Cada vez mais o tema da “ética” nas relações sociais ganha relevância em nosso país. Debates sobre a ética na sociedade brasileira, em nossa política, nos nossos Poderes instituídos, no próprio Estado e no meio privado ganharam nos últimos anos grande relevância e repercussão, especialmente em razão de sucessivos escândalos de corrupção que nos assolam.
O destaque conferido aos programas de integridade no meio corporativo e no meio público, com legislações que determinam existência de compliance e códigos de ética e de conduta regrando as ações de empregados, gestores e agentes públicos, reforçam os questionamentos sobre ética e moral.
É importante conhecer minimamente esses conceitos, saber diferenciá-los e estabelecer a relação entre eles, considerando que a filosofia possui correntes de pensamentos sobre esses temas que remontam até a antiguidade, passando pelo iluminismo e por estudiosos contemporâneos, sendo que apesar de tantos estudos, tantas obras escritas sobre o tema, tantas reflexões por grandes pensadores ao longo da história da humanidade, fato é que não há uma única e segura resposta para a seguinte questão: “o que é ética”?
Ética e moral
Frequentemente confundidos ou tidos como sinônimos, ética e moral têm origem única. Ethos, do grego, significava costumes, hábitos, lugar em que se habita, o mesmo significado que tem a palavra latina mores. A origem de ambos os termos é a mesma, porém com o tempo eles foram se diferenciando.
Moral significa os costumes, os hábitos, a cultura, o modo de ser estabelecido por uma sociedade, seus valores e tradição. Ela se internaliza e passa a constituir o código de conduta individual que utilizamos em nossas decisões do dia-a-dia, consistindo em regras internas do indivíduo que orientam suas atitudes nas relações interpessoais diárias. A moral é determinada pelo indivíduo, com base em valores da sociedade, do meio em que vive.
Já a ética é o exercício de valoração sobre a moral que visa as melhores escolhas através da avaliação daquilo que fazemos ou deixamos de fazer. Trata-se de se estudar, compreender e valorar os fundamentos da moral, estabelecendo qual seria, na situação concreta, a conduta mais adequada em termos éticos. Se diz que a ética é universal, enquanto a moral é individual1.
Em se tratando de ética a filosofia identifica, de uma forma geral, três grandes vertentes de pensamento que prevaleceram, por assim dizer, em momentos ou épocas da história.
Primeiramente houve o desenvolvimento das ideias sobre ética pelos pensadores clássicos da Grécia nos séculos V e IV antes de Cristo, personificados nas icônicas figuras de Sócrates, Platão e Aristóteles. Esta corrente de pensamento grego identificava a vida como ética, segundo os padrões morais, no viver pela razão, cultivando as virtudes e sempre na busca da felicidade (eudaimonismo), identificando o indivíduo como parte de uma grande fraternidade universal e integrado ao cosmos. As virtudes (areté) eram corporificadas na coragem, Justiça, sabedoria e temperança. Posteriormente e inspirado nessas ideias surge a corrente de pensamento filosófico chamada estóica, pelo filósofo grego Zenão de Cítio, muito em voga nos dias atuais, inclusive nos meios corporativos2, em razão de seus dogmas de aceitação das paixões e do que não se pode mudar, além da concepção de felicidade, de serenidade mental, perseverança e resiliência frente às adversidades e foco naquilo que podemos controlar.
Num segundo momento histórico as ideias de cunho religioso, especialmente disseminadas pelo cristianismo, passam a ser a referência ética em razão dos valores pregados pela doutrina cristã. Tal concepção ética perdura por muitos séculos, tendo na Idade Média seu apogeu.
Com o advento das ideias iluministas a partir do século XVII o filósofo Immanuel Kant lança as bases filosóficas de sua teoria sobre ética, tendo como base inafastável a razão (substituindo a escolha prévia de valores feita até então pela religião), identificando a ação moral como aquela motivada pelo dever e não por dever, ou seja, quando o indivíduo age porque acredita estar agindo de acordo com a moral e sua valoração ética, não por medo de uma sanção ética ou jurídica. Para Kant a conduta era ética quando poderia ser uma conduta estabelecida como lei moral universal3. Há forte influência do conceito de dignidade humana e respeito aos direitos humanos nesta concepção.
Vale mencionar a contribuição do pensamento utilitarista, expresso por John Stuart Mill e Jeremy Bentham4, que propõem uma visão contratual, pragmática para fins de coexistência dos indivíduos em sociedade, sendo considerado ético aquilo que proporciona a felicidade geral, o bem-estar geral. Também importante citar “Uma Teoria de Justiça”, de John Rawls, que propõe a ética como justiça, e para tanto as escolhas deveriam ser feitas dentro do estado original, sob o véu da ignorância, que seria uma situação hipotética de igualdade total e absoluta no momento de estabelecer as estruturas da sociedade e o contrato social hipotético5.
Como diz o filósofo Clóvis de Barros Monteiro, a moral parece estar se perdendo e o que se chama e codifica, por exemplo, como ética, tem muito mais a ver com moral, a exemplo dos códigos de conduta ou códigos de ética de corporações, que devem ou deveriam compilar os valores de uma corporação, e muitas vezes são letra “morta” por justamente não se adequarem ou representarem os valores efetivos de uma corporação. Há um abandono da própria moral, exemplificada pelo filósofo com os “caderninhos” de anotação de fiado que existiam antigamente nos pequenos comércios de bairros, substituídos pelas placas de “não insista, não vendo fiado”. Isso demonstra a mudança de cultura de valores que leva ao não pagamento de contas, e, portanto, a não se aceitar mais o fiado6.
O que chamamos de crise ética de nossa sociedade, portanto, é uma crise de valores morais e tem múltiplos fatores como sua causa, merecendo uma adequada reflexão a respeito.
A relação da ética e da moral com o Direito
Da mesma forma que ética e moral possuem uma forte ligação, assim também o direito possui estreita relação com esses conceitos. A interligação de tais conceitos está no fato de que tanto o direito como a ética e a moral influenciam e moldam o comportamento dos indivíduos e das sociedades, sendo dessa maneira conceitos interdependentes.
Apesar dessa interdependência, o Direito tem a função, por definição, de regular as relações sociais por meio de normas positivadas que impõe direitos e deveres a todos. Neste sentido, o Direito é inevitavelmente influenciado pelos valores morais de um grupo social e é valorado pela ética em relação a seus postulados. Por outro lado, temos que o Direito pode ser considerado o mínimo de ética necessária para a vida em sociedade, justamente por estabelecer, com base na moral e ética, normas para a vida em sociedade.
Quando avaliamos a Justiça de uma determinada lei estamos realizando uma valoração ética desta lei, e o exercício de valoração ética fornece elementos fundamentais para a formulação de leis mais justas. Temos também que nem todo ato considerado imoral possa ou deva ser sancionado pelas leis, ao passo que nem toda questão moral precisa, necessariamente, ser positivada em leis.
Como se percebe claramente, a relação entre direito, ética e moral é bem estreita, e nos tempos contemporâneos ganha ainda contornos mais nítidos com as normas que regulam o compliance para corporações públicas e privadas, exigindo conformidade com as leis e o estabelecimento e fomento de uma cultura de ética e integridade no meio público e privado.
Ética e moral na sociedade brasileira
É deveras comum o comentário de que nossa sociedade vive uma crise ética, o que parece, de fato, ocorrer diante não somente de tantos escândalos de corrupção e crimes, mas de atitudes e condutas que levantam inevitavelmente o questionamento acerca da ética no Brasil, de nossos próprios valores.
Quando temos a oportunidade de conhecer outros países que estão num patamar mais avançado em termos de consolidação do Estado Democrático de Direito e do estabelecimento e internalização pela sociedade de valores morais e padrões éticos, temos muitas vezes um verdadeiro choque de realidade. Desde a observação da limpeza e preservação de espaços públicos, do respeito às leis nas mais pequenas ações diárias como atravessar uma rua somente em locais adequados para isso, lixo somente no lixo, chegando até a ausência de catracas em metrôs e ônibus e assim por diante. Isso sem contar os baixos índices de corrupção comparados ao Brasil7.
Muitas pesquisas internas demonstram que o problema é mais grave do que parece. A título de exemplo em pesquisa realizada pela Universidade de Brasília um entre quatro brasileiros afirmou entender que a “honestidade” é um conceito relativo e que subornar um policial para não receber uma multa é válido, mas apesar disso fico indignado com a corrupção no setor público8. Essa mesma pesquisa demonstrou que 31% dos entrevistados não conseguiam distinguir o público do privado.
Em outra pesquisa do Instituto Etco ficou demonstrado que somente 8% dos jovens brasileiros acham possível ser ético o tempo todo, e 52% compram produtos piratas embora concordem que não pagar imposto é antiético9. Pesquisa da UFMG revelou que muitas pessoas não enxergam o desvio privado como corrupção, que seria reservada somente ao ambiente público10.
Todas essas pesquisas demonstram que o problema está na concepção dos valores de parcela significativa de nossa sociedade, que não consegue distinguir ou valorar questões básicas como diferença entre público e privado, ou ainda pior, compreende como lícitas condutas que são inclusive consideradas crime pela lei.
Este quadro nos revela que existe um problema grave de valores da sociedade brasileira, o que merece atenção por parte do governo, do meio corporativo e da sociedade como um todo. Precisamos rever muitos de nossos conceitos e passar por um verdadeiro processo de reflexão e educação em termos de valores. Valores estes que reflitam a nossa sociedade, mas que eticamente não transijam com questões básicas como a corrupção.
Mais do que nunca a compreensão de conceitos básicos de ordem filosófica vinculados a moral e ética, bem como sua reflexão e reconhecimento da importância que possuem para a estruturação de uma sociedade precisam ser compreendidos, sob pena de padecermos cada vez mais a convivência antiética que é danosa a todos os indivíduos que compõem uma sociedade.
A corrupção como deturpação de valores morais e julgamentos éticos
Na obra Ética e Vergonha na cara, os filósofos Mário Sérgio Cortella e Clóvis de Barros Filho fazem reflexões acerca da corrupção, afirmando que em tempos de graves crises éticas, de deturpação dos valores morais, a corrupção encontra terreno fértil para prosperar. É o que vemos em nosso país há algum tempo, e prosseguindo nas lições desses filósofos, eles afirmam corretamente que a corrupção é uma escolha advinda do relativismo moral. o que faz o ladrão não é a ocasião, mas a escolha.11
Continuando em suas reflexões, os dois filósofos concordam que a corrupção é evitável, pois sempre há uma escolha que pode ser feita. Colocar a culpa no sistema e em jogar o jogo que seria inevitável é uma justificativa e fuga moral da decisão tomada. E esta escolha implica corrupção tanto no campo privado como no campo público.
É exatamente a degradação moral com errônea valoração ética que leva a escolha da corrupção, havendo ainda a tentativa de se justificar moralmente a escolha errada das mais diversas maneiras. Desde pequenos atos, como infrações de trânsito, até mesmo condutas que estão quase que absorvidas como naturais em certas áreas, como a pirataria e a sonegação fiscal, e ainda casos gravíssimos de desvios e apropriação de recursos públicos milionários, em essência estamos diante na mesma situação, do mesmo desvio moral, da errônea valoração ética ou de sua inobservância. O que muda são somente as consequências em termos de dimensão desses atos.
A necessária reflexão moral e devida valoração ética como elementos essenciais do enfrentamento a corrupção
O quadro atual de nossa sociedade, cuja parcela representativa confunde público e privado, lícito e ilícito, que aceita transigir com o ilegal e por vezes até reconhece verdadeiro glamour no ilícito12, demanda urgentemente a revisão de nossos valores morais. Esses valores precisam ser reafirmados e praticados a fim de que pratiquemos nossas escolhas, o nosso exercício da ética, dentro de padrões morais aceitáveis.
Sem que haja majoritariamente pela sociedade o reconhecimento da deturpação dos valores morais e da ética, e de que é necessário debater o tema e incutir nos indivíduos padrões mínimos que informem seus códigos morais e inspirem suas decisões pela ética, fica extremamente difícil enfrentar e reverter o quadro de corrupção em nosso país.
E não se propõe de forma alguma doutrinação. Pelo contrário, o que é preciso é a compreensão efetiva de valores universais e sem os quais a própria sociedade fica ameaçada em sua existência, valores como a preservação da vida e liberdade, a fraternidade universal, a visão de sociedade acima da visão individualista13, a diferenciação clara entre público e privado, e assim por diante. Que sejam acrescentados os valores sociais, religiosos, ideológicos, familiares e tantos mais, respeitadas as idiossincrasias de cada um, dentro de valores essenciais como convivência, respeito ao outro, diversidade e pluralidade.
E o papel do direito neste contexto é essencial, demandando leis que permitam a punição efetiva dos casos de corrupção e seus responsáveis, sejam agentes públicos ou privados, a fim de evitar sua repetição e incutir nas pessoas a cultura de ética, pelo dever ou por dever. Finalmente, o estrito cumprimento da lei é o mínimo necessário para reverter a corrupção disseminada.
A arte, em seu inestimável papel de ler, interpretar e representar a vida, nos brinda, tantas vezes, com pérolas como a do cantor e compositor Jorge Ben, que disse magistralmente, da maneira mais “abrasileirada” que se possa imaginar, em sua canção “Caramba... Galileu da Galiléia”:
Malandro que é malandro não bobeia. Se malandro soubesse como é bom ser honesto. Seria honesto só por malandragem, caramba.
Quando tivermos em nossa sociedade a percepção de que a cultura de ética favorece a todos, quando os indivíduos se portarem dentro dessa cultura e a sociedade, por consequência, adotar práticas mais éticas, teremos sim o início da derrocada da corrupção enquanto característica endêmica do Brasil.
O caminho é longo, mas é preciso começar a trilhá-lo urgentemente.
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1 Sobre o tema, vide https://www.facebook.com/clovisdebarrosoficial/videos/qual-a-diferen%C3%A7a-entre-%C3%A9tica-e-moralo-professor-cl%C3%B3vis-de-barros-nos-elucida-sob/1214771863272347/
2 O mundo corporativo encontrou campo fértil em conceitos básicos da filosofia estóica propondo aplicação desses conceitos no cotidiano empresarial, a exemplo do foco no controle das suas ações, resiliência e calma, liderança e ética, etc. Existem muitas críticas nessa transposição ao meio corporativo dos conceitos estóicos, que teriam sido deturpados e identificam felicidade como o sucesso nos negócios, especialmente nos temas da resiliência e perseverança explorado por muitos coachs corporativos.
3 Immanuel Kant, filósofo alemão, publicou em 1785 a obra Fundamentação Metafísica dos Costumes, onde estabelece esses preceitos.
4 Jeremy Bentham e seu discípulos John Stuart Mill foram os grandes expoentes da Teoria Utilitarista. Lançada no século XVII, esta teoria se caracteriza por ser um sistema filosófico e moral no qual a ação mais útil é denominada como a mais correta, que maximiza a felicidade do maior número de pessoas, tendo grande influência até hoje.
5 Uma Teoria de Justiça , de John Rawls, publicado em 1971, é considerada uma das mais importantes obras de teoria política do século XX.
6 Ética e Vergonha na cara, de Mário Sérgio Cortella e Clóvis de Barros Filho, Ed. Papirus Sete Mares, 2014, ao tratar de Corrupção: Consequências do Sistema
7 No índice de corrupção da Transparência Internacional de 2024 o Brasil ocupa a posição n.º107 num ranking de 180 países, a pior posição ocupada pelo Brasil ao longo da série histórica.
8 https://www.gazetadopovo.com.br/vida-publica/jeitinho-brasileiro-contradiz-indignacao-popular-contra-a-corrupcao-no-setor-publico-8c2g3eq27n941x1d6bz85lrsg/
9 https://www.etco.org.br/etco-na-midia/90-dos-jovens-consideram-sociedade-brasileira-pouco-ou-nada-etica-aponta-datafolha-em-estudo-para-o-etco/
10 https://www.conjur.com.br/2012-nov-05/pesquisa-aponta-10-praticas-corrupcao-brasileiro/
11 Ética e Vergonha na cara, de Mário Sérgio Cortella e Clóvis de Barros Filho, Ed. Papirus Sete Mares, 2014, ao tratar de Corrupção: Consequências do Sistema
12 Vide artigo de nossa autoria publicado no blogo do Jornalista Fausto Macedo: https://www.estadao.com.br/politica/blog-do-fausto-macedo/a-falencia-do-enfrentamento-ao-crime-organizado-pela-sua-infiltracao-no-estado/, no qual fazemos algumas considerações sobre a série documental “Vale o Escrito”, que narra a história do jogo do bicho no Estado do Rio de Janeiro.
13 Sobre o tema, vide as ponderações de Luiz Felipe Pondè, para quem não existe ética individual, mas sim nas relações sociais: https://cultura.uol.com.br/noticias/50686_nao-existe-discussao-etica-individual-afirma-ponde.html
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Bentham, Jeremy. Utilitarismo. Ed. Iluminuras, 2020
Cortella, Mário Sérgio et al. Ed. Papirus Sete Mares, 2014
Kant, Immanuel. Fundamentação Metafísica dos Costumes. Ed Edições 70, 2009
Rawls, John. Uma Teoria de Justiça. Ed. Martins Fontes, 2016
Sites consultados:
https://transparenciainternacional.org.br/ipc/
https://www.facebook.com/clovisdebarrosoficial/videos/qual-a-diferen%C3%A7a-entre-%C3%A9tica-e-moralo-professor-cl%C3%B3vis-de-barros-nos-elucida-sob/1214771863272347/
https://www.gazetadopovo.com.br/vida-publica/jeitinho-brasileiro-contradiz-indignacao-popular-contra-a-corrupcao-no-setor-publico-8c2g3eq27n941x1d6bz85lrsg/
https://www.etco.org.br/etco-na-midia/90-dos-jovens-consideram-sociedade-brasileira-pouco-ou-nada-etica-aponta-datafolha-em-estudo-para-o-etco/
https://www.conjur.com.br/2012-nov-05/pesquisa-aponta-10-praticas-corrupcao-brasileiro/
https://cultura.uol.com.br/noticias/50686_nao-existe-discussao-etica-individual-afirma-ponde.html