Migalhas de Peso

Mais vendas, mais dívida: O ciclo silencioso que destrói suas margens

Entenda por que vender mais pode piorar o caixa da sua empresa - e como quebrar o ciclo da dívida antes que ele quebre o seu negócio.

17/10/2025

Carlos chega antes de todos, abre a empresa ainda no escuro e, por alguns minutos, o barulho das máquinas e o cheiro do café dão a sensação de que está tudo sob controle. Esse instante acaba quando o aplicativo do banco mostra o limite estourado, tarifas que você não lembra de ter aceitado e a parcela do capital de giro vencendo amanhã. O telefone toca: fornecedor pedindo acerto “para liberar a próxima carga”. O gerente, solícito, oferece uma “condição especial” que alonga prazos, aumenta o custo total e compra tempo caro. No calendário, a folha de pagamento avança. Você bateu recorde de vendas, mas o caixa aperta como nunca.

Carlos não é irresponsável - é o primeiro a chegar e o último a sair, conhece cada pessoa pelo nome, sabe como o negócio funciona na prática. O problema é outro: o dinheiro entra e evapora em juros, tarifas e antecipações que viraram muleta. Falta um mapa claro da dívida. É como atravessar um galpão escuro, desviando de caixas invisíveis e torcendo para não tropeçar no próximo vencimento. Em casa, você poupa a família do assunto; com amigos, a resposta virou “na luta, mas vamos indo”. Por dentro, uma pergunta insiste: “Onde foi que eu errei?”. E quando pinta um pedido grande - que deveria trazer alívio - vem o pânico: para produzir, será preciso mais capital. Mais capital significa mais banco. E, do jeito que está, mais corda no pescoço.

Onde o caixa realmente sangra (e vender mais pode piorar)

Não é o cafezinho. Sem um mapa da dívida, você paga parcelas sem enxergar o CET - Custo Efetivo Total e as garantias de cada contrato. O banco oferece “produtos” que isoladamente parecem solução (cheque PJ, conta garantida, CCB, antecipação de recebíveis), mas somados viram juros diários que comem sua margem. Quando o seu PMR - Prazo Médio de Recebimento é maior do que o PMP - Prazo Médio de Pagamento, cada nova venda exige caixa antes de virar dinheiro; para fechar o mês, entra a antecipação cara e a conta garantida caríssima - e seu recorde de vendas passa a entregar prejuízo por unidade.

As renegociações apressadas, assinadas para “ganhar tempo”, normalmente aumentam o CET, embutem tarifas e pedem mais garantias: aval pessoal, hipoteca, trava de recebíveis. Um atraso em um contrato puxa o vencimento antecipado de outro. O rating no Bacen piora, outros bancos cortam limites e você perde o poder de barganha. O ciclo se retroalimenta.

Se nada mudar, o dominó cai

As próximas semanas, mantidas assim, seguem um roteiro previsível. Você prioriza fornecedor, pula a parcela do banco, e uma cláusula antiga acorda um vencimento antecipado. O registro no Bacen acende alerta, outro banco fecha a torneira das duplicatas. Para honrar a folha, você antecipa recebíveis por uma taxa que morde a margem - só que as garantias estão amarradas, e o dinheiro, travado, não entra. O protesto aparece, fornecedores encurtam prazos, o ciclo de caixa alonga do lado errado. O rumor chega na equipe; os melhores começam a sondar o mercado. Clientes pedem “só uma confirmação” da entrega, e o comercial trabalha o dobro para fechar metade. Em casa, a conversa inevitável surge: a casa dada em garantia vira assunto. No jurídico do banco, o relógio corre: juros diários incham o saldo, e a proposta de “acordo para ontem” cobra o preço da pressa.

Crescer, desse jeito, vira risco de quebrar mais rápido. O que dói não é só o número vermelho - é perder o controle da narrativa. Você sempre liderou na tempestade; agora, a tempestade dita o rumo. É aqui que mudar o roteiro deixa de ser opção.

O plano para retomar o controle (sem promessas mágicas)

Objetivo: ganhar fôlego imediato, baixar o custo total e reconstruir o caixa, preservando o patrimônio da família.

1) Acender a luz - Mapa da dívida. Em uma planilha (ou folha A4), liste por contrato: banco, produto, saldo, indexador + spread, CET, garantias, vencimento, parcela e situação. Marque: qual linha custa mais ao dia, qual tem garantia mais sensível e o que vence primeiro. Regra de ouro: corta-se primeiro os juros diários mais agressivo e, em paralelo, protege-se a garantia mais valiosa.

2) Estancar a sangria - Caixa de guerra + pausa combinada. Defina 30–60 dias de caixa para o essencial (folha, tributos críticos, fornecedores-chave, energia). Com o mapa na mão, procure o banco antes do atraso virar processo: peça carência curta (30–90 dias)alongamento de prazoredução de spreadtroca de produto (sair de conta garantida para CCB alongada) e suspensão de travas de recebíveis enquanto negocia. Mostre fluxo projetado e metas objetivas de parcela. Isso reduz risco para ambos.

3) Trocar pressa por preço - reorganizar as linhas. Substitua conta garantida, cheque PJ e antecipações recorrentes por CCB alongada com parcela que cabe no Caixa de Guerra. Metas: reduzir a parcela mensal, alongar o prazo total, limitar o CET e retirar/limitar aval pessoal quando a garantia real permitir. Se aparecer novação/confissão de dívida, revise cláusulas, tarifas e vencimentos cruzados. Não assine no susto.

4) Blindagem jurídica estratégica. Se houver protesto iminente, garantia real em risco ou execução batendo à porta, combine frente negocial (comitê de crédito) e jurídica (medidas de urgência para evitar atos que destruam a operação e questionar encargos que inflaram o saldo). A ideia não é brigar por brigar; é criar tempo útil para um acordo econômico. E uma regra de ouro: PF ? PJ. Parar de misturar é parte da cura.

5) Governo do caixa - rotina que impede recaída. Ajuste PMR e PMP (entrada na venda, condições com top 5 fornecedores). Use antecipação só quando a margem unitária estiver protegida. Faça um ritual quinzenal: revisar mapa da dívida, comparar fluxo projetado vs. realizado e tomar decisões de corte/adiamento.

Você não precisa virar “o financeiro”; precisa de indicadores simples e constância.

Conclusão

Endividamento com bancos não é sentença. É um problema de estrutura e negociação, que se resolve com luz acesa, metas objetivas e disciplina. Vender mais volta a ser bom quando o custo do dinheiro está sob controle e as garantias deixam de ser uma ameaça constante. O que você construiu merece tranquilidade e previsibilidade - para a empresa e para a família.

Samir Tomazi
Advogado e sócio do escritório Tomazi Advocacia & Consultoria, é pós graduado e especialista em Direito Bancário. Conta com mais de dez anos de experiência na área e profundo conhecimento da matéria.

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