A chegada de datas festivas, como o réveillon, sempre traz à tona um conflito crônico no universo condominial: a soltura de fogos de artifício. Se, por um lado, a prática é vista por muitos como uma tradição de celebração, por outro, ela colide frontalmente com a legislação mais recente, as normas internas de segurança e, sobretudo, o direito fundamental à tranquilidade e ao bem-estar, especialmente de grupos mais vulneráveis.
Longe de ser uma mera questão de incômodo, o debate sobre fogos em condomínios migrou definitivamente para a esfera legal e de saúde pública. Hoje, o síndico, o condômino e o morador precisam navegar por um complexo emaranhado de regras que priorizam a segurança e o silêncio.
A legislação que trata da comercialização e uso de fogos de artifício ruidosos constitui o primeiro e mais relevante ponto de inflexão na busca por uma convivência social mais segura e inclusiva. Diversas unidades da federação e municípios já adotaram normas restritivas, proibindo a queima e a soltura desses artefatos. No estado de São Paulo, por exemplo, a lei 17.389/20, que alterou a lei 16.897/18, representa um marco importante ao estabelecer limites claros: o foco da proibição recai sobre os fogos de alto estampido, permitindo apenas aqueles que produzem efeitos visuais e sonoros de baixa intensidade.
A motivação dessas normas é dupla e profundamente ligada ao bem-estar coletivo. Em primeiro lugar, há a dimensão da saúde pública e da neurodiversidade. O ruído intenso dos fogos pode causar sofrimento agudo em pessoas com TEA - Transtorno do Espectro Autista, em idosos e em indivíduos com elevada sensibilidade auditiva. Nessas situações, o estampido não é apenas incômodo, mas pode desencadear crises, ataques de pânico e até dor física, tornando-se um fator de risco para a saúde.
Em segundo lugar, destaca-se o bem-estar animal. Cães, gatos e outros animais de estimação possuem audição muito mais sensível que a humana, o que os torna especialmente vulneráveis ao barulho excessivo. As consequências são graves: fugas, acidentes, ataques cardíacos e até morte por estresse e pânico são frequentemente relatados em decorrência da exposição aos fogos ruidosos.
Assim, a legislação não apenas regula uma prática cultural, mas também reafirma valores de cidadania e responsabilidade social. Ao limitar o uso de fogos barulhentos, busca-se proteger os mais vulneráveis, sejam pessoas ou animais e promover uma convivência mais respeitosa e segura.
Portanto, qualquer celebração que envolva rojões ou morteiros com estampido alto está, em regra, em desacordo com a lei municipal ou estadual, independentemente das regras internas do condomínio.
Segurança em primeiro lugar: O risco iminente de incêndio
Além do aspecto sonoro, a soltura de fogos dentro dos limites condominiais representa um perigo físico e patrimonial inaceitável. A lei 4.591/1964 (lei do condomínio) e o CC (lei 10.406/02) estabelecem o dever de cuidado e segurança.
A queima de fogos de artifício, ainda que restrita aos de caráter visual, representa um risco significativo para a segurança e o bem-estar coletivo. Em ambientes urbanos, especialmente em prédios residenciais, o perigo de incêndio é elevado, podendo atingir apartamentos vizinhos, roupas estendidas em varais, antenas e, sobretudo, veículos estacionados em garagens ou áreas comuns. Em condomínios horizontais, o risco se amplia para telhados, jardins e áreas de vegetação, aumentando a possibilidade de danos de grandes proporções.
Além disso, o manuseio inadequado desses artefatos por pessoas sem preparo técnico, incluindo crianças, é uma das principais causas de queimaduras e acidentes graves. A imprevisibilidade do comportamento dos fogos torna a prática ainda mais perigosa, expondo os envolvidos e terceiros a lesões que poderiam ser evitadas.
Outro aspecto relevante é o dano ao patrimônio. O custo de reparar um sinistro, como um incêndio, ou mesmo de arcar com pequenos prejuízos materiais decorrentes da explosão de um rojão, supera em muito o prazer momentâneo proporcionado pelo espetáculo pirotécnico. Trata-se de uma relação desproporcional entre o risco e o benefício, o que reforça a necessidade de medidas preventivas.
Por essas razões, a maioria dos regimentos internos e convenções condominiais estabelece, de forma expressa, a proibição da soltura de qualquer tipo de artefato pirotécnico, inclusive aqueles de baixo ruído, tanto em áreas comuns quanto em espaços privativos, como sacadas e janelas. Essa restrição busca preservar a integridade física dos moradores, proteger o patrimônio coletivo e individual e garantir a convivência segura e harmoniosa dentro dos condomínios.
O papel do síndico e a força do regimento interno
No âmbito condominial, a responsabilidade de assegurar o cumprimento da lei e das normas internas recai diretamente sobre o síndico, conforme dispõe o art. 1.348 do CC. A atuação desse representante exige postura firme e preventiva, de modo a garantir a ordem e a segurança de todos os moradores.
A primeira medida essencial é a comunicação preventiva. Cabe ao síndico emitir comunicados com antecedência, lembrando os condôminos das proibições estabelecidas pela legislação estadual e municipal, bem como das sanções previstas no regimento interno. Essa prática contribui para a conscientização coletiva e reduz a ocorrência de infrações.
Em caso de descumprimento das regras, torna-se necessária a ação imediata. O síndico deve aplicar a penalidade cabível, geralmente na forma de multa, sem prejuízo da responsabilização civil ou criminal do infrator. O art. 1.336 do CC prevê expressamente a possibilidade de multar o condômino que não observa as normas internas, reforçando a autoridade da administração condominial.
Outro ponto relevante é o enfrentamento do comportamento antissocial. O morador que insiste em práticas que perturbam a tranquilidade e colocam em risco a segurança coletiva pode ser enquadrado como condômino antissocial. Nesses casos, a penalidade pode ser agravada, chegando a até dez vezes o valor da cota condominial, desde que aprovada em assembleia, conforme previsto na legislação vigente.
Por fim, é fundamental destacar que, ainda que a lei municipal permita o uso de fogos visuais, o condomínio, por meio de seu regimento interno aprovado em assembleia, possui autonomia para estabelecer regras mais rigorosas. Entre elas, pode constar a proibição total da utilização de artefatos pirotécnicos em suas dependências, sejam áreas comuns ou privativas, sempre em nome da preservação da segurança e da convivência harmoniosa entre os moradores.
Convivência e alternativas sustentáveis
O uso de fogos de artifício em condomínios representa um desafio constante na busca pelo equilíbrio entre a liberdade individual e o direito coletivo. A convivência harmoniosa, especialmente em uma sociedade que valoriza o conceito de “ruído zero”, exige a substituição de práticas tradicionais e barulhentas por alternativas mais sustentáveis e respeitosas. Nesse contexto, torna-se necessário repensar os modos de celebração, privilegiando soluções que preservem tanto o impacto visual das festas quanto a tranquilidade dos moradores.
O mercado atual já disponibiliza opções que conciliam espetáculo e segurança. Os fogos de artifício silenciosos, por exemplo, produzem efeitos luminosos e visuais sofisticados, mas com estampido mínimo ou praticamente inaudível, reduzindo significativamente os riscos de perturbação. Outra alternativa são as projeções a laser e o mapeamento de fachadas, que, em grandes eventos ou em condomínios de alto padrão, oferecem shows de luzes grandiosos sem qualquer ameaça de incêndio ou incômodo sonoro, transformando a celebração em uma experiência inovadora e segura.
Desta forma, a decisão de não utilizar fogos ruidosos em condomínios deve ser compreendida como um ato de cidadania. Trata-se do reconhecimento de que o direito de festejar encontra limites no direito do vizinho, sobretudo daquele mais vulnerável, de viver em paz e segurança. Assim, a adoção de alternativas modernas e silenciosas não apenas preserva a coletividade, mas também reafirma o compromisso com uma convivência mais consciente e responsável.