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O mito da vocação que aguenta tudo

Quem trabalha com pessoas costuma ouvir, explícita ou veladamente, a mesma mensagem: “Você escolheu essa área, já sabia que seria assim”.

17/12/2025
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Quem trabalha com pessoas costuma ouvir, explícita ou veladamente, a mesma mensagem: “Você escolheu essa área, já sabia que seria assim”.

Na prática, esse discurso alimenta um mito perigoso: o da “vocação que aguenta tudo”.

Advogados(as), juízes(as), promotores(as), defensores(as), procuradores(as) foram historicamente ensinados a acreditar que “quem escolhe essa área já sabe que é assim”.

Essa frase, aparentemente inocente, esconde riscos importantes pois normaliza o adoecimento, como se fosse natural viver exausto, ansioso ou sempre à beira do limite e culpabiliza o indivíduo, que passa a se sentir fraco por não conseguir “dar conta” de uma rotina que, na prática, é desumana.

Vocação não deveria ser sinônimo de sacrificar a própria saúde. A ideia de que “quem ama o que faz aguenta tudo” é uma verdadeira armadilha psíquica. Quem ama o que faz precisa, justamente por isso, se preservar para poder continuar fazendo bem ao longo dos anos, ouço muitas vezes nas palestras que faço, que a advocacia é uma “cachaça” e por isso, torna-se aceitável à exaustão.

No entanto, precisamos incluir na vida jurídica qualidade de vida como indicador de sucesso. Nas últimas décadas, construiu-se um ideal de profissional “herói”: que nunca diz não; que responde mensagens a qualquer hora; que precisa se antecipar aos prazos; que assume sempre sozinho várias demandas simultâneas; que está sempre disponível - emocionalmente, intelectualmente, fisicamente.

No universo jurídico, isso aparece de forma muito clara com o(a) advogado(a) que vive 24h à disposição do cliente, que tira dúvidas sem cobrar consulta, que tenta solucionar sozinho(a) assuntos complexos e assim ser considerado “comprometido”, “guerreiro”, “incansável”.

Mas o corpo e a mente vão apresentando a conta: a insônia ou sono não reparador; irritabilidade e impaciência; lapsos de memória, dificuldade de concentração; sensação de anestesia emocional ou cinismo em relação ao trabalho; perda de sentido: “eu faço, mas não vejo mais propósito”. Desta forma o mito da vocação inquebrável sustenta essa lógica, impedindo que o profissional reconheça que ninguém foi feito para operar em modo de urgência permanente.

Em 2026 repense formas de atuação profissional e autocuidado, pois disso depende a longevidade de sua vida e carreira. Desconstruir o mito da vocação que aguenta tudo passa por três movimentos: nomear o problema ou seja, Dizer claramente: não é normal viver em exaustão contínua; rever pactos silenciosos, questionando frases como “sempre foi assim”, “quem quer, aguenta”, “é só uma fase” que se perpetua há anos e incluir a qualidade de vida no centro do planejamento de carreira, não apenas como apêndice, mas como critério de decisão: aceitar ou não uma função, um cargo, um convite, também com base em como isso impacta a saúde.

Autor

Fátima Antunes Psicóloga clinica especializada em profissionais da área jurídica. Coach de Vida e Carreira na área jurídica. Especialista em Gerenciamento do Stress. Autora do livro Estresse em Advogados..

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