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Lei Maria da Penha: Proteção que independe de casamento

A proteção prevista na lei Maria da Penha não pode depender do casamento nem de um padrão probatório inalcançável. O Estado deve garantir defesa real às vítimas.

12/12/2025
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Há ainda, entre operadores do Direito, vítimas e sociedade em geral, o mito de que a lei 11.340/06, a chamada lei Maria da Penha, só se aplica quando existe casamento ou coabitação formal entre agressor e vítima. Esse equívoco, oriundo de um entrelaçamento histórico entre Direito de Família e Direito Penal, acaba por gerar lacunas eficazes de proteção, sobretudo diante da multiplicação de formas de convivência íntima, episódica ou digital.

Ao mesmo tempo, não se pode perder de vista que a proteção à mulher vítima de violência é compatível com as garantias fundamentais do processo penal: o Estado de Direito exige que a responsabilidade criminal seja lastreada em provas mínimas de autoria e materialidade

Neste sentido, a recente decisão do STJ, relatada pela ministra Marluce Caldas - Agravo em REsp 3.007.741/AM, DJE 4/10/2025, em que se manteve a absolvição por falta de provas suficientes, assume papel paradigmático: para alguns, símbolo de retrocesso; para outros, afirmação equilibrada do Estado de Direito

Neste artigo, defendo que a lei Maria da Penha não condiciona sua aplicação ao casamento ou à coabitação, mas que a observância exigente das garantias processuais, fortalece, e não enfraquece, sua legitimidade.

Base legal e normativa

A lei 11.340/06, em seu art. 5°, inc. III, abrange as hipóteses de violência doméstica e familiar contra a mulher, considerando-se para fins da lei “toda ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial”. Ao prever “relação íntima de afeto, sem consideração de coabitação”, o dispositivo rompeu com o paradigma de vínculo exclusivamente conjugal ou de união estável.

A Constituição da República, em seu art. 226, § 8º, prevê expressamente que as leis disporão sobre a proteção da família, “base da sociedade” sem, entretanto, limitar-se àquela formada por casamento ou união estável. Além disso, convenções internacionais como a CEDAW - Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres reforçam a obrigação estatal de erradicar a violência de gênero.

O entendimento consolidado é de que há aplicação da lei Maria da Penha independentemente de casamento ou coabitação. O STJ e os tribunais estaduais têm reconhecido sua incidência em relações de namoro, ex-namoro, de curta duração ou mesmo após a ruptura, desde que comprovada a “relação íntima de afeto”. Recentemente, a decisão do STJ - AgRg 3.007.741/AM (DJE 4/10/2025), sob relatoria da ministra Marluce Caldas, manteve a absolvição de um homem acusado de agredir sua ex-companheira em Manaus, por entender que não havia provas suficientes da autoria e da materialidade do crime.

Essa decisão gerou intenso debate entre juristas e militantes da causa de gênero: muitos a qualificaram como retrocesso. para mim, embora o voto tenha sido juridicamente coerente dentro da lógica penal tradicional, o problema é outro: a exigência de um tipo de prova que não corresponde à realidade das relações íntimas  e, por isso, pode desproteger justamente quem a lei nasceu para proteger.

A violência doméstica não é um crime comum, mas um crime relacional, praticado em ambiente privado, com assimetria emocional, dependência afetiva, muitas vezes financeira, psicológica e familiar. O agressor escolhe o espaço e o momento mais favoráveis à impunidade. Exigir que a vítima prove o que, estruturalmente, ela não tem condições de provar é inverter o ônus social da dor.

Como juiz de paz que celebra casamentos e acompanha de perto a realidade das relações afetivas no Brasil, observo diariamente que a violência doméstica não começa, nem termina, com o casamento.

Defender que a lei Maria da Penha continue a se aplicar fora do casamento, fora da coabitação, fora do vínculo formal é defender que o Direito siga a realidade, e não o contrário.

Não se trata de relativizar o devido processo legal,  mas de reconhecer que garantias penais não podem ser confundidas com licenças sociais para a impunidade. O Direito só se equilibra quando protege sem exigir o impossível.

Se a vítima não consegue provar porque o agressor age onde não há testemunhas, câmeras ou presença pública, a conclusão mais coerente não é absolver,  é repensar a lógica da prova

Conclusão

A lei Maria da Penha representa um dos maiores acertos do ordenamento jurídico brasileiro. Ao reconhecer que a violência de gênero ultrapassa o espaço do casamento e pode se manifestar em qualquer relação de afeto, o Brasil reafirma seu compromisso com a dignidade humana e com a igualdade substancial. Mais do que uma norma penal, é um instrumento civilizatório: recorda-nos que a verdadeira justiça começa quando o Estado escuta, acolhe e protege quem mais precisa.

Autor

Rudyard Rios Juiz de Paz pelo TJDFT - Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. Formado em Direito e Filosofia, pós em Ciência Politica, Mestrando em Direito pela UNB com foco em Direito de Familia.

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