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A boa-fé objetiva como elemento de harmonização das relações jurídicas de consumo - Parte I

quinta-feira, 22 de setembro de 2022

Atualizado às 08:33

O presente momento histórico que vivemos exige uma mudança de paradigma das relações sociais em geral, na direção da solidariedade, da busca da igualdade, da concretização da Justiça etc. E, no que respeita às relações jurídicas de consumo, um dos lemas da atualidade é o da harmonização, esta que foi expressamente prevista no Código de Defesa do Consumidor como princípio (conf.  caput e inciso III do art. 4º).

A ideia de harmonização envolve alguns parâmetros, dentre os quais se encontra  o da boa-fé objetiva.

A hermenêutica jurídica tem apontado no transcurso da história os vários problemas com os quais se depara o intérprete, não só na análise  da norma e seu drama no que diz respeito à eficácia, mas também na do problema da compreensão do comportamento humano. Deste, dependendo da ideologia ou da escola à qual pertença o hermeneuta, há sempre uma maior ou menor disposição de se buscar uma adequação/inadequação na questão da incidência normativa: há os que atribuem o comportamento à incidência direta da norma jurídica; os que alegam que a norma jurídica é produzida por conta da pressão que o comportamento humano exerce sobre o legislador e logo sobre o sistema jurídico produzido; os que dizem que a norma tem caráter educador juntamente com os outros sistemas sociais de educação;  os que atestam que, simplesmente, a norma jurídica é superestrutura de manutenção do "status quo"; os que veem na norma o instrumento de controle político e social; enfim, é possível detectar tantas variações das implicações existentes entre sistema jurídico e sociedade (ou norma jurídica e comportamento humano) quantas escolas puderem ser investigadas.

Acontece que, independentemente da escola, existem algumas bases gerais que sempre se repetem como alicerce das relações, isto é, como fórmulas de procura ou operações estruturantes a serem  utilizadas pelo intérprete para resolver um problema de aplicação/interpretação normativa, no que diz respeito ao caso concreto. Vale dizer, esse elemento tópico acaba por ser utilizado pelo intérprete com o intuito de persuadir o receptor de sua mensagem, o que deve ser feito, portanto, de tal modo que cause uma impressão convincente no destinatário.

Ora, a decisão jurídica decorrente do ato interpretativo surge linguisticamente num texto (numa obra doutrinária, numa decisão judicial, num parecer e, num certo sentido, na própria norma jurídica escrita) como uma argumentação racional, advinda de uma discussão também racional, fruto de um sujeito pensante racional, que, por sua vez, conseguiu articular proposições racionais. O ciclo surge fechado num sistema racional.

Mas, muitas vezes, fica difícil para o intérprete resolver o problema de modo racional lançando mão do repertório linguístico do sistema normativo escrito. Por vezes, faltam palavras capazes de dar conta dos fatos, dos valores, das disputas reais envolvidas, das justaposições de normas, dos conflitos de interesses, das contradições normativas, de suas antinomias, e até de seus paradoxos. Nesse momento, então, para resolver o problema estudado, ele lança mão de fórmulas, verdadeiros modelos capazes de apresentar um caminho para a solução da questão. Dentre as várias alternativas, chamo atenção para certos "standarts", tais como "fato notório", "regras ordinárias da experiência", "ser humano comum", "pensamento médio", "razoabilidade", "parcimônia", "equilíbrio", "justiça" (no sentido de equilíbrio), "bom senso", "senso comum" etc.

Anoto que essas fórmulas funcionam em sua capacidade de persuasão e convencimento, porque, de algum modo, elas, muitas vezes, apontam para verdades objetivas, traduzidas como fatos concretos verificáveis. O destinatário do discurso racional preenchido com essas fórmulas o acata como verdadeiro, porque sabe, intuitivamente, que eles, em algum momento, corresponderam à realidade. Ou, em outras palavras, aceita o argumento estandartizado, porque reconhece nele, de forma inconsciente - intuitiva - um foro de legitimidade, eis que produzidos na realidade como um fato inexorável.  E a boa-fé objetiva é uma fórmula fundamental desse tipo que, como disse, no Brasil, acabou por ser erigida a princípio no Código de Defesa do Consumidor.

É importante, portanto, que se conheça bem o funcionamento da boa-fé objetiva, eis que ela pode ser a indicação e a base para solução de uma série de conflitos envolvendo as relações jurídica de consumo.

No artigo da próxima semana, cuidarei especificamente dela.