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O direito de sonhar

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Atualizado em 11 de setembro de 2013 10:45

Ontem o Código de Defesa do Consumidor fez 23 anos de existência, editado em 11/9/1990. Foi uma luta aprová-lo, mas ele acabou surgindo, tardiamente, mas veio. Nasceu no século XX, muitos anos atrasado. Para ser ter um ideia do tempo, nos Estados Unidos - o país que lidera o capitalismo contemporâneo - a proteção ao consumidor havia começado em 1890 com a lei Sherman, que é a lei antitruste americana. Isto é, exatamente um século antes do nosso CDC, numa sociedade que se construía como sociedade capitalista de massa, surgia uma lei de proteção ao consumidor.

É verdade que, mesmo lá, a consciência social e cultural da defesa do consumidor ganhou fôlego maior a partir dos anos 1960, especialmente com o surgimento das associações dos consumidores com Ralf Nader. Ou seja, o verdadeiro movimento consumerista (como se costuma chamar) começou para valer na segunda metade do século XX. Mas é importante atentarmos para essa preocupação existente já no século XIX com a questão do mercado de consumo, no país mais poderoso do mundo.

Por outro lado, como se sabe, nossa lei consumerista, apesar de tardia - e em parte por causa disso - acabou incorporando várias normas modernas protecionistas e isso gerou resultados altamente positivos a favor dos consumidores e do próprio mercado produtor.

O CDC foi um sonho que se realizou e que dá frutos diariamente. Ele gerou mais igualdade, trouxe harmonia às relações jurídicas, fez com que o resultado das transações fosse mais honesto, enfim, é um marco da evolução jurídica no país.

Naturalmente, falta muito, até por que uma única lei não poderia resolver todas as mazelas sociais perpetradas pelo capitalismo da última geração globalizada e dominada por empresários com monstruoso poder de fogo. Mas, os consumeristas sonham ainda mais e lutam para implementar os objetivos de conseguir obter um sociedade mais humana e justa.

Pensando no tema, lembrei do texto do escritor uruguaio Eduardo Galeano sobre o direito de sonhar, que ele intitula mais poeticamente de direito ao delírio. Trata-se de um maravilhoso texto extraído de um de seus livros. Não fala só de capitalismo, mas como este, de algum modo, está no centro de quase tudo, eu o transcrevo abaixo para nosso deleite. Vale a pena lê-lo. Quem quiser assistir ao próprio escritor declamando a poesia, pode acessar: clique aqui. (É muito bonito!)

Eis:

O direito ao delírio1

Por Eduardo Galeano

Que tal se delirarmos por um tempinho?

Que tal se fixarmos nossos olhos mais além da infâmia para imaginar outro mundo possível?

O ar estará limpo de todo veneno que não venha dos medos humanos e das humanas paixões.

Nas ruas os automóveis serão esmagados pelos cães.

As pessoas não serão dirigidas pelo automóvel, nem serão programadas pelo computador, nem serão compradas pelos supermercados, nem serão também assistidas pelo televisor.

O televisor deixará de ser o membro mais importante da família e será tratado como o ferro de passar ou a máquina de lavar roupas.

Será incorporado aos códigos penais o delito de estupidez, que cometem os que vivem para ter ou para ganhar, em vez de viver por viver e só. Assim como canta o pássaro, sem saber que canta, e como brinca a criança, sem saber que brinca.

Em nenhum país irão presos os rapazes que se neguem a cumprir o serviço militar, mas os que queiram cumpri-lo.

Ninguém viverá para trabalhar, mas todos nós trabalharemos para viver.

Os economistas não chamarão nível de vida ao nível de consumo; nem chamarão qualidade de vida a quantidade de coisas.

Os cozinheiros não acreditarão que as lagostas adoram que as fervam vivas.

Os historiadores não acreditarão que os países adoram ser invadidos.

Os políticos não acreditarão que os pobres adoram comer promessas.

A solenidade deixará de acreditar que é uma virtude e ninguém, ninguém levará a sério alguém que não seja capaz de tirar sarro de si mesmo.

A morte e o dinheiro perderão seus mágicos poderes e nem por falecimento nem por fortuna se converterá o canalha em um virtuoso cavalheiro.

A comida não será uma mercadoria, nem a comunicação um negócio.

Porque a comida e a comunicação são direitos humanos.

Ninguém morrerá de fome, porque ninguém morrerá de indigestão.

As crianças de rua não serão tratadas como se fossem lixo, porque não haverá crianças de rua.

As crianças ricas não serão tratadas como se fossem dinheiro, porque não haverá crianças ricas.

A educação não será o privilégio daqueles que possam pagá-la, e a polícia não será a maldição de quem não pode comprá-la.

A justiça e a liberdade, irmãs siamesas, condenadas a viver separadas, voltarão a juntar-se, bem grudadinhas, costas contra costas.

Na Argentina, as loucas da "Praça de Maio" serão um exemplo de saúde mental,

porque elas se negaram a esquecer nos tempos da amnésia obrigatória.

A Santa Madre Igreja corrigirá algumas erratas das Tábuas de Moisés e o sexto mandamento ordenará festejar o corpo.

A Igreja também proclamará outro mandamento que Deus havia esquecido: "Amarás a natureza da qual fazes parte".

Serão reflorestados os desertos do mundo e os desertos da alma.

Os desesperados serão esperados e os perdidos serão encontrados, porque eles são os que se desesperaram de muito, muito esperar e eles se perderam de muito, muito procurar.

Seremos compatriotas e contemporâneos de todos os que tenham vontade de beleza e vontade de justiça, tenham nascido quando tenham nascido e tenham vivido onde tenham vivido, sem que importe nenhum pouquinho as fronteiras do mapa nem do tempo.

Seremos imperfeitos porque a perfeição continuará sendo o aborrecido privilégio dos deuses.

Mas neste mundo, neste mundo desajeitado e fodido, seremos capazes de viver cada dia como se fosse o primeiro e cada noite como se fosse a última.

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1É trecho do livro "Patas Arriba": Buenos Aires, dezembro de 1998, ps. 222/224. O trecho do livro traduzido para o português pode ser encontrado na web. Este eu extraí do vídeo citado acima.