1. O arquétipo e os problemas
No clássico desenho animado Corrida Maluca, de Hanna-Barbera, o personagem Peter Perfeito era conhecido não só por sua aparência impecável, seu carro reluzente e tecnológico, mas, sobretudo, pela convicção inabalável de que jamais errava. Mesmo quando tudo saía do controle, Peter mantinha seu sorriso ensaiado, o queixo empinado e atribuía a culpa de seus infortúnios a terceiros ou a fatores externos, preservando intacta sua aura de perfeição.
Décadas depois, é curioso perceber como esse arquétipo parece ter ganhado asas, literalmente.
No setor aéreo, as companhias parecem ter incorporado o espírito de Peter Perfeito. Nas contestações que oferecem em processos judiciais, apresentam-se como verdadeiros paradigmas de eficiência, pontualidade e excelência em atendimento ao consumidor. E, quando algum passageiro ousa contrariar essa narrativa, surge o mesmo discurso: a empresa cumpriu integralmente suas obrigações, houve caso fortuito, o problema ocorrido é mero aborrecimento da vida moderna e o consumidor está em busca de enriquecimento sem causa.
Entretanto, a realidade dos autos dos processos, em sua absoluta maioria, mostra uma face bem menos polida e bonita.
Os tribunais brasileiros acumulam decisões que reconhecem falhas graves na prestação do serviço de transporte aéreo: cancelamentos de voos sem a prestação de assistência adequada ao passageiro, atrasos prolongados, muitas vezes mantendo-se os passageiros no interior das aeronaves expostos a calor intenso, cancelamento automático da viagem de retorno pelo não comparecimento do passageiro para o embarque no trecho de ida (no-show),1 cobrança por marcação de assentos,2 negativas de reacomodação e reembolso, overbooking,3 extravios e danos a bagagens, além da resistência quase automática em indenizar o consumidor lesado.
2. A falácia da perfeição e o dever de reparar
O art. 14 do CDC é claro: o fornecedor responde objetivamente pelos danos causados ao consumidor por defeitos na prestação do serviço, independentemente de culpa. Ou seja, não cabe às empresas aéreas alegar que o sistema é complexo demais ou que fatores externos justificam o descumprimento de obrigações básicas, como a de prestar assistência pronta e adequada aos passageiros, pois questões climáticas,4 manutenções não programadas, excesso de peso na aeronave, colisões com aves, entre outros fatores, caracterizam caso fortuito interno,5 isto é, ocorrências diretamente relacionadas à atividade desenvolvida pelas companhias aéreas.
O STJ já consolidou entendimento nesse sentido, reconhecendo que o fortuito interno - aquele inerente à própria atividade - não afasta a responsabilidade do transportador aéreo (REsp 1.280.372/SP). Em outras palavras, a complexidade do negócio não é desculpa para a ineficiência e o mau atendimento ao consumidor.
3. A retórica da pontualidade e a realidade dos autos
Enquanto o marketing corporativo insiste em slogans que remetem às alegrias de viajar, a prática cotidiana mostra consumidores enfrentando filas intermináveis nos aeroportos, submetidos a um farto repertório de grosserias por parte dos atendentes das companhias aéreas, dormindo no chão dos saguões, sem informação adequada, alimentação ou hospedagem.
A resolução 400/16 da ANAC determina que, em casos de atraso, cancelamento ou interrupção de voo, a empresa deve prestar assistência material (comunicação, alimentação, hospedagem e transporte, conforme o caso). Ainda assim, essas obrigações são frequentemente descumpridas e, quando cobradas judicialmente, transformam-se em longas batalhas processuais, em que as companhias aéreas, não raro, limitam-se a apresentar defesas genéricas, dissociadas dos fatos alegados pelo consumidor, muitas vezes acompanhadas apenas dos atos constitutivos da companhia aérea e procuração. Ou seja, não são apresentadas quaisquer provas que corroborem as teses defensivas.
Há, portanto, um descompasso entre o discurso da excelência e a execução do serviço.
Frequentemente, as companhias aéreas dedicam extensos trechos de suas defesas para exaltar a qualidade de seus serviços, citando prêmios de pontualidade, eficiência e índices de satisfação, buscando, dessa forma, descaracterizar as falhas na prestação do serviço e os danos causados aos consumidores.
Contudo, a ocorrência de falhas pontuais na prestação do serviço não é mitigada por eventuais reconhecimentos de qualidade em outras situações. A responsabilidade civil da companhia aérea decorre de falhas específicas na prestação do serviço de transporte. Avaliações genéricas de sua atuação e posição no mercado não as exime da responsabilidade pelos danos concretamente causados aos consumidores. O direito do consumidor visa proteger o indivíduo em sua relação específica com o fornecedor, e não a reputação da empresa em abstrato.
4. Peter Perfeito no banco dos réus
Para concluir, o paralelo com Peter Perfeito não é apenas literário; é simbólico. Assim como o personagem da Corrida Maluca, que jamais admitia uma falha, as companhias aéreas cultivam uma espécie de complexo de infalibilidade institucional. Nos autos dos processos, negam o óbvio; nos fatos, reproduzem falhas sistêmicas que se tornaram rotina.
Contudo, no Estado Democrático de Direito, a responsabilidade civil não se funda em aparências, mas na apuração de condutas. Admitir a falha, corrigir o erro e indenizar o prejuízo não enfraquece a empresa; fortalece sua credibilidade.
O problema é que, enquanto o setor aéreo insistir em tratar o passageiro como adversário e não como cliente, continuará preso à armadilha do próprio discurso. A negação sistemática das falhas não apaga a realidade; apenas a torna mais visível.
O mito da perfeição é sedutor, mas insustentável.
A verdadeira excelência não está em jamais falhar; está em reconhecer os erros (em casos piores, violações), reparar e evoluir.
Enquanto isso não acontecer, a corrida das companhias aéreas pela credibilidade continuará sendo, ironicamente, uma autêntica “corrida maluca”.
Porém, assim como Peter Perfeito, as companhias aéreas preferem seguir polindo a fuselagem de sua reputação corporativa e posando para fotos publicitárias, enquanto, nos pátios e saguões dos aeroportos, acumulam-se bagagens extraviadas, cancelamentos, atrasos, comprometimento do lazer, trabalho, tratamentos de saúde, viagens em família, luas de mel, e sonhos destruídos.
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1 Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:
(...)
XI - autorizem o fornecedor a cancelar o contrato unilateralmente, sem que igual direito seja conferido ao consumidor.
2 “Ora, se a marcação do assento é realmente um serviço opcional e não está incluído no valor dos serviços de transporte aéreo previsto no citado art. 4º, inciso I, é de se indagar da Requerida, porque sua cobrança depende do valor da tarifa adquirida? Ou estar-se-ia diante de uma evidente e descarada hipótese de venda casada, ocorrente quando há o condicionamento no fornecimento de produto ou serviço ao fornecimento de outro produto ou serviço, prática abusiva prevista no art. 39, I, do citado CDC. Em outro plano, a cobrança pela marcação de assento configura prática abusiva por elevar, sem justa causa, o preço do transporte aéreo, tudo nos termos do artigo 39, inciso X, do Código de Defesa do Consumidor”. (TJAM, Juiz Luís Márcio Nascimento Albuquerque, processo n. 0400202-18.2023.8.04.0001)
3 "Podemos denominar como overbooking a consciente atividade de contratar do transportador aéreo que exorbita de sua real e efetiva capacidade de proporcionar acomodamento a todos os passageiros numa determinada aeronave em determinado vôo, culminando com a exclusão de alguns deles.
Em outras palavras, a empresa de transporte aéreo, mesmo ciente de que celebra contratos de consumo com contigente de pessoas superior à capacidade de ocupação da aeronave, aceita o risco de vir a causar frustrações à legítima expectativa dos consumidores de embarcar no vôo contratado, almejando, com isso, reduzir a taxa de desistência e aumentar seu lucro." (SOUSA, Álvaro. 27. Overbooking: responsabilidade civil do transportador aéreo à luz do Código de Defesa do Consumidor - Capítulo 4 - Práticas Comerciais Abusivas In: MARQUES, Claudia; MIRAGEM, Bruno. Direito do consumidor: proteção da confiança e práticas comerciais. São Paulo (SP):Editora Revista dos Tribunais. 2011. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/doutrina/direito-do-consumidor-protecao-da-confianca-e-praticas-comerciais/1510682608. Acesso em: 10 de Agosto de 2023).
4 “As intempéries da natureza – ventos, temporais, mau tempo – não caracterizam uma irresistibilidade para o transportador aéreo. Além de devidamente equipado com avançada tecnologia para prever e evitar o risco, pode e deve minorar as consequências da força maior. Se não pode impedir o mau tempo, pode prevê-lo e evitar a viagem, ou atenuar os seus efeitos hospedando e dando tratamento adequado aos seus passageiros. (CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 10ª ed. rev. e atual. São Paulo: Atlas, 2012, p. 72)
5 “O fortuito interno é fato imprevisível, e, por isso, inevitável, que se liga à organização da empresa, relacionando-se com os riscos da atividade desenvolvida pelo fornecedor. Assim, conforme leciona Sérgio Cavalieri Filho, seriam exemplos de fortuito interno, o estouro de um pneu do ônibus, o incêndio do veículo, o mal súbito do motorista, etc., já que não obstante acontecimentos imprevisíveis, estão ligados à organização do negócio explorado pelo fornecedor. No fortuito interno, o fornecedor responderá pelos danos ocorridos (ou seja, não é excludente de responsabilidade). Já o fortuito externo é também o fato imprevisível e inevitável, mas estranho à organização do negócio, não guardando nenhuma ligação com a atividade negocial do fornecedor. No fortuito externo, justamente por ser estranho à organização do negócio, o fornecedor não responderá pelo danos sofridos pelo consumidor (ou seja, será excludente de responsabilidade). (GARCIA, Leonardo. Código de Defesa do Consumidor: Doutrina e Jurisprudência para Utilização Profissional. 2ª ed. Salvador: Juspodivn, 2020, pp. 267-268)