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Blindagem patrimonial por lide simulada e ação rescisória

O texto examina a blindagem patrimonial via lide simulada trabalhista e defende a ação rescisória, baseada em indícios, como via para desconstituir a fraude e recuperar créditos.

29/12/2025
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A blindagem patrimonial tem sido um mecanismo estratégico e, por vezes, fraudulento para reduzir riscos econômicos em operações empresariais ou familiares. Para quem atua no Direito do Trabalho, pode acontecer para afastar a efetividade de execuções judiciais decorrentes das condenações trabalhistas. Nesse contexto, a prática de blindagem patrimonial – especialmente por constituição de empresas de fachada, criação de lides simuladas, realização de negócios jurídicos fraudulentos e utilização de pessoas interpostas – não é, infelizmente, uma raridade nas execuções trabalhistas.

Uma modalidade particularmente insidiosa é a lide simulada, quando autor e réu, maliciosamente mancomunados, utilizam o processo judicial não para resolver um conflito real, mas para obter um resultado proibido por lei ou prejudicar terceiros (ex.: credores, fisco, INSS). Diferente do “vício de consentimento”, em que uma parte engana a outra, na colusão ambas as partes desejam o resultado fraudulento.

Na blindagem patrimonial, a lide simulada se torna uma disputa judicial que serve apenas como fachada para encobrir a transferência de patrimônio a terceiros, disfarçada de “dívida trabalhista”. Essa prática impede que os verdadeiros credores acessem o patrimônio da empresa, pois se deparam com sua insolvência decorrente do pagamento prévio feito a um terceiro que se apresentava como legítimo credor trabalhista.

A ação rescisória é uma ação passível de ser manejada nesses casos. O art. 966, III, do CPC insere no rol das hipóteses de cabimento da ação rescisória a possibilidade de desconstituir a decisão de mérito transitada em julgado quando esta resultar de dolo ou coação da parte vencedora em detrimento da parte vencida, bem como de simulação ou colusão entre as partes com o intuito de fraudar a lei. Ademais, o art. 967 do mesmo diploma processual permite que terceiros prejudicados (e.g. reais trabalhadores que ficaram com crédito trabalhista inadimplido) e Ministério Público do Trabalho exerçam legitimidade ativa para propor a ação rescisória e, dessa forma, recuperar e tornar acessível às execuções o patrimônio desviado da empresa reclamada que a tornou insolvente diante dos verdadeiros credores.

Assim, a questão girará em torno de conseguir provar na ação rescisória que as partes realmente simularam conflito de interesse com propósito de fraudar a lei. A comprovação é difícil, pois, em casos de simulação, raramente há documentos que revelem o negócio dissimulado. Nesse cenário, evidenciam-se apenas indícios do conflito fabricado, isto é, o que foi simulado. Como a simulação é feita “às escondidas”, raramente se exige prova direta. Nesse contexto, o julgamento tende a se basear em indícios que sejam veementes e concordantes entre si.

Podem ser apontados como indícios relevantes, entre outros, os seguintes elementos, apresentados de forma exemplificativa:

  1. Ausência de resistência efetiva da reclamada, evidenciada por defesa genérica, meramente formal ou até inexistente, na qual não há impugnação de fatos essenciais da demanda. Inclui-se, nesse contexto, a celebração de acordos de elevado valor logo no início do processo – por vezes já na primeira audiência –, sem pedido de parcelamento ou de deságio, conduta incompatível com a alegada situação de dificuldade financeira ou de recuperação judicial;
  2. Existência de vínculos de proximidade entre as partes, sejam eles de natureza pessoal, familiar, societária ou econômica, capazes de comprometer a aparência de litigiosidade real;
  3. Incompatibilidade patrimonial e cronológica, verificada quando os valores reclamados ou reconhecidos judicialmente não guardam coerência com o período contratual alegado, com a capacidade econômica das partes ou com a realidade fática demonstrada nos autos;
  4. Simulação de contrato de trabalho, caracterizada por elementos que indiquem que o reclamante jamais esteve submetido a subordinação jurídica, atuando, na prática, com autonomia típica de sócio ou gestor, utilizando a ação trabalhista como meio para resguardar patrimônio da empresa, inclusive por meio de adjudicação de bens ou acordos judiciais;
  5. Confissão de dívida sem lastro probatório, como a admissão de débitos elevados – especialmente verbas rescisórias – sem a apresentação de documentos mínimos de comprovação, tais como contracheques, registro de empregado ou extratos de FGTS;
  6. Interposição de pessoas (“laranjas”), seja para figurar formalmente em contratos, seja para integrar o polo passivo da demanda, com o objetivo de ocultar os reais beneficiários econômicos da relação jurídica ou do resultado do processo.

Para fins de ação rescisória, vale reconhecer que esses elementos, isoladamente ou em conjunto, podem indicar a inexistência de conflito real de interesses e justificar uma análise mais rigorosa pelo juízo.

Por isso, o TST considera que provas indiciárias são suficientes para descortinar práticas de blindagem patrimonial baseadas em simulação:

AGRAVO EM RECURSO ORDINÁRIO EM AÇÃO RESCISÓRIA SOB A ÉGIDE DO CPC/1973 . LIDE SIMULADA. COLUSÃO ENTRE AS PARTES COM O OBJETIVO DE BLINDAGEM PATRIMONIAL. INOCORRÊNCIA . 1. A hipótese de colusão entre as partes, como fundamento autorizador do corte rescisório (art. 485, III, do CPC/1973), diz respeito à utilização do processo como meio de fraudar a lei e prejudicar terceiros, em especial ante a natureza preferencial do crédito trabalhista, o que possibilita a constituição de blindagem patrimonial em relação a outras dívidas, inclusive tributárias ou com garantia real. 2. Considerando a notória dificuldade probatória em relação ao intuito fraudulento das partes na ação subjacente, a jurisprudência desta Corte Superior consolidou-se no sentido de admitir a prova indiciária como fundamento para desconstituir o título executivo resultado da fraude, desde que presentes elementos suficientes a atrair a constatação do desvio de finalidade na ação subjacente. 3. Assim, por exemplo, devem ser analisados, entre outros, a relação extraprocessual entre as partes (amizade, parentesco ou profissão); a existência de dívidas da reclamada que justifiquem a constituição de crédito privilegiado como proteção ao seu patrimônio; o comportamento processual das partes (seja em relação à proporção entre pedidos e valor da causa ou do acordo entabulado; seja no tocante à existência, ou não, de efetiva pretensão resistida), bem como a relação de direito material que deu origem à reclamação trabalhista. 4. No caso concreto, dos autos da reclamação trabalhista subjacente, verifica-se que, para além da relação de parentesco entre reclamante e reclamado (cunhados), foram formalizados diversos vínculos empregatícios com registro em CTPS, o que autoriza presumir que efetivamente houve relação de emprego, a qual não foi infirmada pela prova oral produzida no bojo dos autos da ação rescisória. 5. No mais, durante a fase de conhecimento da ação subjacente, de fato, não houve qualquer pretensão resistida por parte do reclamado, que não apresentou contestação e foi declarado revel, sendo-lhe aplicada a pena de confissão ficta quanto à matéria de fato, resultando na procedência de todos os pedidos formulados na inicial, sem ulterior recurso, consolidando-se o trânsito em julgado. 5. Ocorre que situação diversa é verificada na fase de execução, porquanto não se denota espécie alguma de colaboração do reclamado. 6. Não foi garantida a execução nem indicados bens à penhora, razão pela qual o exequente, Sr. Virgílio, peticionou nos autos por diversas vezes ao longo dos anos que sucederam, na tentativa de obter a penhora de algum bem de sua propriedade. 6. Ora, estivessem as partes da reclamação trabalhista realmente em conluio, bastaria ao executado indicar seus bens à penhora imediatamente após o início da fase de execução, garantindo assim a blindagem patrimonial necessária a evitar que fossem expropriados por terceiros. Não foi esse, contudo, o caso. 7. Ademais, verifica-se a existência de outra execução cível, promovida pela credora Bunge Fertilizantes S/A, e que resultou na arrematação de bens imóveis do reclamado para terceiro, em 10.6.2008. 9. Disso se conclui que a revelia na ação subjacente, a relação de parentesco entre as partes e a existência de dívidas do reclamado não autorizam concluir pela ocorrência de lide simulada, porquanto a sucessão de atos praticados na fase de execução revela que não houve colaboração do executado para com a transferência de seu patrimônio para o exequente. 10. Pelo contrário, houve inclusive expropriação de bens imóveis no bojo de execução cível que tramitou concomitantemente à execução trabalhista, sem que o executado invocasse a preferência do crédito trabalhista. 11. Desta forma, irretocável a decisão monocrática proferida com esteio no art. 932 do CPC. Agravo conhecido e desprovido. Tribunal Superior do Trabalho (Subseção II Especializada em Dissídios Individuais). Acórdão: 0359600-28.2009.5.04.0000. Relator(a): MORGANA DE ALMEIDA RICHA. Data de julgamento: 12/3/24. Juntado aos autos em 15/3/24. Disponível em:

No STJ, o ministro Moura Ribeiro, no REsp 1.969.648/DF, defendeu o uso da prova indiciária para reconhecer a simulação, conforme trecho de seu voto: “A prova da simulação pode ser bastante difícil, por ser diabólica, já que o capeta é danado para tentar esconder a verdade, sua faceta mais tenebrosa e daninha. E assim é, porque os malfeitores, intencionalmente, buscam manter a situação mentirosa como se fosse verdadeira, com a finalidade de enganar terceiros alheios ao negócio jurídico simulado”.

Dessa forma, mostra-se imprescindível a adoção de um uso estratégico da ação rescisória. Nessa perspectiva, é possível concebê-la como instrumento apto a ser fundamentado em prova indiciária robusta – ainda que esta constitua o único meio disponível de comprovação –, revelando-se eficaz para a desconstituição de decisões sustentadas em lides simuladas e em práticas de blindagem patrimonial.

A principal dificuldade consiste na reunião de indícios suficientemente robustos para persuadir o juízo rescisório acerca da ocorrência de lide simulada. Nesse contexto, uma atuação investigativa qualificada por parte dos advogados do reclamante, bem como do MPT, revela-se potencialmente decisiva para o êxito da ação rescisória. Ademais, tendo em vista a existência de execuções trabalhistas em curso contra a empresa insolvente, os resultados obtidos por meio dos sistemas informatizados de pesquisa e constrição patrimonial podem ser legitimamente aproveitados para a identificação e o fortalecimento dos indícios necessários.

Autor

Lincoln Simões Fontenele Mestre em Direito (UFC), Doutorando em Sociologia (Universität Bielefeld,Alemanha) e Direito (UnB).Advogado Trabalhista com atuação em direito acidentário, compliance, meio ambiente do trabalho e TST.

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