A sanção da lei 15.240/25, que passou a caracterizar o abandono afetivo como ilícito civil, tornou expresso no ordenamento jurídico brasileiro o dever de assistência afetiva no exercício da parentalidade.
O tema ganhou repercussão recente após declarações públicas de Narcisa Tamborindeguy, que afirmou que o ex-companheiro, o diretor de TV Boninho, teria sido um "pai ausente", criticando a falta de apoio afetivo e financeiro ao longo da criação do filho.
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Relembre a fala:
Embora de natureza pessoal, o desabafo ilustra um debate que vem se intensificando no âmbito jurídico: a responsabilidade parental que vai além do sustento material, abrangendo também o cuidado emocional e a presença afetiva.
A discussão, no entanto, está longe de ser inédita e já vinha sendo enfrentada há anos pelos tribunais brasileiros.
Arcabouço decisório
Muito antes da sanção da lei 15.240/25, Migalhas já vinha noticiando decisões judiciais que reconhecem o abandono afetivo como ilícito civil, com consequências indenizatórias.
Ao menos desde 2012, a jurisprudência brasileira - da 1ª instância aos tribunais superiores - passou a consolidar o entendimento de que a parentalidade envolve não apenas o sustento material, mas também o dever jurídico de cuidado e presença emocional.
Nos juízos de 1ª instância, decisões começaram a admitir a responsabilização civil de pais que, mesmo cientes da paternidade, se omitiram de forma reiterada do convívio e do cuidado com os filhos.
Em um dos casos, o magistrado destacou que não se trata de "precificar o amor", mas de punir a violação de um dever legal, sobretudo quando comprovados danos psicológicos duradouros. Indenizações fixadas nesses processos variaram de R$ 22 mil a R$ 100 mil, a depender da extensão do abandono e de suas consequências.
Esse entendimento ganhou maior densidade nos tribunais estaduais, que passaram a afirmar com mais clareza que o afeto, enquanto sentimento, não é exigível, mas que a omissão parental pode gerar dano indenizável.
Cortes como TJ/MG, TJ/GO e TJ/SP mantiveram condenações por abandono afetivo, inclusive em situações em que o dever material havia sido parcialmente cumprido, reconhecendo que o pagamento de pensão não afasta a obrigação de prestar assistência emocional.
Em outros casos, o reconhecimento do abandono levou à autorização para exclusão do sobrenome paterno do registro civil, diante do sofrimento psíquico causado pela manutenção do vínculo formal.
No STJ, a virada jurisprudencial ocorreu em 2012, quando a 3ª turma reconheceu expressamente a possibilidade de indenização por abandono afetivo.
Relatora do caso, ministra Nancy Andrighi afirmou que não há restrições à aplicação da responsabilidade civil no Direito de Família e que o cuidado constitui valor jurídico essencial, com impacto direto na formação da personalidade da criança.
Desde então, o tribunal tem reafirmado que não se discute o dever de amar, mas o dever legal de cuidar, distinguindo o abandono afetivo das obrigações alimentares e do poder familiar.
Esse entendimento foi reiterado, mais recentemente, em julgado que admitiu a desconstituição da paternidade registral quando demonstrada a completa ausência de vínculo socioafetivo e o descumprimento do princípio da paternidade responsável.
Para evitar contradições
Apesar dessa evolução, nem sempre a jurisprudência foi uniforme.
Antes da nova lei, existiram julgados que afastaram a responsabilização civil sob o argumento de que o Judiciário não poderia intervir na esfera dos sentimentos ou promover a chamada "judicialização do amor".
Exemplo disso foram decisões proferidas em 2017 pela 1ª vara Cível de Ceilândia/DF e pelo TJ/SC.
Ambos rejeitaram pedidos de indenização por abandono afetivo ao entender que ninguém pode ser obrigado a demonstrar afeto e que conflitos familiares nem sempre encontram solução adequada na via judicial.
Nos casos, embora tenha sido reconhecido o dever alimentar, a reparação por dano moral foi afastada por ausência de prova do dano ou por se tratar, segundo os julgadores, de matéria alheia ao controle jurisdicional.
É justamente esse vácuo normativo - evidenciado por decisões divergentes - que a lei 15.240/25 busca preencher.
Ao definir de forma expressa o dever de assistência afetiva, com obrigações objetivas de orientação, apoio, presença e solidariedade emocional, a nova legislação desloca o debate do campo subjetivo do "amor" para o plano jurídico do cuidado, reduzindo o espaço para decisões contraditórias e conferindo maior segurança jurídica à análise dos casos.
Na prática
Segundo a advogada Maria Eduarda Omena, sócia do Martorelli Advogados e especialista em Direito de Família e Sucessões, a norma busca eliminar dúvidas ainda existentes na jurisprudência sobre o abandono afetivo como ilícito civil, ao explicitar que o cuidado emocional integra os deveres jurídicos da parentalidade.
Com a mudança legislativa, passa a ser dever dos responsáveis não apenas a assistência material, mas também o apoio afetivo, entendido como a orientação sobre escolhas educacionais, culturais e profissionais, o acompanhamento da vida escolar, o oferecimento de apoio e solidariedade em momentos de sofrimento e, sempre que possível, a presença física quando solicitada pela criança ou pelo adolescente.
De acordo com a causídica, o descumprimento desses deveres pode gerar consequências jurídicas.
"Caso a assistência afetiva não seja cumprida, sendo configurado e comprovado o abandono afetivo, estará caracterizado o direito de reparação. Ou seja, uma vez comprovada a conduta ilícita, os pais ou responsáveis legais poderão ser processados pelo menor, representado legalmente, vindo a ser condenados à reparação dos danos causados pelo abandono afetivo", afirma.
Maria Eduarda Omena diz que a nova lei se aplica diretamente aos pais e responsáveis legais, nos termos do art. 4º, § 2º, do ECA.
"Apesar de o dever de cuidado das crianças e adolescentes ser uma responsabilidade compartilhada entre família, sociedade e Estado, a responsabilização pela assistência afetiva é devida somente aos responsáveis legais do menor", explica.
Na prática, segundo a advogada, a ausência dessa assistência - seja verificada em ações de alimentos, seja em disputas de guarda e convivência - poderá caracterizar ilícito civil, passível de indenização.
"Isso significa que, se desejar, a criança ou o adolescente, representado legalmente, terá o direito de receber indenização pelo abandono afetivo", ressalta.
A especialista destaca que a nova lei fortalece o princípio da afetividade, já reconhecido pela doutrina e pela jurisprudência, ao atribuir-lhe previsão expressa em lei.
"O dever de assistência interage com as demais obrigações parentais, acrescentando a elas o dever jurídico de cuidado. Assim, os responsáveis legais devem oferecer, além da assistência material, afeto, atenção, convivência e suporte emocional no exercício da parentalidade", conclui.