1. A prática recente das plataformas e a desconstrução da legítima expectativa do consumidor
A inserção de anúncios em serviços de streaming contratados originalmente como livres de publicidade se tornou uma das práticas mais controversas do mercado digital contemporâneo.
O usuário que por anos pagou por um serviço com a legítima expectativa de não ser exposto a publicidade, começa a ser surpreendido por comunicações unilaterais que anunciam a implementação obrigatória de anúncios ou a criação de novos planos mais caros para manter o que antes era padrão.
Essa mudança evidencia uma estratégia empresarial que transfere aos consumidores o custo das adaptações de mercado ao mesmo tempo em que altera substancialmente o objeto do contrato.
O streaming deixa assim de ser apenas uma comodidade tecnológica e passa a operar como espaço em que o fornecedor se autoconcede poderes para modificar unilateralmente o conteúdo da prestação o que desafia diretamente os princípios basilares do CDC.
2. A decisão da 3ª turma recursal da Bahia e o reconhecimento judicial do abuso
A jurisprudência já começou a reagir a esse fenômeno e a decisão da 3ª turma recursal dos Juizados Especiais da Bahia é um marco fundamental. A juíza Ivana Carvalho Silva Fernandes, da 3ª turma recursal dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais da Bahia, considerou abusiva a inserção de propagandas em conteúdo pago e manteve indenização de R$ 2 mil proferida pelo juízo aquo no processo: 0002485-49.2025.8.05.0141.
No referido caso, a Amazon Prime Video foi condenada por inserir publicidade em um serviço que o consumidor contratara expressamente como livre de anúncios. O colegiado reconheceu que houve publicidade indevida e violação à boa fé objetiva porque a empresa modificou o escopo da contratação sem a concordância do usuário e sem apresentar justificativa que se enquadrasse em hipótese legal de revisão contratual.
O Tribunal destacou que a publicidade veiculada no momento da contratação integrava o contrato e formava a legítima expectativa do consumidor e que a posterior exigência de convívio obrigatório com anúncios configurava alteração unilateral abusiva.
A decisão alinha-se ao núcleo protetivo do CDC ao afirmar que o fornecedor não pode redefinir o conteúdo do serviço reduzindo a utilidade da prestação adquirida e impondo ônus adicional ao consumidor.
3. A leitura integrada do CDC e da LGPD diante dos anúncios forçados
O debate não se limita ao plano contratual. A inserção de anúncios em serviços pagos tem repercussão direta na esfera de dados pessoais porque a publicidade, dentro da plataforma, depende da coleta e do uso intensivo de informações comportamentais do usuário.
Históricos de visualização, horários de acesso, dispositivos utilizados e preferências de consumo alimentam sistemas algorítmicos que direcionam anúncios de acordo com perfis específicos. Ao forçar a presença desses anúncios, mesmo para quem contratou o serviço sem publicidade, a plataforma amplia o tratamento de dados pessoais sem garantir ao consumidor transparência adequada ou real possibilidade de escolha.
A prática entra em fricção com os princípios da finalidade da necessidade e da autodeterminação informativa previstos na LGPD, porque o consumidor não consentiu com esse novo tratamento e somente permanece submetido a ele em razão da alteração unilateral do contrato
O problema se agrava quando se observa que o consumidor, muitas vezes, sequer compreende que a introdução de anúncios implica mudança no tratamento de seus dados internos reforçando a assimetria informacional que permeia esse ambiente.
4. O descompasso institucional gerado pelas alterações unilaterais
A imposição de anúncios em planos pagos revela uma mutação institucional preocupante. Plataformas que deveriam apenas fornecer conteúdo passam a exercer poder normativo privado ao estabelecer novas regras que redefinem o âmbito da contratação e ampliam o uso dos dados pessoais.
O consumidor é deslocado para posição de vulnerabilidade reforçada, visto que o espaço digital substitui gradualmente as garantias previstas no CDC por arranjos contratuais, em que a empresa detém controle absoluto sobre o design do serviço e sobre os fluxos informacionais necessários para sua monetização.
Não se trata de uma simples atualização de termos, mas de uma alteração da lógica jurídica da relação de consumo. A prestação original é enfraquecida sem contrapartida e a parte vulnerável é compelida a aceitar novos limites de uso ou a migrar para planos mais caros para manter o que já possuía.
A decisão da turma recursal da Bahia evidencia esse descompasso ao afirmar que a plataforma não pode impor ao consumidor a redução da qualidade da prestação como estratégia comercial.
A cultura popular também reflete essas tensões. O episódio “Pessoas Comuns”, da sétima temporada da série Black Mirror, oferece uma metáfora precisa sobre o custo humano da mercantilização dos dados e da dependência tecnológica. Nele, a personagem principal adere a um programa de aprimoramento cerebral para sobreviver, mas descobre que a manutenção de sua vida depende de sucessivos pagamentos e atualizações, caso contrário seu “pacote de operações” será repleto de anúncios. A vida real, às vezes se confunde com a cultura, mas não podemos deixar que isso acontece, em algumas situações.
5. O papel contramajoritário do Direito diante da prática dos anúncios obrigatórios
O avanço dessas práticas exige reação institucional consistente. A tutela do consumidor na era digital não pode admitir que fornecedores alterem elementos essenciais do serviço sob a justificativa de reestruturação do modelo de negócios.
O CDC continua a ser a principal barreira contra práticas que reduzem a utilidade da prestação e frustram a legítima expectativa adquirida no momento da contratação. A LGPD complementa essa proteção ao impedir que dados pessoais sejam coletados e utilizados para finalidades novas sem transparência adequada ou fundamento jurídico válido.
A jurisprudência da Bahia inaugura um caminho e demonstra que o Poder Judiciário tem condições de enfrentar práticas que se tornaram estruturalmente abusivas.
O desafio agora é ampliar esse entendimento para evitar que o mercado imponha ao consumidor um modelo de contratação em que o serviço livre de anúncios passa a ser exceção custosa enquanto a publicidade indesejada torna-se parte obrigatória do entretenimento pago.