho é identificar os principais problemas envolvendo os contratos de locação em Shopping Center, sua natureza jurídica e a legislação aplicável à espécie e o quanto a autonomia da vontade se revela presente nesse tipo de avença.
Penso que a primeira tarefa é qualificar o contrato locativo em Shopping Center, mesmo porque é preciso identificar a legislação de regência, seus elementos essenciais etc.
Feito isso, a próxima tarefa a ser feita é analisar o processo de formação desses contratos, a fim de identificar a margem de liberdade negocial entre os contratantes; ou se há algum vício de consentimento, avaliando se o pacto existiu (manifestação de vontade livre e consciente), e se é válido e eficaz, em outras palavras, se está apto a produzir seus jurídicos efeitos (JUNQUEIRA, 2002).
Há, na doutrina, severas discussões a respeito da natureza jurídica do contrato objeto deste estudo. Entretanto, uma das qualificações incontestes - e que se encontra na maioria das decisões judiciais - é a de que se trata de contrato atípico.
É consabido, em nosso meio, que a lei de locações (lei 8.245/91) rege os contratos de locação residencial, comercial e as locações de temporada, o que lhes confere natureza típica, em outras palavras, fazendo com que seus contornos (conteúdo e dimensão) sejam bem delimitados pela citada lei.
Mas, não é o caso dos ajustes locatícios em Shopping Center que, a despeito de a lei de locações fazer menção a ele, num único dispositivo (art. 54), a jurisprudência é firme no sentido de que este contrato é atípico (apelação cível 1012668-96.2018.8.26.0020, 3ª Câmara de Direito Privado. relatora Maria do Carmo Honorio, DJe. 25/5/21).
Mas o que significa dizer que um contrato é atípico?
Dizer que um contrato é atípico é dizer que tem caracteres diversos dos contratos comerciais usuais e que o interesse das partes será regido pelos princípios gerais do direito, observando-se a teoria geral do direito e dos contratos; seus princípios norteadores, a exemplo da boa-fé objetiva e da função social do contrato. Contudo, isso não quer dizer que as partes não possam se basear na Lei do Inquilinato para elaboração de seus instrumentos contratuais.
Entretanto, não é ilícito às partes estipular contratos atípicos (art. 425/CC).
Se o contrato é atípico, os direitos e obrigações entabulados entre as partes não seguirá uma lei específica, como acontece nos contratos de compra e venda, de seguro ou de empreitada, cujos conteúdos e dimensões estão bem delineados em legislação específica (CC).
Sendo assim, o presente trabalho analisou e comparou três julgados; seus pedidos e a causa de pedir, os documentos juntados e as decisões prolatadas nos autos, sendo esses processos objeto da presente pesquisa, os quais estão referenciados ao final do texto.
A complexidade desse contrato não passa despercebida pelos tribunais. É comum encontrar, nas decisões judiciais, observações de magistrados, desembargadores e ministros acerca dessa característica.
Sua complexidade se dá, principalmente pelas cláusulas extravagantes insertas nesses ajustes, sendo possível citar, dentre essas disposições contratuais: res sperata, aluguel mínimo, aluguel percentual, aluguel dobrado em dezembro, fiscalização de contabilidade, imutabilidade do ramo de negócio e a cláusula de raio (REsp: 1.535.727/RS).
Feito isso, é necessário identificar se o contrato é de consumo ou se é empresarial, sendo este último marcado pela ampla liberdade negocial, pela paridade e simetria, o que impede o reconhecimento da abusividade de alguma cláusula, cujo regime jurídico está estampado no CDC; já os contratos empresariais seguem o regramento do CC.
Com isso, perde força - nos contratos empresariais - a alegação de abusividade de cláusula, como fez a parte que requereu a rescisão de um contrato contra o Shopping Cantareira, na apelação 1012668-96.2018.8.26.0020 - SP.
O presente trabalho demonstra que o contrato de locação em Shopping Center é empresarial, e não de consumo. Isso restringe a análise da alegação de abusividade de suas cláusulas, dado a livre negociação entre as partes.
2. Autonomia da vontade
Há uma discussão pujante, tanto na doutrina quanto na jurisprudência, em torno que vem a ser autonomia da vontade e autonomia privada.
No entanto, no caso dos contratos ora analisados, a própria lei de locações confere ampla liberdade negocial às partes para pactuar as condições do negócio, prestigiando a autonomia da vontade, conforme se observa a seguir.
Art. 54, caput da lei 8.245/91;
“Nas relações entre lojistas e empreendedores de shopping center, prevalecerão as condições livremente pactuadas nos contratos de locação respectivos e as disposições procedimentais previstas nesta lei”.
No mesmo sentido, vem o art. 421-A do CC, inserido pela lei de liberdade econômica com os seguintes preceitos: os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos; autorizando que as partes estabeleçam parâmetros objetivos para interpretação de seu conteúdo; estabelece que a alocação de riscos por elas definida deverá ser respeitada e, por último diz que a revisão contratual é excepcional e limitada.
Fica claro pelo dispositivo legal supracitado que as partes - nos contratos civis e empresariais - podem distribuir os riscos (alocação de riscos), pactuando cláusulas de limitação de responsabilidade, em outras palavras, cláusulas de não indenizar; hipoteticamente.
O contrato de locação em shopping center é empresarial. Quando celebrado entre empresas, em situação de equilíbrio contratual, aplicam-se as disposições do CC, e não do CDC. Nesses casos, vigoram os princípios da intervenção mínima e da excepcionalidade da revisão contratual, motivo pelo qual o controle judicial sobre cláusulas abusivas é restrito, em observância à autonomia privada das partes.
Segundo Judith Martins-Costa (2009) “o dever de informar não se confunde com o dever de se informar”. Se o empresário não buscar orientação de um advogado especializado, antes de concluir o contrato com o Shopping, pode amargar prejuízos consideráveis. Por sua vez, o Shopping está aparelhado com uma banca de advogados, enquanto o empresário, na maioria das vezes, está sozinho - sem orientação.
Ademais, a autonomia da vontade consiste na opção pela contratação, ou não. Mesmo porque, o legislador, ao dispor sobre contratos, positivou os princípios da liberdade contratual e da intervenção mínima, deixando, nesse caso, tanto locador quanto locatário, livres para pactuarem as cláusulas contratuais que melhor assistam suas necessidades (art. 421 e par. único/CC), não sendo possível obrigar alguém a contratar ou se manter associado.
3. A cláusula de raio
Essa é uma cláusula muito polêmica e que está presente na maioria dos contratos de locação em Shopping Center e é objeto de discussão no segundo processo analisado (apelação cível 9128982-64.2009.8.26.0000, relator Edgard Rosa, 30ª Câmara de Direito Privado, DJe. 23/9/11).
A cláusula de raio, também conhecida como cláusula de exclusividade territorial constitui uma restrição contratual, estabelecendo limites ao exercício do comércio.
Apesar dessa restrição, o ministro relator Edgard Rosa entendeu que tal avença não ofende os princípios constitucionais da ordem econômica (liberdade de iniciativa e livre concorrência), e reconheceu a validade e eficácia da cláusula de raio, acompanhando o entendimento da doutrina e jurisprudência dos tribunais.
Isso é assim porque, o locatário (lojista), nos contratos dessa natureza, assume uma obrigação negativa, ou seja, uma obrigação de não fazer diante do Shopping (locador), em outras palavras, não pode instalar outra loja no mesmo ramo de atividade, num raio de 2.500 metros; exemplificadamente.
Também conhecida como cláusula de não-concorrência, esse ajuste tem por finalidade a proteção da clientela do centro comercial, de um lado, no interesse dos lojistas, que vão explorar o fundo de comércio; de outro, visam proteger o próprio centro comercial (Shopping), que irá formar o seu “tenant mix”, visando atrair seu público-alvo.
A única exigência que se tem feito a cláusulas de interdição de concorrência, tanto pela doutrina quanto pela jurisprudência estrangeiras, é a definição de limites precisos de objeto, de tempo e de espaço, em observância ao princípio da livre concorrência, contemplado no art. 170 da Constituição da República (COMPARATO, 1995).
Nesse contexto, o lojista ajuizou uma ação pretendendo a nulidade da cláusula de raio, uma vez que ele instalou, em outro Shopping (Eldorado), loja no mesmo ramo de atividade, com distância de apenas 1.000 metros, violando a cláusula contida no contrato com o Shopping Iguatemi.
O TJ/SP reconheceu a validade da cláusula de raio e o lojista perdeu a ação. Em suma, a decisão judicial fundou-se nas seguintes teses: a cláusula não é ilegal e; na força obrigatória dos contratos.
4. Conclusão
Como dito no início, o presente trabalho analisou três julgados; o primeiro tem fundamento na rescisão de um contrato de locação de espaço comercial no Shopping Cantareira; o segundo envolve o pedido de nulidade de cláusula de raio de contrato de locação no Shopping Iguatemi.
E, por último, o terceiro caso, que aliás, muito interessante - pois relatado pelo eminente ministro Marco Buzzi, do STJ, discute a validade da cláusula de raio, cujo processo de origem é do Rio Grande do Sul, em ação ajuizada pelo SINDLOJAS - Sindicato de Lojistas do Comércio de Porto Alegre em face de uma multiplicidade de réus (Shopping Centers); controladores do Shopping Iguatemi, localizado em Porto Alegre.
O Sindicato perdeu a ação sob os seguintes fundamentos: primeiro, “(...) a cláusula de raio, inserta em contratos dessa natureza não é abusiva, pois o shopping center constituiu uma estrutura comercial híbrida e peculiar e as diversas cláusulas extravagantes insertas nos ajustes locatícios servem para justificar e garantir o fim econômico do empreendimento; segundo, o controle judicial sobre eventuais cláusulas abusivas em contratos de cunho empresarial é restrito, face a concretude do princípio da autonomia privada e, ainda, em decorrência de prevalência da livre iniciativa, do pacta sunt servanda, da função social da empresa e da livre concorrência de mercado”.
Assim, nos três processos analisados, o shopping tinha razão, tendo a parte contrária perdido a ação, mesmo em razão da livre pactuação entre as partes e da força obrigatória dos contratos, uma vez que as cláusulas pactuadas entre as partes, em todos os casos, foram consideradas vigentes, válidas e eficazes a produção de seus efeitos jurídicos.
Em tese, a jurisprudência dos tribunais, reconhecem a atipicidade dos contratos celebrados entre shopping centers e lojistas, não como uma mera locação, mas, por sua complexidade e peculiaridades - como uma verdadeira parceria de negócios entre empreendedor e lojistas, caracterizado pela ampla liberdade de negociação na celebração de contratos do gênero; entendimento bem acertado, mormente se lançarmos olhar para o art. 54 da lei de locações e para o entendimento sedimentado dos tribunais.
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(TJ-SP - AC: 10032928620188260020 SP 1003292-86 .2018.8.26.0020, Relator.: Maria do Carmo Honorio, Data de Julgamento: 25/05/2021, 3ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 25/05/2021)
(TJ-SP - APL: 9128982642009826 SP 9128982-64.2009 .8.26.0000, Relator.: Edgard Rosa, Data de Julgamento: 21/09/2011, 30ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 23/09/2011)
(STJ - REsp: 1535727 RS 2015/0130632-3, Relator.: Ministro MARCO BUZZI, Data de Julgamento: 10/05/2016, T4 - QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 20/06/2016)