O art. 1.641, II, do CC, que impõe a separação obrigatória de bens para maiores de 70 anos, permanece intocado mais de duas décadas após a entrada em vigor do Código de 2002 - um verdadeiro “museu de grandes novidades”.
Importante: O STF, no Tema 1.236, não declarou a inconstitucionalidade do art. 1.641, II, do CC.
Não, mesmo!
Preferiu ficar em cima do muro, mas a vida concreta de Maria e Manuel mostra que, quando o Direito se omite, quem sofre é o amor depois dos 70 anos.
A recente decisão monocrática do TJ-RJ, nos autos do processo 0062167-77.2025.8.19.0000, ao negar a remessa da arguição de inconstitucionalidade ao Órgão Especial, reacende o debate:
Pode o Direito punir o amor pela idade, ignorando princípios constitucionais como dignidade, igualdade e autonomia privada
Ou seja, a decisão monocrática aplica indevidamente o Tema 1.236 e exclui viúva da sucessão, mostrando como o art. 1.641, II, do CC, pode punir o amor depois dos 70 anos.
Análise da decisão monocrática
A recente decisão monocrática rejeitou provimento ao recurso, sob o fundamento de que o tema já teria sido decidido pelo STF no julgamento do Tema 1.236 da repercussão geral, aplicando-se, portanto, o art. 932, III, “b”, do CPC.
Com o devido respeito, a decisão incorre em vício insanável ao opor-se, de forma individual, a tese de inconstitucionalidade suscitada pela parte agravante.
A causa de pedir, como expressamente consta do relatório, é a inconstitucionalidade do art. 1.641, II, do CC - e não a aplicação da tese firmada pelo STF.
Monocraticamente, o relator:
- Usurpa a competência do colegiado, violando a cláusula de reserva de plenário (art. 97 da CF/88);
- Foge da causa de pedir, decidindo com base em questão não suscitada, impede o controle difuso legítimo, que exige apreciação pelo órgão competente
- Aplica indevidamente o art. 932, III, “b”, do CPC, como se houvesse identidade entre o pedido da parte e a tese firmada pelo STF.
Mais: Trata como resolvida uma controvérsia que não foi enfrentada pelo STF, já que o Tema 1.236 não declarou a inconstitucionalidade da norma.
Ao decidir com base em suposta ausência de escritura pública ou que a agravante supostamente queria alterar o regime de bens pré-estabelecido quando um cônjuge já é falecido, a decisão monocrática desvia-se da causa de pedir.
Por quê? Porque decide sobre matéria não suscitada pela parte, o que configura:
- Violação ao princípio da congruência (art. 492 do CPC),
- Prejuízo ao contraditório e à ampla defesa, por não enfrentar o argumento central.
- Impedimento ao controle difuso legítimo, ao não remeter os autos ao Órgão Especial.
- Usurpação de competência, em afronta à cláusula de reserva de plenário (art. 97 da CF/88).
Além do que, a parte agravante não pleiteou a aplicação da tese do Tema 1.236 do STF, na causa de pedir recursal.
Tampouco discutiu a existência ou ausência de escritura pública manifestando vontade de adoção de outro regime de bens ou para alterar o regime de bens pré-estabelecido quando um cônjuge já é falecido.
O objeto do recurso é bem claro:
- Trata-se da constitucionalidade ou não do art. 1.641, II, do CC, diante de sua aplicação automática ao casamento celebrado em 2016, impondo o regime de separação obrigatória de bens.
No relatório do recurso: A causa de pedir é expressa - de controle difuso de constitucionalidade. O pedido: Que o Órgão Especial declare - ou não - a inconstitucionalidade da norma.
A agravante requer, sim, que o Órgão Especial aprecie, em controle difuso, se o art. 1.641, II, viola princípios constitucionais, como:
- Dignidade da pessoa humana;
- Autonomia privada;
- Igualdade entre cônjuges;
- Vedação à discriminação por idade.
Portanto, com todo o respeito, o argumento do relator - de que não há escritura pública - não responde à controvérsia posta.
O foco da análise constitucional e desviado e antecipa o mérito sucessório, sem enfrentar a questão central: a validade constitucional da norma aplicada automaticamente ao caso concreto de Maria e Manuel.
Se a causa de pedir, como consta no relatório, é a inconstitucionalidade, o magistrado não pode decidir monocraticamente rejeitando a tese, dizendo, na prática, que o STF” já decidiu”, se o Supremo não declarou o art. 1.641, II, inconstitucional.
Por outras palavras, o relator não pode “resolver sozinho” esse ponto com base em um precedente do STF que não enfrentou a tese exata da causa de pedir, isto é, não há declaração expressa de inconstitucionalidade do art. 1.641, II, do CC.
O caso de Maria e Manuel: Quando a norma fere a Justiça
A abstração jurídica ganha contornos dramáticos quando confrontada com a realidade concreta.
É o que se vê no caso de Maria, viúva de Manuel, servidor público do “andar de baixo” da Administração, como diria Ferreira Gullar: “com seu salário de fome, sua vida fechada em arquivos”.
Após quatorze anos de tramitação judicial, foi finalmente expedido, em 2021, um precatório em favor de Manuel.
A longa espera, por si só, já configura violação ao direito fundamental à duração razoável do processo (art. 5º, LXXVIII, da CF)
Mas o desfecho foi ainda mais cruel: em 2022, Manuel faleceu. Foi para o céu. O sonho acabou. Adeus precatório.
Sua esposa, Maria, requereu habilitação nos autos como herdeira, para receber a parte que lhe cabia.
O juízo deferiu o pedido, reconhecendo que o falecido deixara nove filhos maiores e a cônjuge, e que Maria faria jus à sua parte como herdeira.
Contudo, em julho de 2025, a juíza em exercício revogou a habilitação de Maria, com base no art. 1.641, II, do CC, sob o argumento de que o regime de bens do casal era o de separação obrigatória
A decisão é chocante. Manuel não deixou bens. Era pobre como a maioria do povo brasileiro. Não há como presumir má-fé ou “golpe do baú” por parte de Maria.
O precatório era o único bem deixado - fruto de uma vida de trabalho. Os filhos, por sua vez, estão em local incerto e não sabido, conforme edital publicado pelo juízo. Ainda assim, concorrem com a herança.
A consequência é uma maldade jurídica: o cônjuge sobrevivente, que concorre com descendentes nos termos do art. 1.829 do CC, foi excluído do recebimento do precatório com base em uma norma cuja constitucionalidade é, no mínimo, questionável.
A exclusão de Maria revela uma colisão entre normas infraconstitucionais e os princípios fundamentais da Constituição.
Gera-se uma injustiça epistêmica, pois a norma presume uma proteção patrimonial que não existe no caso concreto. Maria não se beneficiou de bens.
O falecido não deixou patrimônio. E, ainda assim, ela foi afastada da sucessão.
Esse paradoxo - de uma viúva inicialmente habilitada, depois excluída com base em um regime de bens que não protegeu ninguém - fere o princípio da razoabilidade, a dignidade da pessoa humana e a função social da herança.
É um caso que clama por justiça e sensibilidade constitucional.
Da competência do Órgão Especial
A agravante pretende a declaração de inconstitucionalidade interpartes, com efeitos ex tunc, no que tange ao direito sucessório relacionado ao recebimento de precatório - matéria que não foi enfrentada pelo STF.
Negar a remessa ao Órgão Especial, sob o argumento de que a matéria já foi decidida em repercussão geral, configura grave equívoco e usurpação de competência, violando o princípio do juiz natural e o devido processo legal.
A prerrogativa do relator de decidir monocraticamente não se aplica quando: A repercussão geral não trata da constitucionalidade da norma, mas apenas de sua aplicação, a parte requer expressamente a remessa ao Órgão Especial, o STF não declarou a norma inconstitucional, mantendo-a vigente.
Da afronta à cláusula de reserva de plenário
A decisão monocrática viola frontalmente o art. 97 da CF/88 e a súmula vinculante 10 do STF, que estabelecem que somente o plenário ou o órgão especial dos tribunais pode declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo.
O STF, ao julgar o Tema 1.236, não exerceu controle concentrado de constitucionalidade. Tampouco declarou a inconstitucionalidade da norma.
- Logo, não há decisão com efeito vinculante que dispense a apreciação do incidente pelo Órgão Especial.
Conclusão
A decisão monocrática incorre em equívoco técnico e hermenêutico ao aplicar diretamente a tese do Tema 1.236 como se fosse uma declaração de inconstitucionalidade.
Tal fundamentação não se aplica ao caso concreto, pois a parte agravante não pleiteou a aplicação da tese, mas sim a remessa dos autos ao Órgão Especial para apreciação da constitucionalidade do art. 1.641, II, do CC.
Ao não o fazer, a decisão afronta diretamente a cláusula de reserva de plenário e a súmula vinculante 10, gerando nulidade absoluta.
O drama vivido por Maria, viúva de Manuel, revela que a aplicação automática da norma pode gerar exclusão injusta, desrespeito à dignidade humana e desprestígio à Justiça.
É hora de interpretar o Direito Sucessório à luz da Constituição - especialmente quando se trata de pessoas vulneráveis.
A decisão monocrática que a excluiu do precatório não apenas ignorou a Constituição - ela ignorou Manuel, ignorou Maria, e ignorou o Brasil que acorda cedo, pega dois ônibus e morre esperando.
O Supremo não declarou a norma inconstitucional. Mas também não declarou que Maria deve ser punida por amar depois dos 70.
O caso de Maria e Manuel mostra que, quando o Direito se omite, quem sofre é o amor depois dos 70.
O STF, no Tema 1236, preferiu ficar em cima do muro, mas a vida não admite neutralidade: ou se garante a dignidade e a igualdade, ou se perpetua a exclusão.
O desembargador relator, por sua vez, decidiu que a cláusula de reserva de plenário é opcional - como não se fosse obrigatória a remessa ao Órgão Especial.
A remessa, sim, é obrigatória!
Enquanto isso, o precatório jaz em alguma conta judicial, os filhos estão em lugar incerto e não sabido, e Maria espera.
Espera que alguém leia a Constituição...
Ou, quem sabe, que Manuel interceda lá do céu...
Entre a frieza da norma e a esperança de Maria, é preciso lembrar que o Direito não existe para punir o amor, mas para garantir dignidade.
Amor e Justiça: na canção que canta a liberdade de amar, Milton Nascimento e Caetano Veloso lembram em Paula e Bebeto que “qualquer maneira de amor vale a pena”.
Que o Direito, ao interpretar a Constituição, não se esqueça de que proteger o humano que ama, espera e resiste, é sempre sua maior missão.