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Maria, Manuel e o art. 1.641, II, do CC: O amor depois dos 70

Decisão monocrática do TJ/RJ aplicou indevidamente o Tema 1.236 e excluiu Maria da sucessão, ferindo a dignidade humana. É punir o amor pela idade.

27/11/2025

O art. 1.641, II, do CC, que impõe a separação obrigatória de bens para maiores de 70 anos, permanece intocado mais de duas décadas após a entrada em vigor do Código de 2002 - um verdadeiro “museu de grandes novidades”.

Importante: O STF, no Tema 1.236, não declarou a inconstitucionalidade do art. 1.641, II, do CC.

Não, mesmo!

Preferiu ficar em cima do muro, mas a vida concreta de Maria e Manuel mostra que, quando o Direito se omite, quem sofre é o amor depois dos 70 anos.

A recente decisão monocrática do TJ-RJ, nos autos do processo 0062167-77.2025.8.19.0000, ao negar a remessa da arguição de inconstitucionalidade ao Órgão Especial, reacende o debate:

Pode o Direito punir o amor pela idade, ignorando princípios constitucionais como dignidade, igualdade e autonomia privada

Ou seja, a decisão monocrática aplica indevidamente o Tema 1.236 e exclui viúva da sucessão, mostrando como o art. 1.641, II, do CC, pode punir o amor depois dos 70 anos.

Análise da decisão monocrática

A recente decisão monocrática rejeitou provimento ao recurso, sob o fundamento de que o tema já teria sido decidido pelo STF no julgamento do Tema 1.236 da repercussão geral, aplicando-se, portanto, o art. 932, III, “b”, do CPC.

Com o devido respeito, a decisão incorre em vício insanável ao opor-se, de forma individual, a tese de inconstitucionalidade suscitada pela parte agravante.

A causa de pedir, como expressamente consta do relatório, é a inconstitucionalidade do art. 1.641, II, do CC - e não a aplicação da tese firmada pelo STF.

Monocraticamente, o relator:

Mais: Trata como resolvida uma controvérsia que não foi enfrentada pelo STF, já que o Tema 1.236 não declarou a inconstitucionalidade da norma.

Ao decidir com base em suposta ausência de escritura pública ou que a agravante supostamente queria alterar o regime de bens pré-estabelecido quando um cônjuge já é falecido, a decisão monocrática desvia-se da causa de pedir.

Por quê? Porque decide sobre matéria não suscitada pela parte, o que configura:

Além do que, a parte agravante não pleiteou a aplicação da tese do Tema 1.236 do STF, na causa de pedir recursal.

Tampouco discutiu a existência ou ausência de escritura pública manifestando vontade de adoção de outro regime de bens ou para alterar o regime de bens pré-estabelecido quando um cônjuge já é falecido.

O objeto do recurso é bem claro:

No relatório do recurso: A causa de pedir é expressa - de controle difuso de constitucionalidade. O pedido: Que o Órgão Especial declare - ou não - a inconstitucionalidade da norma.

A agravante requer, sim, que o Órgão Especial aprecie, em controle difuso, se o art. 1.641, II, viola princípios constitucionais, como:

 Portanto, com todo o respeito, o argumento do relator - de que não há escritura pública - não responde à controvérsia posta.

O foco da análise constitucional e desviado e antecipa o mérito sucessório, sem enfrentar a questão central: a validade constitucional da norma aplicada automaticamente ao caso concreto de Maria e Manuel.

 Se a causa de pedir, como consta no relatório, é a inconstitucionalidade, o magistrado não pode decidir monocraticamente rejeitando a tese, dizendo, na prática, que o STF” já decidiu”, se o Supremo não declarou o art. 1.641, II, inconstitucional.

Por outras palavras, o relator não pode “resolver sozinho” esse ponto com base em um precedente do STF que não enfrentou a tese exata da causa de pedir, isto é, não há declaração expressa de inconstitucionalidade do art. 1.641, II, do CC. 

O caso de Maria e Manuel: Quando a norma fere a Justiça

A abstração jurídica ganha contornos dramáticos quando confrontada com a realidade concreta.

É o que se vê no caso de Maria, viúva de Manuel, servidor público do “andar de baixo” da Administração, como diria Ferreira Gullar: “com seu salário de fome, sua vida fechada em arquivos”.

Após quatorze anos de tramitação judicial, foi finalmente expedido, em 2021, um precatório em favor de Manuel.

A longa espera, por si só, já configura violação ao direito fundamental à duração razoável do processo (art. 5º, LXXVIII, da CF)

Mas o desfecho foi ainda mais cruel: em 2022, Manuel faleceu. Foi para o céu. O sonho acabou. Adeus precatório.

Sua esposa, Maria, requereu habilitação nos autos como herdeira, para receber a parte que lhe cabia.

O juízo deferiu o pedido, reconhecendo que o falecido deixara nove filhos maiores e a cônjuge, e que Maria faria jus à sua parte como herdeira.

Contudo, em julho de 2025, a juíza em exercício revogou a habilitação de Maria, com base no art. 1.641, II, do CC, sob o argumento de que o regime de bens do casal era o de separação obrigatória

A decisão é chocante. Manuel não deixou bens. Era pobre como a maioria do povo brasileiro. Não há como presumir má-fé ou “golpe do baú” por parte de Maria.

O precatório era o único bem deixado - fruto de uma vida de trabalho. Os filhos, por sua vez, estão em local incerto e não sabido, conforme edital publicado pelo juízo. Ainda assim, concorrem com a herança.

A consequência é uma maldade jurídica: o cônjuge sobrevivente, que concorre com descendentes nos termos do art. 1.829 do CC, foi excluído do recebimento do precatório com base em uma norma cuja constitucionalidade é, no mínimo, questionável.

A exclusão de Maria revela uma colisão entre normas infraconstitucionais e os princípios fundamentais da Constituição.

Gera-se uma injustiça epistêmica, pois a norma presume uma proteção patrimonial que não existe no caso concreto. Maria não se beneficiou de bens.

O falecido não deixou patrimônio. E, ainda assim, ela foi afastada da sucessão.

Esse paradoxo - de uma viúva inicialmente habilitada, depois excluída com base em um regime de bens que não protegeu ninguém - fere o princípio da razoabilidade, a dignidade da pessoa humana e a função social da herança.

É um caso que clama por justiça e sensibilidade constitucional.

Da competência do Órgão Especial

A agravante pretende a declaração de inconstitucionalidade interpartes, com efeitos ex tunc, no que tange ao direito sucessório relacionado ao recebimento de precatório - matéria que não foi enfrentada pelo STF.

Negar a remessa ao Órgão Especial, sob o argumento de que a matéria já foi decidida em repercussão geral, configura grave equívoco e usurpação de competência, violando o princípio do juiz natural e o devido processo legal.

A prerrogativa do relator de decidir monocraticamente não se aplica quando: A repercussão geral não trata da constitucionalidade da norma, mas apenas de sua aplicação, a parte requer expressamente a remessa ao Órgão Especial, o STF não declarou a norma inconstitucional, mantendo-a vigente.

Da afronta à cláusula de reserva de plenário

A decisão monocrática viola frontalmente o art. 97 da CF/88 e a súmula vinculante 10 do STF, que estabelecem que somente o plenário ou o órgão especial dos tribunais pode declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo.

O STF, ao julgar o Tema 1.236, não exerceu controle concentrado de constitucionalidade. Tampouco declarou a inconstitucionalidade da norma.

Conclusão

A decisão monocrática incorre em equívoco técnico e hermenêutico ao aplicar diretamente a tese do Tema 1.236 como se fosse uma declaração de inconstitucionalidade.

Tal fundamentação não se aplica ao caso concreto, pois a parte agravante não pleiteou a aplicação da tese, mas sim a remessa dos autos ao Órgão Especial para apreciação da constitucionalidade do art. 1.641, II, do CC.

Ao não o fazer, a decisão afronta diretamente a cláusula de reserva de plenário e a súmula vinculante 10, gerando nulidade absoluta.

O drama vivido por Maria, viúva de Manuel, revela que a aplicação automática da norma pode gerar exclusão injusta, desrespeito à dignidade humana e desprestígio à Justiça.

É hora de interpretar o Direito Sucessório à luz da Constituição - especialmente quando se trata de pessoas vulneráveis.

A decisão monocrática que a excluiu do precatório não apenas ignorou a Constituição - ela ignorou Manuel, ignorou Maria, e ignorou o Brasil que acorda cedo, pega dois ônibus e morre esperando.

O Supremo não declarou a norma inconstitucional. Mas também não declarou que Maria deve ser punida por amar depois dos 70.

O caso de Maria e Manuel mostra que, quando o Direito se omite, quem sofre é o amor depois dos 70.

O STF, no Tema 1236, preferiu ficar em cima do muro, mas a vida não admite neutralidade: ou se garante a dignidade e a igualdade, ou se perpetua a exclusão.

O desembargador relator, por sua vez, decidiu que a cláusula de reserva de plenário é opcional - como não se fosse obrigatória a remessa ao Órgão Especial.

A remessa, sim, é obrigatória!

Enquanto isso, o precatório jaz em alguma conta judicial, os filhos estão em lugar incerto e não sabido, e Maria espera.

Espera que alguém leia a Constituição...

Ou, quem sabe, que Manuel interceda lá do céu...

Entre a frieza da norma e a esperança de Maria, é preciso lembrar que o Direito não existe para punir o amor, mas para garantir dignidade.

Amor e Justiça: na canção que canta a liberdade de amar, Milton Nascimento e Caetano Veloso lembram em Paula e Bebeto que “qualquer maneira de amor vale a pena”.

Que o Direito, ao interpretar a Constituição, não se esqueça de que proteger o humano que ama, espera e resiste, é sempre sua maior missão.

Renato Otávio da Gama Ferraz
Renato Ferraz é advogado, formado pela Universidade Federal Fluminense (UFF), professor da Escola de Administração Judiciária do TJ-RJ, autor do livro Assédio Moral no Serviço Público e outras obras

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