Cometo aqui no Migalhas uma situação “Kafkiana” de que tive notícia. Aliás, venho recebendo muitas notícias ruins. É que o Direito não toma juízo.
Por vezes, o Direito parece se esquecer de sua missão civilizatória. Em nome da suposta moralidade administrativa, renuncia-se a garantias fundamentais.
A propósito, se Kafka estivesse vivo, pediria royalties...
Vejam o imbróglio, o qual trago à baila pelo simbolismo acadêmico. A questão de fundo é a violação de garantias constitucionais: legalidade, presunção de inocência e devido processo legal.
Entenda o caso
Uma Universidade - prestigiada, diga-se - resolveu reinventar o processo disciplinar. Com uma portaria breve - de três linhas- e, sem motivação, instaurou um PAD - Processo Administrativo Disciplinar em desfavor de um servidor, baseado em denúncia anônima genérica, sem fatos, datas ou documentos de apoio.
Pior: Sem amparo prévio em investigação ou sindicância, atropelando a súmula 611 do STJ - como quem manda um servidor para o pelourinho administrativo.
A denúncia? Anônima. A prova? Nenhuma. A motivação? Fé institucional.
O servidor vira investigado de um processo kafkiano, onde o acusador não tem rosto, a prova não tem corpo, e a legalidade não tem voz.
Tudo em nome de um suposto “interesse público” que, de tão elástico, serve até para cobrir arbitrariedades.
Dever de motivação
Não há motivação na portaria de instauração do PAD. Não há descrição dos fatos. Não há sequer o cuidado de informar o servidor do que ele deve se defender.
É como se a Administração tivesse trocado o devido processo legal por uma carta anônima.
Se a denúncia é anônima e não há indícios mínimos, o que se tem é uma loteria disciplinar.
O servidor vira investigado por presunção, e a dignidade humana, essa senhora constitucional que acaba de fazer 37 anos, que é fundamento da República, é deixada na portaria da Universidade. Não há vagas.
Pois é. À ampla defesa e o contraditório viram adereços retóricos, úteis apenas para decorar discursos em seminários de ética pública.
Autotutela da Administração não autoriza o arbítrio
Desde já, é importante deixar absolutamente claro: não se está contestando o poder-dever de autotutela imposto à Administração Pública.
O ponto: O que se impugna, com fundamento jurídico e constitucional, é a instauração PAD sem justa causa - sem elementos mínimos de autoria e materialidade, sem sindicância investigativa, e com base em denúncia anônima genérica, desprovida de qualquer suporte probatório.
A autotutela não autoriza o arbítrio. O poder de apurar infrações exige fundamentação concreta, motivação legítima e respeito ao devido processo legal.
A denúncia anônima não é prova: O oráculo da Administração
A denúncia anônima, essa carta sem remetente, virou o novo oráculo da moralidade pública.
Basta alguém digitar meia dúzia de palavras num formulário eletrônico - “fulano é isso”, “beltrano fez aquilo” - e pronto: a máquina administrativa fica encantada com as palavras mágicas. Entra em ação como se tivesse recebido uma revelação divina.
Para que provas, indícios ou mesmo lógica?! A denúncia anônima virou a nova Bíblia da Administração que esquece da Constituição!
Ora, a denúncia anônima não é prova. A denúncia anônima pode, no máximo, justificar uma apuração preliminar.
E mais: instaurar um PAD sem qualquer elemento de materialidade é como abrir um inquérito com base em boato.
Tempos estranhos... Em que o anonimato vale mais que a legalidade constitucional, e o rumor tem mais força que o fato.
A sindicância: Essa desconhecida
A sindicância, que deveria ser a primeira etapa de qualquer apuração séria, envolvendo denúncia anônima virou peça de museu. Em vez de investigar, preferem instaurar o PAD de imediato.
Afinal, por que perder tempo com fatos quando se tem convicções? Já vimos esse filme...
A lógica é simples: se a “denúncia anônima é grave”, instaura-se o PAD. Se é leve, também. Se é absurda, melhor ainda - assim mostra-se que a Administração é imparcial até com os delírios.
Pode isso?
O importante é mostrar serviço - mesmo que o serviço seja um linchamento administrativo do servidor com carimbo oficial.
A súmula 611, do STF: Quando o contexto faz toda diferença
A súmula 611 do STJ dispõe que:
“Desde que devidamente motivada e com amparo em investigação ou sindicância, é permitida a instauração de processo administrativo disciplinar com base em denúncia anônima, em face do poder-dever de autotutela imposto à Administração.”
Ou seja, a instauração só é válida se for feita após investigação ou sindicância, e desde que devidamente motivada. Simples assim!
No caso que gerou a súmula, houve representação criminal, notícia de infração disciplinar, sindicância e, posteriormente, o PAD.
No caso em debate:
- A denúncia é anônima e genérica;
- Não há representação criminal;
- Não houve sindicância ou investigação preliminar.
Aplicar a súmula fora de seu contexto original seria distorcer sua finalidade e legitimar o arbítrio.
A portaria de três linhas: É o vale-tudo
A portaria que instaura o PAD, é uma obra-prima do minimalismo. Três linhas. É como se o servidor fosse chamado a se defender de um horóscopo: genérico, vago e inevitavelmente desfavorável.
E o que faz o investigado? Faz o quê?
Vai se defender de quê? Essa pergunta é a essência do garantismo. Sem fato, não há defesa. Sem defesa, não há processo. Sem processo, há arbítrio! Vai se defender de um conceito? De um sentimento? De um rumor?
É como ser intimado por telepatia: “Você sabe o que fez”.
O decisionismo administrativo: Quando a convicção vence o Direito
O decisionismo administrativo é a “arte dos burocratas” de decidir antes de saber. É o triunfo da convicção sobre a prova, da pressa sobre o processo, da autoridade sobre o direito.
É o momento em que a Administração deixa de ser pública e passa a ser oracular - ela não precisa provar, porque já sabe.
E quando o servidor é absolvido, o estrago já está feito...
- A reputação foi arranhada;
- A saúde mental comprometida;
- A confiança no sistema, enterrada.
Mas tudo bem: a Administração lava as mãos, arquiva o processo e segue o baile. Afinal, errar é humano - desde que o erro não recaia sobre a comissão e quem instaurou a portaria do PAD.
PAD sem justa causa: O despacho inquisitorial
Na era do garantismo de PowerPoint e da legalidade de conveniência, o servidor é chamado a se defender de conceitos abstratos, sem saber o que fez, quando fez ou se fez.
É o garantismo às avessas: primeiro instaura o PAD, sem nenhum lastro probatório mínimo, já que não foi feito uma sindicância, depois se pergunta.
A alegação de que o PAD garante ampla defesa não legitima sua instauração sem justa causa - trata-se de um sofisma que ignora o sofrimento, o constrangimento e o risco funcional imposto ao servidor:
- Angústia emocional intensa, com impacto direto em sua saúde psíquica e bem-estar;
- Exposição indevida perante colegas e superiores, comprometendo sua imagem profissional e reputação funcional;
- Temor demissão injusta.
A Administração Pública colocou os carros na frente dos bois
Na linguagem do povo: a Administração Pública colocou os carros na frente dos bois - ou seja, instaurou o PAD sem saber se há estrada, sem saber se há carga, e sem saber se há boi.
Ela não apurou os fatos antes, não fez sindicância, nem investigação preliminar. Não reuniu provas mínimas. Simplesmente abriu o processo e pensou: “Vamos ver no que dá.”
É o triste: “atira primeiro, pergunta depois”.
E isso é grave. Porque o PAD não é uma brincadeira - ele pode levar à demissão, constrangimento público, sofrimento psicológico e destruição da reputação de um servidor.
Esquizofrenia institucional: O Direito ensina, mas não pratica
O que se vê é uma esquizofrenia institucional: ensina-se garantismo nas salas de aula da prestigiada Universidade, mas pratica-se decisionismo nos corredores administrativos.
É a ruptura entre o discurso e a prática. Entre o que se proclama nos congressos acadêmicos e o que se despacha com três linhas e nenhum fato.
A Universidade desaprende o Direito enquanto finge defendê-lo. E nesse teatro institucional, o servidor vira personagem de um drama jurídico onde a legalidade é citada, mas não aplicada.
A portaria e o colapso hermenêutico
O servidor é chamado a se defender sem saber o contexto, a autoria, a materialidade. É como se o contraditório fosse um favor, e não um direito.
Aqui, a crítica de Ronald Dworkin é pertinente: o Direito não pode ser um jogo de palavras. A decisão administrativa de instauração do PAD precisa ser justificada por princípios, não por conveniências.
A ausência de motivação na portaria é mais do que um erro formal - é uma violação estrutural da legalidade.
Legalidade constitucional acima de tudo
A conveniência administrativa jamais pode se sobrepor à legalidade constitucional. O interesse público verdadeiro é aquele que respeita os direitos fundamentais. Até porque o inferno está cheio de boas intenções.
E mais: Instaurar um PAD sem elementos mínimos - sem descrição clara dos fatos, sem sindicância investigativa, sem diligência preliminar - é submeter o servidor a um processo vazio, onde ele é chamado a se defender do nada.
Isso não é apuração: é violência institucional travestida de formalidade.
É uma conduta ilegal, imoral e incompatível com os princípios do garantismo administrativo!
Não se pode transformar o PAD em uma pescaria probatória.
O processo - seja penal ou administrativo - não é um espaço para apostas investigativas. Ele exige justa causa, ou seja, elementos mínimos de autoria e materialidade que justifiquem sua instauração.
A Administração Pública errou. Deveria antes de instaurar PAD, promover sindicância investigativa, com o objetivo de reunir elementos mínimos de autoria e materialidade. Somente com esse lastro probatório é que se justifica a abertura de processo disciplinar.
A moral da história?
A Administração Pública não precisa ser vidente, mas também não pode ser cega. E quando começa a enxergar fantasmas onde deveria ver fatos, o que se instala não é justiça, é o decisionismo travestido de zelo institucional.
E isso, convenhamos, é mais perigoso do que qualquer denúncia anônima!
Conclusão: Quando o PAD já vira punição
Se Kafka fosse brasileiro e estivesse vivo, teria desistido da literatura e pedido exoneração. Porque aqui, às vezes, o absurdo jurídico não é ficção - é rotina com protocolo e carimbo.
A instauração de PAD com base em denúncia anônima, sem prévia sindicância, ou seja, justa causa e portaria genérica representa uma ruptura com o modelo constitucional de processo.
É o decisionismo travestido de eficiência. O processo disciplinar não pode ser instrumento de constrangimento, nem de improviso institucional.
A denúncia anônima não é prova. A sindicância não é opcional. A motivação não é formalidade.
O PAD exige responsabilidade, legalidade e respeito à dignidade humana.
Quando usado sem justa causa, ele deixa de ser processo e passa a ser uma punição antecipada - pela grande angústia e constrangimento de que é exposto o servidor.
E quando a punição vem antes da prova, o que se tem não é justiça - é arbítrio administrativo!
Cabe aos operadores do Direito, servidores públicos e à sociedade civil vigiar e exigir que o interesse público seja interpretado à luz dos direitos fundamentais.
A Constituição não é um detalhe: é o Norte da civilização!